O DIÁRIO QUE VIROU CINZA

As cinzas em que se transformaram as centenas de folhas escritas onde foram depositados os segredos de uma vida ainda em início tinham mesmo a cor cinza como cinza era a cor da tristeza com que foi pintada a vida daquela adolescente no início dos anos sessenta. Elas podiam ser multicoloridas com predominância de rosa de um diário comum de uma adolescente no auge de seus conflitos de geração com os pais. Rosa que era a cor do romantismo característico dessa fase da vida.

Mas não, esse diário foi diferente. Ele teve a cor do sofrimento, da dor, da tristeza. E foi o resultado da introspecção que fazia uma menina trocar o convívio com os colegas nas brincadeiras e namoros próprios da época pela solidão do seu quarto, um quarto simples onde se refugiava sempre que as discussões com seu pai a encurralavam e empurravam para um exílio solitário e criativo. Por isso, segundo ela me falava pouca coisa do que estava escrito ali era resultado de algum acontecimento alegre e prazeroso. Esses eram momentos raros na sua vida de então.

Essas cinzas, que se espalharam pelo ar num segundo, era tudo que restou da fogueira de ilusões, desilusões, desgostos, sofrimentos, desamor, temores, dúvidas, incertezas, esperança em que ela cremou a sua verdadeira natureza interior exposta num processo de catarse naquelas páginas que, ao longo de quatro anos de muitas lágrimas e desavenças, ela fez de confidente mudo e silencioso de sua vida: seu diário.

Eram apenas cadernos simples de colegial. Nada de capa dura. Nada de figuras românticas de namorados ao luar. Nada de paisagens encantadoras. Não tinha a aparência dos diários que estamos acostumados a ver nos filmes e nas novelas nos quartos de mocinhas arrumadinhas que combinam o laço do cabelo com a cor dos sapatos, hoje chamadas de Patricinhas. Não marcavam nem dias, nem meses, nem anos. Ela mesma datava à medida que ia escrevendo. Até porque o volume que ela escrevia diariamente ultrapassava em muito a capacidade de uma página de um diário comum.

Sem chaves e sem cadeado para lhes garantir a segurança contra olhares indiscretos eles eram guardados numa malinha de madeira bem chinfrim, daquelas que a gente vê pessoas carregando os seus poucos e pobres pertences pelas ruas e rodoviárias nas cidades do interior do Nordeste, e foram sendo acumulados e arrumados à proporção que iam sendo preenchidos. E a chave da mala ficava sempre com ela. O que não foi suficiente para garantir que a sua privacidade trancada ali fosse preservada das chacotas da galerinha - manos e manas irresponsáveis e irreverentes adolescentes como acontece com todos ou quase todos nessa fase da vida.

Eles estavam sempre à espreita e ao menor vacilo pode ter certeza que ela iria escutar as piadinhas sobre o que havia sido lido nas páginas surrupiadas dos seus escritos. E via então os seus mais íntimos segredos expostos à execração pública sem dó nem piedade. Pois era assim que ela se sentia, uma Maria Madalena apedrejada sem ninguém para dizer aos apedrejadores: quem nunca pecou que atire a primeira pedra.

É com certo pesar que ela admite e me confessa que aqueles cadernos estavam se transformando num fardo por demais pesado para ser carregado. O temor de escutar as gozações dos irmãos sobre o que liam estava tirando o sono e a tranqüilidade. Ela trancava a mala, mas muitas vezes esquecia a chave por aí. E eles sempre achavam os danadinhos e não perdoavam. E enquanto ela chorava de indignação e desgosto eles riam da sua aflição e nem se importavam com o seu sofrimento. Na sua pouca idade eles não tinham discernimento para entender a gravidade da coisa. O que para eles era besteira para ela era caso de vida ou morte. Era a sua própria vida que estava exposta ali e as suas intimidades devassadas.

Alguns anos depois vendo que não dava mais pra suportar e não podia mais adiar tomou coragem e executou o gesto extremo – ateou fogo em tudo. Fez uma fogueira no quintal de casa com as centenas de cadernos e assistiu em lágrimas arder até o fim.

E à medida que as chamas cresciam e crepitavam ao vento parecia que os fantasmas contidos nos escritos se soltavam e saiam voando e gritando ao se libertar. Ghosts rindo do seu drama.

Tudo virou cinza que se espalhou ao vento. Nenhuma urna mortuária para guardar os restos mortais da sua adolescência. Ela estava resoluta e certa que não queria mais fantasmas na sua vida.

Foi uma dor aliviada, diz ela. Em princípio sentiu-se leve por não ter que carregar para cima e para baixo aquela chave amarrada na alça do sutiã. Não havia mais perigo. Era só o susto quando notava que ela não estava ali. Susto fruto do costume desenvolvido ao longo de tantos anos de angústia e vigilância. Agora já podia entrar no chuveiro despreocupadamente. Ninguém mais iria sorrateiramente lhe roubar a chave. Podia dormir sem ter que sentir o contato frio do metal contra o seu corpo como fazia sempre para ter certeza que ela estava consigo e o diário a salvo.

Mas em compensação nunca mais ia poder buscar respostas, explicações para algumas questões voltando no tempo e lendo aquelas anotações, impressões, opiniões tão verdadeiras.

O que se perdeu nunca mais ela vai achar. Quantas vezes nesses anos ela pensou em como seria interessante poder reler tudo o que escreveu. Como seria importante conhecer a fundo os seus sentimentos e opiniões sobre as coisas, o mundo, a vida e confrontar com o que pensa hoje.

Ela diz que essa época da sua juventude serviu de base para tudo que é hoje e por isso lamenta o gesto tresloucado, pois compreende que o que escreveu naquela época daria a pista para o entendimento dela mesma, uma vez que não se limitara a escrever sobre fatos ocorridos, mas sobre sentimentos e opiniões. Sobre o seu modo de ver a vida sob a ótica de uma adolescente começando a questionar o mundo para desespero dos pais com quem estava em constante rota de colisão. E isso traduzido em desavenças, discussões e brigas feias que lhe causava tanta infelicidade era o motivo desse diário.

Não poder fazer nada do que seria natural e normal da idade como ter e sair com amigos e amigas, namorar, passear, fazer vagens que não fossem só para a casa dos avós, coisas que todas as suas colegas viviam a fazer lhe dava a sensação de ser uma prisioneira.

Achava tudo muito autoritário e as atitudes do pai muito machistas. E ela ousava dizer isso cara a cara com ele ao longo de toda discussão. Tirano, déspota, Hitler, eram os elogios mais leves que ela jogava na cara do pai quando discutiam ao que ele reagia como sempre, lançando mão da sua autoridade de pai e com a velha frase de quem está consciente da sua autoridade: “já para o seu quarto”. E com isso encerrava a questão. E isso se repetia a cada dia e por longos anos até que ela conseguiu o que queria, mas que nem achava que fosse acontecer. Abrir o coração e a mente do seu pai para entender e aceitar o mundo por uma nova ótica.

Foi então que as constantes e inúmeras brigas terminaram por decretar a quebra do arquétipo de pai e pode ver diminuída a distância entre os dois e até se estabelecer um clima de amizade entre eles e assim vivenciar em todo o seu esplendor, que prevalece até hoje, o imenso amor que sentiam um pelo outro e que a postura autoritária de um e o orgulho e teimosia do outro não haviam deixado aflorar, vindo a prevalecer por muito tempo, um clima de animosidade e beligerância na relação de pai e filha.

Era então no refúgio do seu quarto e no seu confidente, fiel e mudo, que ela depositava as suas amarguras. Sem poder ter amigas íntimas para desabafar, sozinha no silêncio do seu quarto ela registrava por entre lágrimas copiosas, que por muitas vezes caíram sobre as páginas onde ela derramava a sua dor, a marca indelével do seu desespero e solidão.

Mas ela, embora entendesse e achasse justas as suas razões, sempre voltava a comentar como seria boa e importante uma regressão no tempo para maior conhecimento interior e seu crescimento enquanto pessoa. Quantas explicações talvez ela não tivesse para coisas que hoje recusa, descarta, abomina e para outras que ela idolatra.

Mas as cinzas ao vento levaram para sempre essa possibilidade. E hoje ela já consegue falar daquele tempo com distanciamento e pensa que talvez até tenha sido bom que não exista mais esse registro de um tempo que foi tão penoso para todos da família, embora reconheça a importância para a sua formação e para que os conflitos latentes pudessem aflorar e serem resolvidos embora muitas vezes de forma truculenta e desgastante para todos pelo sofrimento que causou naquele momento.

As brigas que parecem estéreis e desnecessárias muitas vezes sedimentam o caminho para a paz definitiva e duradoura.

Melhor que os conflitos venham à tona de uma vez do que fiquem incubados minando silenciosamente, num trabalho de formiguinhas, a estrutura das relações que terminam por ruir um dia sem que ninguém espere. E aí parece não ter mais jeito.

E o diário dessa menina foi o resultado e o resumo do que produziram esses conflitos quando começaram a aflorar naquela família de costumes tradicionais e de propagada fé católica com toda a carga moralista que isso acarretava.

E ele era o grito silencioso de revolta da filha mais velha que muito cedo começou a perceber a vida por um outro ângulo e que não aceitava o destino que queriam lhe impor baseado em preconceitos e falsa moral, desvirtuadas pelo comando machista de uma sociedade repressora do prazer e da genuína alegria de ser.

Se ela lamenta não poder mais ler o que escreveu a mais de quarenta anos atrás é por ter consciência de quanto material havia ali capaz de ser explorado como base para o seu maior auto conhecimento e também para uma publicação que pudesse ser mais um depoimento para mostrar ao mundo e ás pessoas o quanto se perdem ou se castram vidas pela intolerância e preconceito.

Graças a Deus ela soube resgatar a sua antes que pudesse ser ceifada pelo facão afiado que as mãos cheias de falsos cuidados teimam em querer proteger da vida lhe negando o direito á liberdade de conduzi-la da forma que lhe aprouver.

Bendito diário!

Que as suas cinzas espalhadas pelo vento tenham caído em terra fértil e feito brotar nos corações o anseio de liberdade e respeito que todo ser humano, e as mulheres em especial, ainda buscam numa luta constante contra a opressão e o preconceito em todo o mundo e que persistem apesar da evolução tecnológica e a globalização da economia e que é um direito inalienável de todo ser humano nessa vida.

Alena Ajira
Enviado por Alena Ajira em 24/04/2010
Reeditado em 24/06/2015
Código do texto: T2216005
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