Anjo torto
Naquele tempo eu não conseguia entender que “linhas tortas” eram essas por onde Ele escrevia certo. Se o certo nem sempre aparecia e só ficavam evidentes os tortos? Aí eu me angustiava e pensava comigo:
Não seria melhor então que Ele escrevesse torto sobre linhas retas...quem sabe assim muitas coisas erradas pudessem dar certo?
O torto e o certo.
O reto e o errado.
Nesse caso a ordem dos fatores deveria alterar o produto ou não?
Essa dicotomia recorrente aparecia em tudo que eu via e assistia olhando o mundo la fora.
Aquele barraco pendurado no alto do morro prestes a desabar...será que ele não podia consertar?
O certo seria deixar como está para ver como é que fica?
Nesse caso, pode-se presumir que o torto seria tentar consertar...(?)
Desentortar o barraco...aprumar o morro...certo...errado.
Algo está fora de lugar.
Mas ouvi dizer...tudo tem sua razão de ser.
Faz parte de um plano maior.
Divino e misterioso.
Você não pode saber.
Você não precisa entender
Você ainda vai ver.
É muito maior que você!
Não é preciso ver pra crer
Há de ter fé, São Tomé!
As perninhas finas e tortas do menino correndo desajeitado atrás de uma bola de meia pelos campos do Senhor.
O bucho grande e sujo, cheio de vermes, das crianças com carinhas tristes de fome, nas portas das casas dos subúrbios das periferias confusas, das nossas metrópoles, megalópoles desumanas. Insanas.
A cabeça grande demais em cima de corpinhos mirrados, fragilizados pela desnutrição. Que judiação.
A boca ávida e torta num esgar de fome.
Em nome de que?
E a justiça cega que não vê!
O dedinho torto e enrugado de tanto chupar.
Os dentes podres e tortos.
O nariz torto sempre escorrendo.
Os olhinhos tortos, remelentos.
As ruas tortas, lamacentas.
As vidas tortas e perigosas, que escondem armadilhas em cada curva.
As mortes tortas e dolorosas.
Essas é que são as famosas linhas?
E as escritas certas...onde e quando vamos encontrar?