Produção do Tempo - Décimo Quinto Dia

"Had to be imagined as an inevitable knowledge,

Required as a necessity requires."

Wallace Stevens

“Sou o que me rodeia”, escreveu Wallace Stevens. As circunstâncias que me envolvem e me permitem pensar a relação entre imaginação e realidade. E a América é essa realidade, apenas pelo facto de que é, como podia não o ser. Nenhuma linguagem é arbitrária, mas sempre exigente, o rigor poético subentende a busca precisa da que produz o máximo resultado sobre o conteúdo. Depuração de palavras que filtre a poeira da respiração poética, uma vala construída no fluir límpido e concreto da simplicidade das coisas. Imaginar é entender o mundo e penetrar numa certa ordem nunca definitiva.

“Ficção Suprema”, disse Wallace Stevens. Parte do mundo para o poema, este, mesmo sendo ficção, revela a essência subtil da realidade. Ou parte da palavra para o mundo, espécie de luz que, eliminando todas as sombras, o encontra na sua verdadeira transparência. Talvez seja assim, talvez não seja assim, e os grandes campos e os pássaros, as tardes longas até ao fim do Verão, a água com o som de uma voz ausente, ou nem havia voz e os pinheiros cresciam ao vento, os eloquentes olhos para narrar. Estendiam as toalhas sobre a relva em Tennessee, aguardando o fim da angústia enevoada de domingo.

Talvez. Fosse. Assim. As folhas caíam no poema. Ele escrevia logo de manhã com laranjas e café. Lembrei-me de outra manhã, de outra manhã, a urgência da felicidade, a sua necessidade, mesmo que o mar fosse ao fundo da avenida uma película triste. Talvez. Assim. Via da janela as mesmas árvores alinhadas e não via a mágoa ou a solidão, apenas o teu rosto era a mágoa e a solidão. Continuava a ler o poema da alegria dele cantado às aves, a entrada pelo céu como um banhista que perde os sentidos e fica de borco no areal e todos julgam que a morte veio com as vestes inexpugnáveis da escuridão.

Poderia ser assim. O silêncio era apenas um exemplo. Lembro-me de caminhar pela noite, as luzes amarelas da cidade portuária, ou as luzes de qualquer cidade em silêncio, tudo brilhava, é isso, sob o tecto esculpido de estrelas. Não era o sonho, eram mais próximas as estrelas, o halo da sombra de ruas brancas e de mulheres. Os ombros das mulheres. Tu dizias, Stevens, “Noite, a fêmea, obscura, flagrante e flexível, encobre-se. Uma lagoa brilha, como uma pulseira agitada numa dança”. O silêncio era apenas um exemplo como os navios na paisagem, tu podias ter escrito ainda que havia um vento ágil.

Quando pensaste o que fazer para viver, falaste – para minha alegria – no vento. Eu digo: ela tinha os cabelos desalinhados pelo ventania, entardecia ao som da água. A luz coalhava o mar por entre as cortinas da névoa. Gosto do frio e do vento incerto contra os vidros, as praias ficavam na linha infinita ao centro das nuvens azuladas. Em todos os lugares, perguntámos onde se podia ir de peito aberto sentir o frio tocar as veias, golpear a garganta com a lâmina do ar. E deixa-me dizer, em todos os lugares eu soube desse lugar, “os nossos grandiosos voos” pelo interior da música subtil dos pulsos.

Isso era o que havia a fazer para saber viver. As palavras não eram fáceis, nem chegámos ao fim da imaginação. O silêncio e as árvores, o vento, as praias profundas, ao anoitecer desaparecem as distâncias - ou as distâncias são outro modo de serem distâncias – e, por isso, sonhámos ir mais longe: como a morte. Os lagos ficavam confundidos na neblina à espera dos próximos “banhos de domingo”, nós intuímos. Mas a esta hora, sem compreender a causa da tristeza, as coisas simples como a água que se esvai, as imagens delidas na penumbra tardia dos campos, “garanted, we die for good”.

A luz do candeeiro cintila sobre a folha, o tempo se esgota e as palavras têm toda a importância por serem palavras. Que mais importa? Sim, diz-me, “what else remains?”

Carlos Frazão
Enviado por Carlos Frazão em 23/04/2010
Reeditado em 10/06/2013
Código do texto: T2214759
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