TÃO LONGE, TÃO PERTO

Eram dez horas. A noite que se aproximava trazia o desejo de uma merecida e confortável noite de sono. O dia não fora tão diferente de tantos outros. O trabalho exaustivo, somente o era porque não correspondia o prazer da utilidade. E assim, há quinze anos, lamentava consigo a perda de tempo desses quinze anos dedicados a coisas nas quais não via sentido. Já eram dez horas. E uma garoa fina cortava a noite num silêncio hospitalar. Prometia ser uma noite de frio, pois ao olhar pela janela, molhada pelas gotas da garoa, não conseguia distinguir as silhuetas que atravessavam a rua, cujo asfalto, molhado e escorregadio, vez ou outra, parecia querer levar alguém ao chão. Os sobretudo, as toucas, os cachecóis e outros acessórios próprios do inverno, eram a vestimenta que se destacava naquela noite de outono. Casais andavam abraçados para se aquecerem, embora, pensava, nem todos parecessem casais na acepção da palavra. Gostava de olhar as pessoas, procurava nesse exercício, ainda que mentalmente, descobrir suas histórias. No seu intimo, pensava que cada uma daquelas pessoas tinha uma história pessoal. E nesse teste de adivinhação, fitava os transeuntes em busca de um abrigo ou a caminho do ponto de ônibus.

E assim à janela ficou. Não saberia precisar por quanto tempo, o que só se tornou real ao olhar para o relógio e ver que já eram meia noite.

Sentou-se no sofá. Pegou um livro. Um romance. Gostava de romances porque neles se via uma pessoa amada. Sonhava com os personagens, com o amor incondicional e suas peripécias, que somente um apaixonado seria capaz de fazer. Mas aquela noite seus pensamentos estavam num tempo já passado. Deixou-se levar pelas lembranças. Do primeiro beijo, da primeira mentira, ainda criança, contada aos seus pais apenas para faltar à aula. Certa vez, lhes disse que sonhara que um trágico acidente ocorreria e desse acidente ela não sairia viva. Riu ao lembrar-se das caras de medo que seus pais esboçaram, das lágrimas derramadas pela mãe e do forte abraço dado pelo pai. Pensou em desmentir, mas não o fez, prometendo a si mesma que nunca mais mentiria para seus pais. Ali ficou. Olhando para o quadro com seu retrato daqueles tempos, levantou-se. Caminhou até a janela e viu que a garoa se transformara numa torrencial chuva. Ficou ali. Nenhuma palavra saia da sua boca, apenas balbuciava sons inaudíveis, mas que denotavam seu espanto com tanta água que caia. E dos raios que explodiam ao longe, procurava desenhar figuras brilhantes.

Cerrou a cortina. Voltou para o sofá. Olhou para o relógio. Três horas! Precisava dormir. Tinha que trabalhar. Fazer relatórios, reuniões, almoço com o presidente da central. A reunião que teriam com um investidor do estrangeiro era a mais importante da sua carreira. Nada poderia dar errado. Tudo fora repassado, os dados estatísticos foram revistos, as tabelas reelaboradas, os gráficos redesenhados. O texto do clipping saíra perfeito. Tudo estava conforme o planejado e a empresa depositava tudo nessa reunião. Afinal, em momentos de crise, a empresa às portas da falência, era natural essa expectativa. Assim ficou e no sofá dormiu.

Acordada pelo som do despertador, às seis horas, como de hábito, levantou. Abriu as cortinas, gostava de abri-las logo que acordava; o Sol nascendo, ainda com seus primeiros raios, contrastava com a noite anterior. Saiu.

À espera pelo elevador parecia sem fim. Abrem-se as portas e ela entra. Cumprimenta um vizinho que não responde. Lamenta, mentalmente, a falta de educação. Lembra-se nessas horas dos seus pais que sempre lhe ensinaram a dar bom dia às pessoas. Conforma-se, embora saiba que no dia seguinte o mesmo vizinho, que por muitos anos tornara-se seu companheiro de elevador, não responderá. Saem juntos. Ele à frente a passos militares e ela, logo atrás, observa, em risos contidos, esse caminhar. A troca de turno da portaria acontece num amálgama de bons dias com “bom trabalho” e “bom descanso”.

Na estação costumeira desce. Antes de entrar, habituou-se a parar para tomar um café com torradas. Desde pequena gosta de torradas. Na padaria, freqüentada há quinze anos, já não precisa fazer o pedido; seu João, baixo e gordo, bigodes densos, sotaque carregado, denuncia sua nacionalidade portuguesa. Ali fica o tempo necessário para o fugral desjejum. Não é adepta da fartura calórica logo pela manhã. Despede-se com um bonito sorriso e um “ate amanhã” que será esperado pelos funcionários da padaria.

Refeita da superlotação do metrô, do café degustado calmamente na padaria, entra em sua sala. À mesa, estão cópias de relatórios, gráficos deixados pelo estagiário, bilhetes confirmando a esperada reunião. Num sobressalto levanta-se ao lembrar que não enviara, ao investidor estrangeiro, o croqui com as mudanças propostas. A palidez lhe toma a face morena que oculta sua real idade. Pensa em um, duas, três, dez desculpas possíveis, mas abandona todas porque nenhuma parecera convincente. Está à beira do desespero quando entra seu acompanhante de reunião. Trocam algumas palavras e fica aliviada ao tomar conhecimento que o mesmo já enviara, por e-mail, os croquis prometidos.

Passado o susto inicial, dá e recebe alguns telefonemas. Faz anotações para soluções futuras e outras com reforços de pedidos ao departamento de criação.

Na hora combinada, saem para a reunião. Ela especialmente trajada para a ocasião: um tailleur rajado, de tom leve, puxando para a camurça, saia de cor creme, até os joelhos, meias de seda com ligas e sapatos altos, do mesmo tom. Seus cabelos, longos e pretos, realçavam sua pele morena, macia como o mais fino algodão, prende o olhar até dos mais desatentos dos homens. O figurino e sua estatura, beirando os 1,80, somados a sua elegância no andar, faziam-lhe notada por todos que entrecruzavam seu caminho. Seu acompanhante, ofuscado pela beleza da colega, parecia desfilar com uma princesa ou noiva a caminho do altar. Essa cena, comentada em tom de piada por uma dos observadores, lembrava o clássico filme “A Princesa e o Plebeu”.

Convidada a comemorar o sucesso da reunião e acertar os tópicos finais do negócio, decide ir para cara. Não gosta de festas nem encontros pós-expediente. Acha que só servem para falar dos colegas, das investidas infrutíferas na estagiária recém contratada, dos casos, claramente inflados, do cara da criação. Decidida cai para casa. Precisa de um banho relaxante.

À frente do prédio onde mora, troca algumas palavras com uma moradora que enviuvara recentemente. Lamenta a perda da vizinha sem deixar de reforçar o carinho que tinha pelo seu marido. Dos filhos órfãos, pergunta como estão suportando a recente tragédia. Lamenta, uma vez mais, pelo caçula que era muito apegado ao pai. Sobre o mais velho, faz rápidos elogios. Entram e se despedem.

Dada a última volta na fechadura, está dentro do seu apartamento. Liga o som e coloca um CD. Gosta, para a primeira relaxada, de ouvir um jazz acompanhado de um bom vinho. Despida, fica defronte ao espelho. Olha-se e observa seu corpo moreno. Suas curvas se sobressaem ante a cintura definida. Deitada na banheira preparada com sais de banho deixa a espuma tomar conta do seu ser. Assim, fica. Embalada pelo sobe e desce das mãos pelo corpo, pensamentos libidinosos lhe vêm à cabeça. Tomada pelo êxtase ocasionado pela fricção das mãos, chega ao ápice tão esperado e negado a tantas mulheres. O Orgasmo proporciona-lhe uma calma quase sântica.

Refeita do dia trabalhoso, mas encerrado com sucesso, ela, só em seu apartamento, e interessada que é pelas notícias políticas, liga a TV. Assiste aos jornais com a atenção só encontrada na maioria das mulheres na hora da novela. Não gosta de novela porque vê nessa forma de entretenimento, um meio de desviar as atenções dos reais problemas do país. As dificuldades vivenciadas pela maioria da população, a falta de investimentos na educação, na saúde, nos transportes e em toda infra-estrutura, associada ao desemprego são, a seu ver, os motivos que norteiam e contribuem para o aumento da violência. Não aceita, repudia até, as teses que buscam justificativas no aumento desses índices, apenas e tão somente, nos efeitos, esquecendo-se das causas. E assim ficou frente à televisão.

Eram dez horas. Diferente da noite anterior, essa trazia uma brisa refrescante. Abre a cortina e a janela. Lá fora, casais bebem e ouvem, no bar temático do outro lado da rua, uma romântica música. A banda presente da noite toca um conhecido repertório. Solitária em sem apartamento, ouve cada canção e chora ao lembrar-se do amor há muito esquecido. Corre ao quarto. Duma mala antiga, retira álbuns de fotos dos tempos de namora. Olha algumas com saudade, outras lhe provocam tímidos risos. Mas uma, especialmente, uma, segura com mãos firmes e fixamente olha para aquele rosto. Não diz nada. Apenas o silêncio se faz ouvido. E assim fica.

Inerte sobre a cama, qual uma donzela a espera do amado para o encontro tão esperado, entrega-se às memórias libidinosas. A respiração descompassada facilita entregar-se às reminiscências luxuriantes.

Resolvida a ter uma noite diferente, repete um hábito há mui deixado. Sai.

As luzes, coloridas como o arco-íris, que se projetam nas paredes, não permitem distinguir as pessoas que transitam pelo salão, vêem-se apenas sombras. Misturada com a música que impede uma conversa com alguém ao lado, nada ouve, nada, se fala. A polifonia de vozes antecipa sua partida. À porta da boate, pede para trazerem seu carro. Pensa em desistir, mas não o faz. Entra no veículo.

Ao volante, percorre a cidade.

Cansada de dirigir, pára. Fica ali por algum tempo observando os pedestres. Nada, absolutamente nada, sugere que fizera a escolha certa. Pensa que deveria ter ficado em casa, mas as lembranças do amor esquecido e relembrado despertam o impulso sexual há muito adormecido. E assim fica.

Bocas se tocam e se lambem num frenesi quase adolescente. Mãos se encontram e se afastam. Ela, tomada de êxtase, se deixa tocar. Os seios, fartos e viçosos, como um imã, atraem os lábios do parceiro. Prestes a consumar e consumir o outro, memórias sorrateiras invadem seus pensamentos. E numa inexplicável atitude, interrompe seus propósitos; lembranças do ser amado, como a um fantasma que visita sua amada, qual obstáculo intransponível, impedem que siga em frente. E La, como uma freguesa paga, como já fizera tantas outras vezes, pelo serviço não prestado.

Às seis horas, como de hábito, levantou. Abriu as janelas, mas o Sol, encoberto por uma densa neblina, parecia não ter forças para irromper as nuvens que se formavam no horizonte, contrariando o “homem do tempo” que afirmara que o dia seria ensolarado e quente.

Vestida num sobretudo, comprado numa viagem que fizera à Europa, sai. No elevador cumprimenta o vizinho que não responde. No metrô, rostos já conhecidos, pela habitualidade do horário, parecem cansados. Na padaria, seu João, traz o de sempre. Sobre sua mesa, papéis deixados pelo estagiário. Croquis, tabelas, gráficos, clipping, esperam sua aprovação e na pequena mesa de reunião no canto da sala, um buquê e um cartão. A mensagem, como reconhecimento aos esforços dispensados a uma causa julgado perdida; qual técnico que contraria todas as projeções numa partida de futebol, era apenas a certeza que fizera, com sucesso, tudo que estivera ao seu alcance. Assim, como em tantas outras, leu aquele cartão e guardou. Pediu à secretária para que trouxesse água para as flores e o estagiário, que acabara de entrar à sala, orientou-o a dirigir-se ao departamento de criação e ver se tinham providenciado as pendências do dia anterior e, ainda, para que passasse na manutenção e mandassem um técnico para verificar o sistema de telefonia, pois não conseguia falar com o jurídico. Deixada só pela secretária e o estagiário, olha pela janela de sua sala. Toca seu celular.....

Sim, pois não, atende o porteiro alguém ao portão.

- Não senhor, não conheço ninguém com esse nome.

Dada a insistência da pessoa ao interfone, pede que essa espere um pouco, pois, pelo rádio, irá consultar o zelador.

- Senhor, falei com o zelador e ele disse que essa pessoa mudou-se há uns dois meses, parece que foi para fora do país, foi o que ele disse. Mas não sabe se é esse o nome dela.

Questionado se podia entrar para mostrar um foto dela para o zelador, o porteiro autoriza e chama seu chefe. Confirmando se tratar da mesma pessoa, o interessado agradece e deixa o prédio.

Lamentando todos esses anos dedicados a procurar sua amada sem tê-la encontrado nos rostos observados da janela de seu apartamento, nas caras sonolentas e cansadas do metrô, nas horas insone dedicados ao trabalho ou nas noites entregue a corpos femininos, sem consumar o prazer desejado no da amada. Assim anda pela rua e, após três quadras, entra em seu prédio e, já dentro do seu apartamento, com a foto que guardara dos momentos que ficaram juntos, lágrimas escorrem e ele dorme.