DAR O NOME - II
- Está preparado para uma descida ao Inferno, Benito?
- Ai Jesus, Virgem Santíssima, que medo! Sim, sim, eu adoro mistérios. Sou mais forte do que aparento.
-Sem dúvida, Benito, todos nós somos bem mais fortes do que aparentamos. Nem sabe o quanto.
- Claro.
-Era o ano de 1946. Também nesse ano a Primavera chegara sem surpresas para as espécies do planeta. Pensava eu. Na minha preciosa e doce ingenuidade de que o mundo seria previsível e condescendente. Apesar da guerra que terminava. Afinal até as guerras eram parte do destino do mundo desde que o Homem aparecera. Não deveria haver nada de novo com mais esta. Pensava eu na dourada era da inocência dos meus vinte e dois anos. Estava arrogantemente colado à lógica das ciências racionais. Queria ser médico. De facto estava quase a consegui-lo. Um dia recebo um telegrama do meu irmão. Meio-irmão, o Thierry. Já lhe contei a história da minha mãe. Nada de novo para si, meu caro.
- Sim, sim, a senhora baronesa que fugiu com o francês e deixou o seu pai entregue ao desgosto. Que destino inglório teve o seu paizinho...
- O destino tem as costas largas. O meu pai deitou-se na cama que ele próprio fez...
- Coitado, não diga isso, era seu pai.
- Era. Era sem o ser. Não lhe assentava bem o papel de pai. Nem o de marido. Mais do que ter hábitos de solipsismo ele era um verdadeiro misantropo.
- Essa parte não me tinha ainda contado. Ora explique melhor, Sr. Amílcar...
- Bem observado, a ver se não se esquece de voltarmos ao solipsismo amanhã. O meu pai, no entanto, é personagem secundária nesta trama. E quem não é de cena, sai de cena.
- Com certeza, tem razão, continue, perdoe-me, Sr. Amílcar.
- O meu irmão rogava-me a ir ao seu encontro. Ir a França em pré-época de exames de medicina. Como se eu não tivesse vida própria. Mas aquelas palavras suplicantes fizeram-me pressentir algo de estranho. Algo mais do que simplesmente estranho. Qualquer coisa de sinistro, monstruoso, desconhecido. Creio que, mais do que a minha amizade por ele, foi a minha vontade de dominar que me levou a viajar. Queria mostrar ao meu irmão, a mim, que nada era mais forte que a mente humana. Não podia haver medos invencíveis. Estava confiante de poder ajudar o Thierry, qualquer que fosse o caso, pois ele pouco ou nada revelava no breve texto.
- Quem sabe não tivesse sido o destino...
- Falou o fadista!
- Foi à guerra o seu irmão?
- Não. Esteve comigo, aqui na quinta enquanto aquilo durou. Regressara quando os aliados libertaram França. E durante meses não soube nada dele. Não me preocupei. Ele era dois anos mais novo mas sempre foi mais afoito, mais dado à aventura, ao conflito físico. Se não tivesse sido eu a controla-lo cá ele tinha mesmo ido para a frente de batalha. E no entanto não o salvei do horror maior...
- Que horror?
- Posso continuar?
-Ai, perdão!