A companhia da osga
A lagartixa é a testemunha ferina dos meus atos cotidianos, e eu não tenho coragem que baste para matá-la. O fato é que ela, já há anos, me acompanha e me observa, pensando-se oculta, por trás do quadro, réplica de Monet, que se abriga em uma das paredes da minha sala.
Outro dia, tive uma certeza breve de tê-la visto piscar para mim, marota, enquanto jantava uma de minhas meninas. Não gosto dela, para falar a verdade. Mas aturo-a, como se não a pudesse notar.
Ela representa, lisa e fria, meu abandono - não um abandono de outrem em relação a minha pessoa, mas uma espécie de auto-insulamento. Lisa, fria e escorregadia, ela representa o meu mundo, e talvez, junto com a réplica de Monet onde reside, seja o que há de mais valioso para mim.
Posso ouvi-la de noite, do silêncio profundo somado ao breu, vasculhar com suas minúsculas patinhas dotadas de minúsculas nervuras o teto, em busca de alimento. E assim, observadora e quieta, a lagartixa me representa, caçando.
Vez ou outra sinto como se ela me pudesse delatar. Como se ela fosse a única testemunha viva dos meus crimes.
A osga e seus olhos me acusam e me julgam o tempo todo, e, mesmo autocomiserado, eu os mantenho vivos e alertas, ainda que perigosos sejam. Com freqüência ela vem até a cozinha me ver preparar o jantar. Não sei bem o que comem as lagartixas, mas acredito que essa goste do mesmo que eu.
Ao pensar nisso me sinto mais livre, menos culpado, e, por conseguinte, mais próximo da osga. Por certos instantes a osga é minha amiga. E durante os dias de reclusão, uma boa companheira.
Já li algumas histórias para a osga, confesso aqui, mas não é recorrente. Já a nomeei, também, Elizabete. Mas nosso relacionamento é por demais conturbado, e pouco tempo depois volto a chamá-la Osga.
Admito também uma certa instabilidade psicológica, mas a lagartixa tem culpa parcial nisso. Seu julgamento por demais passional me enoja, como sua língua afiada.
E nós sempre discutimos por causa da sua intolerância. Mas as frases silenciosas da Osga ferem, e seu farfalhar doentio também. De vez em quando eu resigno da discussão e vou dormir.
De vez em quando, não.
Eu já chorei por causa da osga, mais de uma vez.
E nesses momentos não me resta mais que me tornar a própria osga.
E sair, e caçar: quieto e observador.
E é nesses dias que eu mato.