Eu, o Magnífico Cine Astor

Filho do Conjunto Nacional, e da exuberante Avenida Paulista, nasci em 1956 pelas mãos do arquiteto David Liebeskind.

Eramos 3 irmãos: Cine Rio - e os gêmeos - Restaurante e Confeitaria Fasano - quando juntos aos nossos pais formávamos uma família feliz. Até que em 1963 veio para cá o ateliê de alta-costura, de Madame Rosita, que depois mudaria-se para um palacete na Av. Paulista...

- Papai, isso vai dar problema, olha o que eu estou dizendo...

E não era para menos. Porque nos desfiles de moda de Madame Rosita as senhoras da sociedade paulistana tramavam um protesto contra a exibição de "La Dolce Vita", de Federico Fellini.

Senhoras católicas, que insufladas pelo sermões dos padres das igrejas de São José, e Nossa Senhora do Brasil, vieram até aqui, rasgaram cartazes, quebraram as minhas vitrines, para exigir que tamanha afronta à moral da sociedade paulistana fosse imediatamente retirada da programação do cinema.

Conseguiram...

Eu não queria encrenca com Madame Rosita e aquele bando de loucas.

Quando lá foi " La Dolce Vita " fazer história em uma sala do centro da cidade. Arrastando uma polêmica que vinha desde lá da Itália. Onde o jornal L'Obssevatore Romano, órgão oficial do Vaticano, escreveu após a estreia do filme: "Basta! Basta, de lançar descrédito sobre a Itália, basta de cobrir de lama uma nobreza eclesiástica de tanto mérito!" .

Vaticano que ameaçava excomungar qualquer católico que assistisse La Doce Vita. Enquanto Frederico Felini já estava excomungado. Decreto que seria retirado só pouco antes da sua morte. A igreja revoltada porque La Doce Vita mostrava um vasto conjunto de pecados e imoralidades, cometidos com uma leveza impressionante. Enquanto mentiras, luxúria e atos brutais, eram mostrados pelas câmeras dos paparazzis, nas atitudes dos personagens, como se estivessem dentro da normalidade.

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Cine Astor onde muitos casais deram o seu primeiro beijo.

A nossa sala escolhida para sediar o 11 prêmio Avon. Com a exibição de "Deus criou a Mulher ", com Brigite Bardot no papel de Juliete Hardy - famosa até hoje por esta frase do roteiro: " No que diz respeito à psicologia feminina, meu pobre Antoine, ficaste na idade da pedra."

Cinema onde também passou " Sete Semanas e Meia de Amor " , para causar muito frisson e filas na calçada.

Porém, como em tudo, o tempo também passaria para nós, até chegar os dias de decadência. Contribuindo para isso a violência nas ruas, o trânsito, os shoppings, o enfraquecimento das relações de vizinhança. O que fez as pessoas se confinarem mais em suas casas. Até que os cinemas de rua se transformaram em igrejas evangélicas, supermercados...

Neste caso, felizmente, o patrimônio histórico tombou o prédio do Conjunto Nacional, e junto com ele a estrutura inclinada do cinema, para inviabilizar a demolição. Assim preservou-se a sua antiga estrutura, para depois virar uma mega livraria. Um dos efeitos dessa iniciativa quem conta é Inácio de Loyola Brandão:

" Quando publiquei O Verde Violentou o Muro vi uma senhora no fim da fila, e conversei com o dono para buscá-la: ' Tudo bem, é uma gentileza. O senhor me passa à frente, ele assina e vou embora. Mas vou para casa fazer o quê? Ficar vendo televisão sozinha? Não. Fico aqui conversando, conhecendo gente diferente, me divertindo. Obrigada!'. Quando ia chegando perto de mim, ela saia, voltava para o final da fila".

Preservava-se desta maneira não só a memória afetiva do espaço original, projetado pelo arquiteto David Liebeskind, como mantiveram as portas da livraria exatamente no mesmo lugar do cinema.

Assim, eu que um dia fui o cinema mais charmoso de São Paulo, só poderia mesmo dar lugar à melhor das livrarias, e às suas mil e uma noites de autógrafos, regadas à vinho branco e frisantes...

Com suas borbulhas que nascem...

movem-se...

e morrem...

Até gravitar no éter feito lembranças.