A sublime nudez semi-conhecida
Não haveria quem, por mais força argumentativa que ostentasse, pudesse tirar-lhe da cabeça a idéia de que a nudez semi-conhecida era a mais sublime de todas. Não a nudez dos corpos lascivos e expostos, nem a de companheiras a muito conhecidas, cujo ato de despir-se frente ao companheiro adquirira contornos de liturgia. Sim, a beleza semi-conhecida, para Silvio, era a mais sublime, a mais bela de todas.
Pensamento periférico, que como engrenagem mestra movia todos os outros enquanto caminhava rumo à lotérica. Não se esquecia de Talma, seu corpo delgado, seus cabelos longos e cacheados, seu rosto perfeitamente simétrico. Não se esquecia da tatuagem em sua virilha direita, nem da que trazia na parte de baixo das costas. Foi aquela, a mais tocante, a nudez mais própria do desabrochar dos sentimentos que houvera conhecido até então. As casas de expedientes jocosos não eram mais capazes de tomar-lhe as atenções e os sentimentos depois daquela noite.
Com a mente de matemático domada pelo funcionalismo público, punha-se a relembrar os detalhes do plano; a hipoteca da casa, herança de família, a venda do carro. Tudo transformado em bilhetes de loteria. Tinha chances reais, tinha fé. Tinha a esperança dos que esperam que o mundo seja justo, de quem acredita na sustentação dos prazeres que deixa o dia a dia menos árduo. Caminhava a passos lentos.
Sim, a nudez sublime de Talma. A nudez do ser a priori desejado, que já se expunha com roupas próprias da casa, como um animal que se camufla, que se adapta ao ambiente num gesto de auto-preservação. Mas na casa dos expedientes jocosos, a tática de sobrevivência era outra. Não se camuflava. Adaptar-se ao ambiente natural significava colocar-se a vista, ser notada. Exibir as pernas perfeitas, o busto semi-nu. Não era a nudez semi-conhecida mera descrição material, não era o mero arroubo dos desejos carnais. Possuía também seus aspectos filosóficos e psicológicos. Envolvia também o semi-conhecimento.
Semi-conhecimento. Muitas vezes mais completo que o conhecimento diário. A rotina transformava o conhecimento em monotonia. Exacerbava os defeitos e mascarava as qualidades. O ambiente onde dever-se-ia manter o afeto transformava-se no campo selvagem darwiniano. O mais dissimulado sobrevivia. O mais capaz de esconder sua humanidade, o mais apto a camuflar em meio a beijos falsos a sua baixeza natural.
Há muito Silvio havia escolhido a reclusão; nos últimos anos, sua rotina se resumia a repartição pública onde trabalhava e a casa onde descansava as suas desgraças. Com menor freqüência, quando seu desejo obrigava, rendia-se a sua humanidade e dirigia-se a algum prostíbulo, onde vez após outra tentava enterrar este seu último ímpeto de sociabilidade. O álcool e o sexo completavam a sua vida sem grandes emoções; não possuía a regularidade de Gabo, nem pretendia esperar os 90 anos para começar a viver. Sua vida já era fato. Sentia-se vivo, a dor das noites solitária e mal dormidas lhe mostrava que estava.
- não obrigado
Uma semana antes Silvio estava sentado na casa de sempre, na mesa de sempre, tomando a sua bebida adocicada, mas com um teor de álcool que poucos agüentariam. Depois de algumas visitas as virtudes das moças da casa já não chamavam tanto a atenção como antes.
- não obrigado, hoje não.
Naquela noite não buscava sexo. Queria tão somente fugir da reclusão, sentar-se em algum lugar de onde pudesse contemplar o espetáculo da decadência; o desfile dos desejos; a peça que a ele parecia ridícula, mas da qual não conseguia deixar de participar.
Esvaziou seu copo pela terceira vez e pediu outra bebida ao garçom. Olhou para o balcão, mal iluminado e tomado pela fumaça expelida pelos pulmões doentes de uma série de fumantes. Não suportava a fraqueza dos vícios. Enxergou a moça que ainda desconhecia; cabelos negros presos, corpo delgado, 1,65m. Mais tarde pode contemplar-lhe os olhos negros.
-quem é ela? Perguntou ao garçom assim que este chegou junto a sua mesa, esquecendo-se por completo da bebida desejada.
- ela? É nova. Chegou hoje. Ainda está se adaptando.
- quero-a.
-como?
- Diga que quero conversar.
O garçom sorriu de maneira cortês e se distanciou da mesa. Pode ver quando deu seu recado à moça que, no mesmo momento aproximou-se da sua mesa.
- Boa noite ... me paga uma bebida?
- Primeiro conversamos, depois bebemos ...
- Nossa, tudo bem, você que manda.
Pode notar a expressão dos olhos dela mesmo à meia luz.
- Meu nome é Talma.
Mas pela experiência de Silvio, sabia que os olhos, por mais expressivos que fossem não diziam nada.
- Quanto?
- O que? É o preço da casa...
- Então fechamos. Vamos resolver logo isso.
O corpo, para Silvio, as expressões do sexo, essas sim diziam muito sobre o que eram as pessoas. Pessoas retraídas, tímidas, coagidas pelos valores da vida entre iguais, quando se liberavam na cama, aí sim mostravam a sua verdadeira personalidade.
- Não posso.
- Como não? O que faz aqui então? Perguntou com tom firme, mas não agressivo ou desrespeitoso. Para ele, entre adultos que possuíam interesses comuns, não havia lugar para a brutalidade.
- Cheguei hoje. Sempre que chego num lugar novo, primeiro tenho que me sentir a vontade.
Talma pode ver a fisionomia de Silvio alterar-se, passando da serenidade a frustração. Contudo, a reação de Silvio a impressionou.
- Tudo bem, pegue a sua bebida e sente aqui ... já que você não vai mesmo trabalhar hoje então não tem o que perder.
Chamou o rapaz que servia a mesa e deixou que ela escolhesse o que beber. A atitude de Talma o surpreendeu. A bebida que pedira não era exatamente a mais barata, mas também, não era a mais cara.
A nudez semi-conhecida. Foi nessa mesa, nessa noite que percebeu que conhecer a alma tornava o conhecimento do corpo muito mais aprazível. Parecia enfim, ter encontrado olhos que falavam. Falavam uma língua que poucos poderiam entender. Via suas coxas, seu busto, seus mamilos que tentavam romper o fino tecido que envolvia seus seios bem feitos.
- Posso dançar pra você.
A nudez que veio depois completou a que veio antes. Viu seu corpo tomado pelo ritmo da música; viu revelarem-se os poucos segredos que ainda permaneciam escondidos até aquele momento. Pode tocá-la, sentir o seu cheiro. Pode sentir o seu gosto em um breve encontro de lábios, cúmplices em meio a escuridão.
- Agora tenho que ir.
E se foi.
Voltou para casa tomado por uma estranha sensação; por um prazer desconhecido. Seu libido, sua vontade sexual ainda estava ali ... mas não era ela a orientá-lo. Dormiu. Teve sonhos; sonhos que para ele possuíam um estranho sabor. Acordou cedo. Foi para o trabalho. Estava feliz. O dia passou como se estivesse em férias. Nem os avanços raivosos de seu superior mudaram seu estado de espírito.
Voltou para casa. Ainda tomado pela mesma sensação. Banhou-se. Encontrou Talma em seus pensamentos. Comeu. Alimentou seu corpo. Tentou apaziguar seu espírito. Fracassou.
Por volta das 23 horas seguiu o seu desejo e voltou para a boate. Sentou-se ansioso. Pediu a bebida de sempre. Bebeu lentamente, enquanto observava o ambiente ao seu redor, procurando por Talma. Bebeu a primeira dose. Pediu a segunda e logo após a terceira, sem conseguir encontrá-la na casa semi-vazia.
- Onde está a Talma? Perguntou ao moço da bebida, quando veio trazer-lhe o quinto copo.
- Ela não ficou ... parece que teve que voltar para casa ... algum tipo de problema familiar.
Voltou para casa e não conseguiu esquecê-la. O trabalho e os dias passaram a ser um fardo para ele. Durante um mês retornou todos os dias à boate, esperançoso pela volta de Talma. Não era um cliente desconhecido, mas também suas visitas até então não possuíam a regularidade que passou a ostentar. Sentava-se só. Desprezava companhias. Bebia até quase o amanhecer, diariamente.
Na quarta semana, por fim, teve a coragem de abrir-se, de expor a situação. Recebeu atenção do gerente do lugar.
- O senhor entende ... mesmo sendo um cliente nosso há tanto tempo, não podemos dar esse tipo de informação. Não, não desconfiamos do senhor, De maneira alguma. É que muitas vezes as moças têm famílias que pensam que elas saíram de casa para trabalhar em alguma loja de roupas em uma cidade maior ... que oferecesse melhores oportunidades. Muitas delas são casadas, têm filhos e tal.
Mas suas visitas freqüentes, a maneira como parecia murchar, convenceram o gerente de que não havia mal em dar-lhe uma porção da verdade.
- olha, ela é viúva. Tem um filho de quatro anos que está doente em tem que se tratar. Não existem muitas esperanças para ele; o tratamento é caro, custa algumas dezenas de milhares de reais. Mesmo se trabalhasse muito, ela não conseguiria ganhar tanto no tempo necessário ... como? O senhor quer ajudar? Longe de mim desconfiar do senhor; sei que tem um bom cargo, mas também sei que não é rico .... como? Vai dar um jeito? Mas como....? Se eu fosse o senhor não me meteria. Aproveite a vida, deixe isso passar ... o senhor não é o primeiro, nem será o último a se apaixonar por uma moça da vida, deixe estar...
Não, ele não conhecia, nem ao menos poderia imaginar o quanto sublime era a nudez semi-conhecida; com certeza também nunca tivera Talma em seus braços, despida de roupas e de hipocrisias. As mulheres, os seres humanos em geral, para Silvio sempre se mantinham vestidas com uma ou outra.
Não há aqui contradições. Para Silvio, a revelação, a nudez, não consistia na revelação de todos os detalhes; não saber que Talma tinha filho e problemas não queria dizer que se manteve vestida a sua frente. A nudez consistia em mostrar-se como se é. É legítima a queixa de Brás Cubas; a final é necessário explicar tudo!!
Os dias seguintes foram de insônia e perdição. Não dormia, faltava ao trabalho. Não saia de casa. Não freqüentava a boate. Seus sentidos estavam confusos e desorientados. Pobre daquele que testemunhou a sublime nudez e a perdeu numa noite.
Foi aos poucos que o plano de desenhou em sua mente, com a obsessão da idéia do emplasto. Era funcionário público, respeitado. Lidava com dinheiro que não era seu. Não foi difícil arranjar uma maneira de desviá-lo. Apesar disso, necessitava de uma cortina de fumaça, de algo que desviasse a atenção. Para quem quisesse investigar suas contas, teria a desculpa da venda de seus bens.
Mesmo todo o dinheiro desviado, pelo que soube de outras conversar com o gerente da boate, não cobriria as necessidades de Talma e seus filho. Nem se juntasse o dinheiro conseguido com o seu parco patrimônio pessoal. Ter aquela quantia e ter nada, para ele, significaria o mesmo.
Arriscou.
Tudo foi transformado em bilhetes da loteria.
Acompanhou o sorteio de casa, no mesmo sofá no qual havia passado a maior parte de seu tempo nas últimas semanas. Poucos minutos foram necessário para que o cruzamento entre os números sorteados e os apostados – feito no seu computador de mesa, apontassem para o resultado catastrófico.
Agora sim, não tinha nada.
Soube da morte do filho de Talma pouco depois. Soube de sua desolação, de sua tristeza. Soube de seu endereço na cidade vizinha.
Pouco depois também, uma investigação interna apontou para o desvio de uma quantia considerável de dinheiro em sua repartição. Chegar a ele seria uma questão de tempo.
Agora caminhava rumo à lotérica central da cidade. O metal frio do revolver em sua cintura o incomodava. Dentro em pouco teria dinheiro para fugir, levando Talma consigo.
Poucos dias depois o jornal local estampava a notícia de um funcionário público acusado de corrupção que houvera enlouquecido, assaltado uma lotérica, sem explicação plausível, que não a loucura, tentado seqüestrar uma mulher que acabara de perder o filho. A mulher, ainda traumatizada pela perda, ao deparar-se com o invasor, não teve outra saída que não feri-lo mortalmente com a faca com a qual cortava cebolas para preparar o jantar para ela e o filho mais novo, de poucos meses de idade.
Por que ele não reagiu e a levou consigo em meio ao seu surto de insanidade, o jornal não soube esclarecer.
O dinheiro do roubo tal como o desviado pelo funcionário não foi encontrado.
P. R. O