Réquiem aeternam dona eis
Quando acordei já trazia o rosto de quem acordara por exigência das circunstâncias. Não fosse imperiosa necessidade de sair à rua – o que me convertia na mais escorregadiça criatura por tantas desculpas e motivos para não fazê-lo – talvez tivesse evitado o cruel destino daquela tão grácil criaturinha, visitante habitual de meu jardim.
Tranquei o portão carregando o pesado fardo do mau humor, o que tornava a caminhada ainda mais exaustiva. Parecia uma máquina velha, enferrujada, forçando, torcendo, dolorosamente, suas engrenagens secas, emperradas, que finalmente cediam aos trancos de incessantes reclamações. O sol quente, o calor intenso do dia instigava minha coragem de prosseguir pelo asfalto flamejante da rua ainda mais comprida.
Já tardezinha, retornei antevendo os fios d’água bolinando meu corpo suado, que se aquietaria perdido no cheiro fresco de ervas. Foi então que vi a cadela, feita uma esfinge, sob a rede da varanda, velando o corpo inútil de um pardal. Mais nítido, porém, do que a imagem do sonhado banho, era o pânico que, de imediato, com garras e dentes pontiagudos, me plantou ali, naquele exato e petrificado instante, preservando curta e imprópria distância entre nós. De pronto, do mais profundo de minhas retinas, constatava o ato imperativo de me desfazer da morte, agora senhora única do corpo frágil, inerte, da ave.
A cadela me olhava com olhos de avelã, exibindo, cheia de si, visíveis indícios de pura euforia. De olhos parados, cheios de apelo, à espera de um elogio pela captura da caça que me oferecia. A cauda oscilava em movimentos pendulares, de clara felicidade. Eu entendia o gozo intumescido de vaidade que unia língua, olhos e orelhas em um só retrato de amor e dádiva. O troféu conquistado, o presente oferecido, de amolecido e mirrado corpo banhado de saliva, existia ali, diante da realidade atroz, que num esforço desumano eu apreciava, envolvida por uma nuvem de repulsa e comiseração.
Diante de minha imobilidade, a cadela ganhou tempo e abocanhou o corpo do pardal, levantou o focinho enquanto balançava de um para outro lado a cabeça, expondo entre os dentes as pernas “apalitadas” do bichinho. “Solta!” – Gritei no repentino sobressalto. Ela se levantou com olhos de bicho de pelúcia, onde boiava carinhoso e infantil jeito de ser e saiu saltitando, carregando o pardal, varanda afora.
Sufocou-me um desejo intenso de recriar, reinventar todo o meu itinerário daquele dia. Contrariada, segui atrás da cadela. Lá estavam ela e ele, do outro lado da varanda, na mesma posição do antes. Na dúvida, buscava uma solução capaz de separá-los. Ela, então, apoiou o focinho no chão e pôs-se a analisar a presa como se vigiasse um inimigo pronto para o ataque, na expectativa, talvez, de um último sinal de vida que o miserável e encolhido pardal pudesse anunciar. Definitivamente, ela o vigiaria por longo tempo, ora sugando o cheiro, ora lambendo as penas do bicho.. Talvez, para exercitar um distante, mas ainda latente instinto de fera, amaciado pela recompensa avassaladora de afeto e afagos humanos.
Minha coragem – de tocar no pássaro morto – era uma mentira, mas minha necessidade – de não compartilhar a morte – era infinitamente mais aguda. Apostei na fera, prisioneira de meu afeto. Entrei, fechei as portas e, não demorou muito, a cadela farejava buscando, pela fresta entre a soleira e a porta, por meu cheiro. Olhei pela janela e pude ler a súplica inocente, o pedido quase faminto, de companhia. Trocamos de lugar. Ela entrou e eu, saí.
Lá fora, o pardal. Procurei uma caixa, estrategicamente aproximei a pá do corpo morto e, sem olhar, o recolhi. Fechei a caixinha, levei para um cantinho do jardim e o plantei lá, como se fora uma muda de passarinho, mas precisamente, de pardal.
“Se alguém me vir fazendo isso...” Pensei. Mas ali não havia ninguém que pudesse me chamar louca ou boba ou criança. “É só um pardal morto!” – Ainda assim insistia a mulher-adulta-dentro-de-mim, sentindo-se ridiculamente tola...
Como se perder, fosse apenas um verbo. Como se fosse pecado, como se fosse insano esse amor absolutamente puro. Como se a vida significasse menos, como se a vida fosse menor por bater no peito de um pardal de jardim.
Quando acordei já trazia o rosto de quem acordara por exigência das circunstâncias. Não fosse imperiosa necessidade de sair à rua – o que me convertia na mais escorregadiça criatura por tantas desculpas e motivos para não fazê-lo – talvez tivesse evitado o cruel destino daquela tão grácil criaturinha, visitante habitual de meu jardim.
Tranquei o portão carregando o pesado fardo do mau humor, o que tornava a caminhada ainda mais exaustiva. Parecia uma máquina velha, enferrujada, forçando, torcendo, dolorosamente, suas engrenagens secas, emperradas, que finalmente cediam aos trancos de incessantes reclamações. O sol quente, o calor intenso do dia instigava minha coragem de prosseguir pelo asfalto flamejante da rua ainda mais comprida.
Já tardezinha, retornei antevendo os fios d’água bolinando meu corpo suado, que se aquietaria perdido no cheiro fresco de ervas. Foi então que vi a cadela, feita uma esfinge, sob a rede da varanda, velando o corpo inútil de um pardal. Mais nítido, porém, do que a imagem do sonhado banho, era o pânico que, de imediato, com garras e dentes pontiagudos, me plantou ali, naquele exato e petrificado instante, preservando curta e imprópria distância entre nós. De pronto, do mais profundo de minhas retinas, constatava o ato imperativo de me desfazer da morte, agora senhora única do corpo frágil, inerte, da ave.
A cadela me olhava com olhos de avelã, exibindo, cheia de si, visíveis indícios de pura euforia. De olhos parados, cheios de apelo, à espera de um elogio pela captura da caça que me oferecia. A cauda oscilava em movimentos pendulares, de clara felicidade. Eu entendia o gozo intumescido de vaidade que unia língua, olhos e orelhas em um só retrato de amor e dádiva. O troféu conquistado, o presente oferecido, de amolecido e mirrado corpo banhado de saliva, existia ali, diante da realidade atroz, que num esforço desumano eu apreciava, envolvida por uma nuvem de repulsa e comiseração.
Diante de minha imobilidade, a cadela ganhou tempo e abocanhou o corpo do pardal, levantou o focinho enquanto balançava de um para outro lado a cabeça, expondo entre os dentes as pernas “apalitadas” do bichinho. “Solta!” – Gritei no repentino sobressalto. Ela se levantou com olhos de bicho de pelúcia, onde boiava carinhoso e infantil jeito de ser e saiu saltitando, carregando o pardal, varanda afora.
Sufocou-me um desejo intenso de recriar, reinventar todo o meu itinerário daquele dia. Contrariada, segui atrás da cadela. Lá estavam ela e ele, do outro lado da varanda, na mesma posição do antes. Na dúvida, buscava uma solução capaz de separá-los. Ela, então, apoiou o focinho no chão e pôs-se a analisar a presa como se vigiasse um inimigo pronto para o ataque, na expectativa, talvez, de um último sinal de vida que o miserável e encolhido pardal pudesse anunciar. Definitivamente, ela o vigiaria por longo tempo, ora sugando o cheiro, ora lambendo as penas do bicho.. Talvez, para exercitar um distante, mas ainda latente instinto de fera, amaciado pela recompensa avassaladora de afeto e afagos humanos.
Minha coragem – de tocar no pássaro morto – era uma mentira, mas minha necessidade – de não compartilhar a morte – era infinitamente mais aguda. Apostei na fera, prisioneira de meu afeto. Entrei, fechei as portas e, não demorou muito, a cadela farejava buscando, pela fresta entre a soleira e a porta, por meu cheiro. Olhei pela janela e pude ler a súplica inocente, o pedido quase faminto, de companhia. Trocamos de lugar. Ela entrou e eu, saí.
Lá fora, o pardal. Procurei uma caixa, estrategicamente aproximei a pá do corpo morto e, sem olhar, o recolhi. Fechei a caixinha, levei para um cantinho do jardim e o plantei lá, como se fora uma muda de passarinho, mas precisamente, de pardal.
“Se alguém me vir fazendo isso...” Pensei. Mas ali não havia ninguém que pudesse me chamar louca ou boba ou criança. “É só um pardal morto!” – Ainda assim insistia a mulher-adulta-dentro-de-mim, sentindo-se ridiculamente tola...
Como se perder, fosse apenas um verbo. Como se fosse pecado, como se fosse insano esse amor absolutamente puro. Como se a vida significasse menos, como se a vida fosse menor por bater no peito de um pardal de jardim.