ACONTECEU NAQUELE BAILE

Welington Almeida Pinto

SÓFOCLES larga o jornal e levanta os olhos para o relógio na parede, que marca nove horas da noite. Esfrega as mãos, ajeita o colarinho da camisa e se despede dos amigos da sala de leitura do Clube. Desce a escadaria até o hall de entrada do salão de festas e fica ali por um minuto, passeando o olhar pela fila de mesas; quase todas ocupadas. Escolhe uma entre as vazias e se acomoda apressadamente.

Na mesa de mogno escuro, decorada com um forro marron, um cardápio com capa de couro e o cinzeiro de metal vazio. Examina outra vez o salão, quase lotado, e estala os dedos para chamar a atenção dos garçons. Um deles chega:

- Boa noite, senhor.

- Oi. Uma cerveja, por favor.

- Brahma ou Boemia?

- Não tem outra?

- Não, senhor. Trabalhamos apenas com as duas marcas.

- Então, a mais gelada.

- Mais alguma coisa, senhor?

- Por agora, não.

- A comanda, por favor – pede o moço.

- Comanda!?....

- Não lhe deram uma folha na entrada?

- Não. Quer dizer, sim. Desculpe-me, está no bolso da jaqueta.

- Grato, senhor. Trago a bebida em um minuto.

- Bem gelada, por favor – reforça Sófocles.

O moço sai e volta logo com uma garrafa de cerveja e dois copos. Serve Sófocles, que continua entretido com o burburinho das pessoas saudando uma às outras, falando, rindo, espalhando cordialidade, sentadas ou circulando pelo recinto - um barulho tão ruidoso como o de um recreio de colégio.

Minutos depois as cortinas do palco se abrem e a orquestra começa a tocar. A iluminação clara e incandescente é trocada por uma mais fraca, que deixa o salão numa penumbra maliciosa, convidando os primeiros casais para a pista de dança. Em seguida, surgem outros e mais outros, girando sem parar em diversos graus de intimidade: uns acanhados, outros mais empolgados e os mais controlados, mostrando no rosto rugas características de quem muito se preocupa com dinheiro.

Mesmo encantado com a festa, Sófocles ainda continua oculto na penumbra da garrafa escura de uma cerveja, pensando que poderia convidar alguma moça para dançar. Do outro lado da pista, uma mulher com os cabelos cor de palha e ares de garota, sentada entre amigas, chama sua atenção. Trocam olhares. Estimulado pelo flerte, fez-lhe um sinal de mão convidando-a para sua mesa. Ela balança a cabeça, concordando. E logo se aproxima:

- Ei!

- Olá – responde Sófocles abrindo mais ainda o sorriso

- É mesmo uma linda mulher!

- Oh!... Que recepção! Assim me encabula.

- Nem pense. Sente-se, por favor.

- Obrigada. É novo por aqui?

- Sim. A primeira vez.

Ela ri com ar de surpresa.

- Que bom!

- Me sinto um debutante! – brinca Sófocles.

- Seja bem-vindo.

- Penhoradamente agradeço. O salão é muito bonito, imponente.

- Meio no estilo art nouveau. É antigo, mas é bem conservado.

- Isso é bom.

- Também acho. E você, dança?

- Danço mal.

- Não tem importância, aqui ninguém liga – garante a moça.

- Melhor assim. E você, o que deseja beber?

- Acompanho o cavalheiro na cerveja.

Sófocles enche o outro copo, convidando:

- Um brinde aos seus belos olhos.

- Tintim.

- Um brinde à nossa saúde.

- Tintim – repete Sófocles tlintlincando os copos.

- O clube promove bailes todos os meses.

- Ah, é!... Serei um freqüentador assíduo.

- Espero.

- Qual o seu nome?

- Luciana. E o seu?

- Sófocles.

- Sófocles!... o mesmo do dramaturgo grego?

- Sim. Meu pai foi um grande admirador da cultura grega. Mas não sou nada trágico.

- Nos tempos de faculdade li Édipo Rei. Adorei – revela Luciana.

- Segundo Freud, representa o drama de todos nós. E você, escreve?

- Não. Esse é um dom de poucos, mas sou uma leitora compulsiva. Fiz letras e leciono literatura.

- Deve ser uma boa professora.

- Me esforço.

- Sabe de uma coisa, acho afrodisíaca a inteligência feminina.

- Afrodisíaca!... Me parece um tanto cômico.

- Não. É verdade.

- Está brincando! Quer dizer que excita seus apetites sexuais?

- Excita.

- Ahhhhhhhh!... E você, escreve?

- Sim. Ganho a vida produzindo textos.

- Jornalista?

- Publicitário. Quando a inspiração bate faço literatura.

- Pelo jeito, deve bater sempre.

Depois de algum tempo trocando risos e palavras, Sófocles põe uma das mãos no joelho da mulher e fica um momento admirando seus lábios, cobertos de vermelho. E elogia:

- Você tem uma boca bonita.

Antes que ela dissesse qualquer coisa:

- E os olhos também. Azuis como o céu de Paris.

- Obrigada. Você é um observador perspicaz.

- O belo me atrai, sempre.

A mulher ri, satisfeita. Do longo vestido de organdi azul em que moldava o corpo sarado, surgiam dois braços arredondados e claros, nus até aos ombros, onde o homem, de leve, vez ou outra, depositava um beijo, elogiando:

- Tem a pele tenra como veludo.

- Meu Deus!...

- Seu perfume também me seduz.

- Magriffe. Gosta mesmo?

- Huummm!... deliciosamente delicioso!

Luciana, sorrindo, tira a mão dele de cima de suas coxas.

- Apressadinho!

- Eu?

- Posso revelar um segredo?

- Claro.

- Tenho medo de homem com mais de trinta anos.

- Então, estou fora. Pelo menos, por enquanto, não represento perigo. Fiz 30 este ano.

- Mas, tem talento de sobra na arte da conquista.

- Obrigado.

- Muito perigoso para uma mulher sozinha. Há qualquer coisa em você que acalma e seduz ao mesmo tempo. E por cima, é muito charmoso.

- Também não precisa exagerar.

Risos. Grandes focos de luz, rápidos e azulados, a todo minuto riscavam as paredes e o teto do salão, colorindo o ambiente. Novamente Sófocles estala os dedos para o Garçom e pede outra cerveja.

Luciana:

- Tive uma idéia. Que tal dançarmos?

- Desculpe, querida. Enferrujado com estou, sinto que preciso beber mais um pouquinho. O álcool lubrifica as juntas de minhas pernas, além de me ajudar a descontrair.

- Que pena, mocinho.

- Perdão, só mais um tempinho.

- Ok. Então vou para a mesa de minhas colegas conversar um pouco mais.

- Já?

- Já.

- Não que eu seja saudosista, mas assim que tocar um bolero, tiro você para dançar. Posso?

- Você tem bom gosto.

- Não é só isso: dois passos para lá, dois para cá... é mais fácil de controlar.

- Espertinho!

- Não some. Meu coração deseja vê-la novamente.

- Claro.

E com a mesma expressão afetuosa e divertida, Luciana se levanta, despedindo:

- Até mais. Tiauzinho.

- Espere.

- O que foi?

Sófocles toma um gole de cerveja e, num beijo furtivo, passa o líquido para a boca da mulher, que deixa a mesa rindo do gesto audacioso do rapaz, remexendo os quadris sensualmente arredondados.

A festa continua animada. Sófocles estende o olhar para os lados como se quisesse aparecer para as outras mulheres, que se misturavam no vai-e-vem da dança. Mas, antes do baile terminar, ele decide ir embora. Deixa morrer sob os dedos a melodia que devolvia lembranças ligadas à sua mocidade, chama o Garçom e paga a conta. Atravessa a porta principal do salão de festas do Minas e toma o elevador, deixando atrás de si a felicidade resgatada pela música dos anos sessenta que ainda tocava: ... Óóóóhhh... Óóóhhh Diana, por favor...

- Valeu!... - suspira, enquanto pegava no bolso das calças a chave do carro.

FBN© 2004- Aconteceu Naquele Bailes/Welington Almeida Pinto/Categoria:crônica.

** Welington Almeida Pinto é escritor. Autor, entre outros livros, de Santos-Dumont, No Coração da Humanidade e A Saga do Pau-Brasil. Ver a relação de seus livros.

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Welington Almeida Pinto
Enviado por Welington Almeida Pinto em 03/06/2005
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