O Conhaque, a Flor e a Mosca
Sentia o nada naquela tarde vazia. O silêncio era perturbador. Não conseguia ouvir seus velhos discos. Seus ídolos pareciam querer silencio também. Caminhou ate a geladeira. Na verdade deu alguns míseros passos, já que a peça pequena onde habitava fazia com que tudo ficasse próximo.Abriu a porta, e ficou ali pensando, não tinha muito a fazer. Se lembrou da garrafa de conhaque barato, guardada no armário. Não havia bebido tudo, tinha praticamente um garrafa quase cheia. E já que estava em frente a geladeira, resolveu pegar gelo. Mas para ajudar no seu descontentamento, verificou que não havia gelo. Maldita mania de pegar as coisas na geladeira e não colocar de volta. Um dia mudaria esse habito.Foi ao velho armário e pegou o conhaque.Serviu um copo, tomou, quente. Afinal tudo estava frio ali, quem sabe o calor da bebida não mudasse as coisas. Sentou no sofá, e ficou olhando pro nada. Estava muito entediado, não agüentava mais esperar ate o outro dia para trabalhar. Embora seu trabalho fosse ridículo e tivesse que agüentar colegas monótonos e um chefe rude.Ainda assim estaria ocupando o tempo, e esquecendo da sua tediosa vidinha. Sorveu o liquido todo do copo. Voltou ao armário, agora sem o copo, só a garrafa. Bebia no gargalo com voracidade. De repente o silencio foi quebrado por barulhos no telhado, aumentando gradativamente. Era a chuva que chegava, sem aviso. Não sabia se isso era bom ou ruim. Já não sabia de nada mais. Saiu na chuva, a garrafa pela metade foi junto. Caminhava na chuva. Caminhava com passos calmos e longos.Caminharia ate se cansar, sempre em frente. Sem rumo e sem parar. Afinal não via mais graça em nada. Caminharia ate encontrar algo que merecesse sua atenção. Seguia em frente, quando reparou numa flor minúscula, nascendo em meio aos paralelepípedos da velha rua. Uma flor sozinha , regada pela chuva. Sentiu inveja da flor. Sua força de sobreviver o causava ódio. Resolveu tirar-lhe a vida. Abaixou e arrancou a frágil flor. Riu pela primeira vez naquele dia, talvez naquele mês. Ouviu uma buzina.Um estrondo. E sentiu seu corpo voando, e uma estranha dor no lado direito.A garrafa espatifada. Caído no chão, em meio a uma poça de sangue que se misturava com a chuva e com o resto de conhaque. O chofer do caminhão, foi acudi-lo desesperado. Reparou que ele estava alcoolizado. Ele tinha um sorriso no rosto e a flor na mão. Olhou para o chofer, que estava desesperado, chamando ajuda. Olhou para a flor. Fechou o s olhos e dormiu. Sabia que estava acabado. Arrancou a vida da flor. Perdeu a sua. Agora estava em paz.Sem tédio. Seu corpo seria entregue aos vermes. Só restava esperar a decomposição. Não iria fazer mais nada, nem sentir mais nada. Pelo menos era assim que imaginava que as coisas seriam. Estava feliz. No entanto acordou na cama de um hospital.Olhou para os lados. Ninguem. Só o silencio mais uma vez. Agora estava todo enfaixado. Não podia se mover. Uma mosca sentou entre seus olhos. Ele piscou agoniado. Ela continuou ali.Voava e voltava novamente. Parecia zombar dele. Se lembrou da flor. Queria na verdade era ter trocado de lugar com ela.