O FIM

Era o dia da minha formatura.Eu estava vestida para o baile,mas não havia par ou vontade de ir.O problema é que eu nunca soube se decidiria ir.Seria num salão perto de casa.Nesse dia,minha avó estava em casa cuidando do meu irmão. Tinha 14 anos. Mãe dando plantão e pai viajando.Sempre viajando. Mas quem disse que eu me importava?Quanto menos gente por perto,melhor.Era um circulo,no qual não me via incluída. Não me incluía em círculos.Então,paro de pensar parada em frente ao espelho, pego minha bolsa e o táxi.Estava de preto,um vestido no joelho,rodado. Nunca planejei ficar no baile. O táxi parou um pouco antes,e desci após pagar. Antes que conhecidos me vissem,desviei para a rua de trás do salão. Dane-se uma garota vestida assim pelas ruas. Andei,andei e andei no escuro,vendo aonde meus pés me levariam,embora já pudesse adivinhar isso.Sabia do perigo.Eu poderia ser estuprada,morta,assaltada(não que tivesse muito),mas dane-se.Oito da noite.Estou na rua mais deserta de Belo Horizonte.Me sentei no chão úmido e senti o cheiro que eu mais gostava,de arvores e terra úmida. A única luz vinha de um poste,piscando,com seres voadores ao seu redor. Depois de tanto tempo,continuava sendo surreal.Sempre seria assim.Só que as coisas mudam. Achei que com um ano do jeito que foi,teria mudado drasticamente,mas descobri que não foi. Eu sabia que não seria como antes.Evoluiríamos.

-Lizzy?

Por isso dizem que o diabo sabe quando falam dele. Era Kathleen.

-Achei que você não vinha mais aqui.-falei.

-Bem,eu sinto muito sua falta. Mas,você sabe. Não ia parar minha vida por nada. E parece que você também não parou a sua.

A ultima vez que nos vimos,foi há três meses atrás. Por causa de um dia perfeito no inicio do ano,passamos o ano todo sem nos ver direito. E então,estávamos aqui.

-Pra mim,depende do que quer dizer “sentir falta”. Bloqueei tudo da mente. No fim,não sabia mais o que sentir. Talvez tenho evoluído para um estagio a cima de “saudade”.

-Você é uma das pessoas que eu mais gosto,menos humana. E isso faz falta.

Notei que ela também usava um vestido de festa. Mas estava de coturnos,o que era bem típico dela. Provavelmente “iria” ao seu baile

-Você está chorando?-ela perguntou. Eu sabia que se admitisse,ela ia jogar na minha cara quando brigássemos de novo. Se brigássemos de novo. Se não admitisse,ia dar na mesma também.

-Sim.-respondi. Só me lembrava de uma vez em que vira ela chorar comigo. E outra,que eu apenas a ignorei ou algo assim. Ela se sentou do meu lado,e nos abraçamos.Notei que ela parecia querer chorar,mas ainda não tinha caído nenhuma lagrima.

-Sabe que não sei porque choro as vezes.-falei.

-Nem eu.

Ficamos paradas ali por um tempo. Então nos separamos.

-Estava indo para o seu baile também?-perguntei.

-Na verdade,falei que ia só pra sair tranqüila hoje a noite. Daí vim parar aqui.

-É. Também fugi do meu baile.

Ela riu.

-Legal.-concluiu.

Fitamos o muro na escuridão.

-Há! Quando nos encontramos depois de tanto tempo,eu não tenho o que dizer. Ou talvez só não saiba.

-Idem.-falou,sem emoção.

-Afinal,acho que não há nada não-banal para falar.

-É.

Eu sabia que ela respondia automaticamente,pelo menos era o que eu achava.As vezes eu falava assim pra quebrar o silencio.

-Quando será que vamos poder ficar “juntas” novamente?Isso não pode durar para sempre. Digo,de qualquer forma não vai durar. Mas é tempo demais,até lá podemos ter nos separado completamente.

-É,também penso assim. Não dá pra ficar saindo escondidas assim. Você viu o que aconteceu quando aquela mulher descobriu. Fiquei três meses sem sair nem ficar sozinha em casa.

-Sei disso. E sei que sempre digo que um dia nunca mais nos veremos. Mas nenhuma de nós quer isso.

-Mas ainda é cedo,e nós sabemos que não “acabou”.-eu disse. Talvez quisesse uma ilusão.- Pode me dar a ilusão de que vamos estar juntas novamente?Digo, “juntas”.-fiz aspas com os dedos.

-A ilusão,sim. Realmente acho que no momento não vou querer que nos separemos.Mas juntas...bem,acho que você já entende.

-É,eu entendo. Só que seria difícil achar outra pessoa como você. E não existe alguém exatamente como você.

-Hum,é.

Nessa hora,um trovão ecoou ao longe.Ia chover. Então uma idéia passou pela minha cabeça. Chances de dar errado?Bem,90%. Parecia até que Kath teve a mesma idéia.

-Pensou o mesmo que eu?-perguntei. Claro,era um pergunta estúpida,já que não tinha como ela saber.

-Mais chances de dar errado?-incrivelmente,ela pensou o mesmo!

-Bem,vamos “viver”.

-É.Caralho,vamos embora!Mas,claro. A gente se encontra aqui. Vá pegar o que puder na sua casa.

Ela correu e eu também. Eu estava rindo enquanto corria. Cheguei no meu apartamento,entrei,e minha avó não me notou. Vendo TV. Peguei todo o dinheiro que achei,e o cartão de credito da minha mãe. Violão,roupas e meu teclado,alem de livros,papel e canetas. Não sei como pude carregar tudo junto,mas não deixaria esses bens aqui. Troquei o maldito salto por all-star. Adrenalina fluía no meu corpo,só de imaginar o que estava fazendo. O peso da mala,do violão,do teclado,eu parecia nem sentir. Nem o fato de acabar de roubar mil reais da minha mãe me fazia repensar. Saí e encontrei Kath na rua novamente.

-Vamos pro apartamento do Jake primeiro.Depois decidimos onde ir.

-Como planeja entrar no apartamento dele?-ela duvidou.

-Tenho copia da chave,querida.-girei a chave.

-Legal.

Andamos realmente muito até o apartamento,mas por sorte ninguém nos viu no caminho. Não alguém conhecido.

-Então é aqui que Jake ia morar?Legal.

Era simples. Muito mesmo.

-Uhum.Olha,não dá pra passar a noite aqui por que vão dar por nossa falta. Decidimos pra onde ir,levamos o básico. Jake arruma algum lugar pra gente em Florianópolis, vem aqui e leva nossas coisas pra gente lá.

-Florianópolis?Que ótimo!

-Preciso ligar pro Jake...acho que não devíamos usar celular. Vou no orelhão.

-OK. Eu separo o “básico”.

Desci.Comprei.Combinei tudo com Jake. Voltei para o apartamento.

-Lizzy,devíamos mudar o visual para não nos reconhecerem.-Kath disse.

-Pra mim é fácil. Mas você tem que arrumar peruca.-ri um pouco.

Ela jogou sua palheta em mim.

-Eu corto seu cabelo,se deixar.

Ok. Talvez fosse um “sonho”dela. Que ela pudesse cortar esse meu cabelo comprido.Como eu sempre quis fazer uma pituca no cabelo dela. Satã sabe.

-Quer saber?Corte. E mude o que quiser. Mas juro,se não ficar bom,você nunca mais põe um dedo em mim.

Ela riu. Muito.

-Otimo.

Sentei e ela pegou uma tesoura. Começou a cortar. Logo eu estava com o cabelo como o da Kim Deal teve uma vez.

-Não cortei tanto. Pinte seu cabelo. Está lembrando a Deal.

-Ah,sim.

Me olhei no espelho. Realmente estava diferente,mas ainda me reconheceriam.

-Vou arrumar um lugar pra comprar uma peruca,haha.

Continuamos a mudança de visual.Ela voltou com uma peruca ruiva, com o corte da Rita Lee. Eram dez e meia. Provavelmente meia-noite sentiriam nossa falta. Quando terminei de secar meu cabelo,eles estavam lisos.

-Acho que lembro mais a Karen O’. –falei.

-Talvez.-ela terminava de colocar “seus”novos cabelos ruivos.-Ah é,comprei lentes. Azuis e verdes. Fico com as verdes.

-Não tem grau né?-perguntei.-Quero as azuis.

-É claro que quer as azuis. Só sobrou elas.

Depois disso tudo,e de trocar de roupa,nos olhamos no espelho. Não éramos mais as mesmas. Isso faz você pensar que hoje você é alguém,mas amanha pode sofrer um acidente de carro de desfigurar seu rosto,mas não vai ficar nada bonito como nos estávamos agora. A não que o acidentado fosse uma pessoa tão feia que a deformidade fez o favor de embelezá-la.

-Separei os violões e as roupas. Jake leva o resto depois,não é?-Kath disse.

-Sim.

-Vamos embora como?

-Sei lá. Não,sei sim. Você ainda sabe onde falsificar documentos né? Então,falsificamos uma carteira de motorista para mim. E temos que fazer uma nova identidade para ambas. Depois pegamos um ônibus na rodoviária até São Paulo,alugamos um carro e dirigimos até Curitiba,então Jake nos encontra lá.

-Espera aí,você dirige?-ela perguntou,com espanto.

-Razoavelmente. Só não sei subir morros muito bem. O resto tranqüilo.

-Bah,ok,dane-se. Agora,dinheiro. Tenho 500 reais.

Eu dei um sorriso enorme.

-Tudo na conta da mãe.-mostrei os cartões.

-Uau. Eu pago as passagens,você paga o carro.

Pegamos tudo que tínhamos que levar e fomos para o centro. Falsificamos com Marcos. Tirei todo o dinheiro da minha mãe. Junto com o meu,eram 1250.Sabia que íamos nos ferrar muito se nos achassem.Iam se lamentar pela filha que se perdeu no mundo,caso desse certo. Mas ia ser isso,no fim.Os pais se lamentando pelos filhos egoístas que puseram no mundo para substituí-los. Tirei isso de um filme. Seja inteligente - ou assista a filmes inúteis- e vai saber. Então fomos para a rodoviária. Kath ascende um cigarro,cuspindo sua fumaça pra cima de mim. Não literalmente. Eu fumando ou não,estava acabando com os pulmões do mesmo jeito. É a cidade grande,e Kath com sua fumaça pra cima de mim nesse calor infernal de país tropical de carnaval odioso. Pegamos o ônibus. Proibido fumar,Kathleen larga seu “tubinho de câncer”,como ela o chamava. Ficando com ela desse jeito,ia acabar com câncer também. Não sei porque não começava a fumar também. Daria na mesma. Mas não se sabe o futuro,e no momento,seria por onda. Chegamos em São Paulo de manha. Falamos com Michelle Ibold,atendente da Localiza,aluguel de carros. Aluguei o mais barato. Nem sei a marca,ou o que quer que se chame o nome dos carros. Já teriam falado de nós na TV?Assim que entramos no carro,ligamos o radio. Ia dirigir,sem ter carteira. Que seja como tiver que ser. Poderíamos até morrer. E não tinha celular,os jogamos fora. Kathleen ascende mais cigarros. Abri as janelas.

Ao anoitecer,estávamos perto. Tudo quieto,e foi quando a radio de rock que gostávamos parou de tocar,para um aviso:

“Duas adolescentes desaparecidas em Belo Horizonte. Lizbella Stormhold e Kathleen Holmes. A ultima vez que foram vistas,Kathleen estava em um centro de compras de Venda Nova. [...]”

Foi mais ou menos assim.Odiava os nomes dos bairros de BH.

-É,estamos famosas.-falei.

-Não,melhor,sempre vai ter alguém nos dando como exemplo para os filhos jovens.- ela continuou.

-Ah,sim. E teremos “prolongado nossa existência”.

A noite terminou de chegar,era péssimo dirigir assim.

-Tem certeza que pode continuar?-Kath perguntou.

-Eu vou.-não sabia se podia.

-Bem,pelo menos morreríamos jovens.

Então continuei. Começou a chuviscar.Só diminuí.Logo,chovia um dilúvio. Incrivelmente,começou a tocar The Same Deep Water as You,a musica que eu queria ouvir antes de morrer. . Como seria a morte?Eu estava sempre me perguntando isso. Escuro,chovendo,estrada,não sabia dirigir,precipício,asfalto mal-feito,caminhão,ambas burras sem cinto,e não dava mais para por. Kathleen bebia uma cerveja que compramos com nosso lanche a tarde. Tinha bebido só três goles. Receita para a Morte. Kathleen distraída cantando,bebendo e fumando. Ela fumou o dia todo. Seu Carlton acabou. Musica alta. O chão estava derrapando um pouco. Se parássemos,o caminhão passava por cima da gente,o motorista parecia estar um pouco bêbado. Continuando,mais cedo ou mais tarde cairíamos do precipício.Eu preferia a opção dois.Nao queria ser esmagada por um caminhão com um motorista bêbado. É mais clichê que cair da montanha.

-Vamos morrer.-falei. Estava meio sorrindo?Mas eu não queria morrer agora,embora um parte de mim estivesse rindo disso tudo. Era agora quando eu ia viver mais de verdade. Então entendi o que Kathleen e Marion estiveram dizendo. Eu não vivi realmente. Eu vivi tão pouco,que se fosse contar,não daria mais que dez dias completos. Ou ainda menos. Eu devia saber que ia me arrepender disso um dia. Kathleen analisou a situação.

-É,vamos morrer. Pelo menos eu vivi uma vida sem me arrepender.

-Eu não me arrependo do que fiz,mas podia ter vivido mais.

-O que adianta você entender no final?Você vai morrer agora. Está feliz?

Talvez eu devesse fazer algo. Peguei aquela maldita cerveja e bebi a garrafa toda numa golada. Era algo que eu gostava e estava perto. Eu tinha feito muitas coisas que eu gostava. Mas ainda faltava. Eu perdi muito tempo. Eu poderia ter vivido mais. Não é o fato de não viver,mas o tempo que vivi. Eu nunca senti toda a emoção que poderia ter sentido,senti apenas uma parte disso. E agora não dava pra viver mais. Só que eu ia fazer uma coisa que eu chamaria de viver. Uma coisa que me faria mais viva do que nunca. Uma coisa que me mataria,mas percebi que essas ultimas horas da minha vida,eu tinha absolutamente vivido. Era alguma compensação. E os meus últimos segundos,me fariam mais viva,para depois me matar.

O carro derrapou.O caminho tombou e derrubou suas toneladas de coca-cola na estrada. Não,eu não ia morrer por causa de latas. Kathleen disse “Não ouse escapar,Lizzy.”

-Não quero. Pronta?

As coisas estiveram tranqüilas até aí.O carro estava girando.

-Claro.

Quando deu,acelerei o carro o maximo possível. Ele cortou o ar e o muro que dava a ilusão de segurança as pessoas nesse precipício,e então estávamos caindo. Não tinha volta,eu estava rindo,sentindo tudo que podia sentir: medo,alegria,arrependimento,felicidade,tristeza,culpa,adrenalina. Tudo isso compensava tudo na minha vida. Talvez não,mas uma grande parte. Depois disso,nada importaria.

-Kathleen?Adeus.-eu falei.

Ela sorriu para mim.

-Adeus,Lizzy.

A carro aterrisou,e como previa,os 1200m de altura fez o carro ser esmagado,mas não pudemos sentir nossos ossos se quebrar porque logo depois disso veio a explosão,e então éramos cinza. Nossos depósitos de alma eram nada mais que cinza pura. Não me arrependo de meus últimos segundos Foi a hora em que me senti mais viva. Foi a melhor parte da minha vida. Mas agora não podia sentir nada disso,pensar em nada disso,afinal,eu estava morta.

Alice Werkema