JUNTOS & DISTANTES ( MONÓLOGO P/TEATRO EM 3 ATOS)
Cenário: uma pequena sala de uma quitinete, na lateral subentende-se uma janela que dá para a avenida. O apto está no 5° andar.
( na penumbra apenas as luzes de uma televisão, a personagem de frente para a TV e esta de costas para o público; em uma banqueta a perna esquerda com gesso no pé, uma bengala de apoio ao lado do sofá
( mexendo nervosamente no controle remoto, enfadado)
– Não há nada de interessante nestes programas depois das 10... entrevistas, evangélicos aos berros,parece que Deus é surdo – por que gritam tanto ? já vi todas as notícias, repetidas em todos os telejornais...quantos dramas, Deus meu, quanta desgraça...é favela ocupada, troca de tiros, incêndios, desastres, homicídios...operações da polícia federal, gente fina encrencada, políticos corruptos descobertos e depois acobertados novamente...tem horas que é melhor nem ouvir e ver essas coisas, fazem mal...
- Quem não gosta de futebol nesta terra é execrado...que droga, falam só sobre isso...
Por mim davam uma bola para cada jogador em campo, nunca vi tantos homens correndo atrás de uma... e a massa ali, encantada, nunca vi tanta gente espremida naquelas arquibancadas, ficando roucos de tanto gritar...
teve um sobrinho meu que veio de férias passar uns dias aqui, me arrepiei todo quando ele me pediu: - tio, você me leva ao estádio?
É o meu sonho, imagine eu contar na minha cidade que vim a São Paulo e assisti um jogo do meu time no campo, vendo ao vivo os meus heróis...é o meu sonho, tio...
- Tá bem, sonho é sonho...
Se arrependimento matasse... enfrentamos filas quilométricas para adquirir os ingressos, quando chegou na nossa vez estava esgotado...acabei comprando de cambistas, um roubo, mas, sonho é sonho...
Na arquibancada, um sol ardido, uma nuvem refrescante, chuva rápida, até que aliviou, tirei a camiseta para me secar ao sol, quando senti um baque nas minhas costas e um líquido quente escorrendo, fedido...um filho da puta do alto da arquibancada mandou um copo plástico cheio de urina...
fiquei com aquele cheiro acre em todo o corpo...fiz que não aconteceu nada, o que menos queria era encrencas em estádio, afinal, sonho é sonho...
Intervalo, correrias para tentar chegar ao banheiro, inundado de urina, os mais afoitos não esperavam pela vez, já iam entrando de pistola em punho e mandando munição...mas, sonho é sonho...
Para o meu sobrinho tudo era fantástico, tudo novidade, por ele até que valia a pena, não fosse, no sobe e desce da torcida, levarem o meu dinheiro da bermuda no bolso de trás, além de documentos, voltamos a pé para casa....mas, sonho é sonho...
Colocaram umas garotas dançando, com uns pompons e mini-saias, como é costume nos intervalos dos jogos de basquete americano, e a nossa aculturada, mania de imitar tudo que é coisa de gringo... logo veio o refrão da massa: eta, eta, queremos bu... mas, sonho é sonho...
Os olhos do menino brilhavam de satisfação, era o que valia, afinal, morador de cidade pequena visitando a capital e vendo seus ídolos pela primeira vez era realmente um sonho...
Certo que para mim era pesadelo. Gosto do meu País, agradeço a Deus por ter nascido por aqui, já imaginaram se fosse na Bolívia ou paraguai ?, tão perto... a cegonha poderia ter errado e me deixado por aquelas bandas, melhor ser pobre no Brasil do que nas vizinhanças...
A única coisa que nunca gostei, me sinto um estranho no ninho no País do futebol... No Fundo é uma certa mágoa, sabem ? Só me escalavam para o time quando era o dono da bola, mas, mesmo assim, para o banco de reserva, pois diziam que talento não era para desperdiçar...
– na minha cidade não havia outro assunto, todos se enfiavam no campo aos domingos, cidade minúscula, uma avenida principal : um puteiro ao sul e a igreja ao norte, ou vice-versa... os homens de bem fornicavam às escondidas de segunda à sábado e se penitenciavam aos domingos com caras de arrependidos...volta e meia chegava a notícia de que o tempo esquentava por lá, era um tal de mulher casada atrás de marido fugido...os caras tomavam todas e acabavam dormindo por lá.
Mas o futebol deixava aquela cidade deserta aos domingos, era um tédio. Quem não estava no estádio municipal tava grudado no radinho de pilhas zumbindo nos ruídos de radiação de jogos, que saco era aquilo !
Mas aqui não é muito diferente, claro, cidade grande, maiores opções, mas o futebol predomina, é maçante !
( voltando a atenção para a TV) - Olha só, que me interessa a vida dos famosos ? quem está com quem, quem deu para quem ? Não me acrescenta nada ... estou detido, trancafiado neste apertamento por 10 dias... quem mandou bancar o cavalheiro, o submisso, o lambe botas de chefe, quem ?
...eu, o estúpido, o imbecil, sem personalidade para dizer não !
- (imitando a chefe da repartição) – Vicente, você não acha que a minha samambaia está sem vida, parece sem viço, coitada... acho que ela ficaria bem melhor mais próxima daquela janela, você não acha ?
- ( com ares afetado de compreensão) - Talvez, dona Marina, as plantas precisam de ventilação...
- Se empurrarmos aquele armário um pouco para a esquerda, mais para a parede, a minha plantinha vai respirar melhor... não é, Vicente ?
Pronto, lá tava o idiota aqui se estrebuchando para empurrar aquele armário pesado... resultado: fratura no pé esquerdo, bota de gesso, exilado do mundo neste apto, no 5° andar, com vistas para a Avenida São João...céu cinza de poluição e barulhos de buzinas e sirenes... dantesco cenário !
.e esta TV que não me dá uma distração que sirva...
- Fica em casa, Vicente, há males que vêm para o bem, você descansa, aproveita estes dias... Dizia a complacente dona Marina.
-Aproveitar estes dias ? Tenho gesso no pé, como prisioneiro que carrega uma bola de ferro...
- Sabe quantas vezes, a dona Marina, a minha chefe, que se diz uma mãe adotiva para mim, me ligou para saber como eu estou?
( silêncio) – Nem precisa dizer... (cantarola) – sabe quem ligou para você ? ninguém !
(acusando-se) – vai infeliz, vai puxa saco, fazer as vontades dos outros...
dá no que deu, ninguém, ninguenzinho nem para um telefonema, por obrigação que seja.
- (imitando a dona Marina, com voz afetada de pessoa mais velha) – Vicente, você é o filho que não tive, tenho duas filhas que só me deram netas, você é o meu dodói...
Festas de natal e ano novo, lá estou eu, sujo de carvão e tomando conta do churrasco... “ tem carne nova ai, querido ?” E eu passando a noite toda servindo e sorrindo, anos a fio... “Querido, você caiu do céu !” – pudera, vão pagar um churrasqueiro e garçom para trabalhar a noite toda, em todos os indefectíveis natais e anos novos para ver quanto custa...
-Pau para toda obra, isso é que eu sou para eles. Tem festa na escola das netas, sou o fotógrafo da família, nem me perguntam se tenho outro programa a fazer, porque sabem que nunca tenho nada a fazer nos meus fins de semana tediosos...
- Quando a família dela saiu de férias, deixaram a gata comigo...que bichinho mais enjoado ! Deixou tanto pêlo no recinto que parecia que tinha trocado a pele - Você vai adorar, ela é excelente companhia para você que é tão sozinho !
- Vicente, você leva a Filó para o pet-shop ? Banho e tosa, as minhas netas tem aula de natação pela manhã... 45 minutos, em pé, aguardando. Não me recordo de ter visto tantos cães e gatos em tão pouco tempo...
Isso depois de tê-los levados ao aeroporto como motorista, carregando todas as malas...que merda ! Nenhum postal, nem mesmo uma camiseta, como se costuma dizer: estivemos em Maceió e lembramos de você, nem isso ! Acho que ia pesar na bagagem !
-Vicente, meu menino, você deixa o carro na garagem, viu ?
Me advertindo como se eu fosse pegar o carro na ausência deles...
só o idiota aqui achando que era carinho comigo, coisas de mãe preocupada...preocupada, sem dúvidas, com o carro dela, mas comigo...
(Andando de bengala e pisando com dificuldades de um lado a outro do palco)
Ainda faltam 5 dias, inteiros, minuto a minuto, dentro desta prisão.
Tô torcendo até para que me liguem, nem que seja por engano... ontem mesmo consegui cansar uma garota do telemarqueting de uma seguradora...caiu do céu !
Elas costumam nos cansar com aquelas lorotas exaustivas, pois foi eu quem a cansei...contei toda a minha vida, quem ligou foi ela, os pulsos do telefone são deles... (gozando satisfeito)
a pobre não me agüentou, me vinguei, saturei, enchi o saco da mulher até ela desistir de me amolar com a compra do seguro...
- O Sr., não gostaria de ter um seguro de vida ? – falava ela naquela voz convidativa, amável, como garota de tele-sexo, sensual...
- ( eu esticava a conversa...(rindo para si mesmo) – Você, minha querida, caiu do céu, nunca antes havia pensado que acidentes acontecem até mesmo com a gente...imagina que eu fraturei o pé no serviço, ainda bem que é serviço público, posso ficar o resto da vida em casa que o salário, pouco miserável, mas virá todo o mês... imagina se tivesse trabalhando em outro lugar ? ou se fosse autônomo ? Nem pensar !
Falei da infância, dos meus pais, da minha cidade, da puberdade, das punhetas, da adolescência... aluguei o ouvido da pobre até eu me cansar...
- e então, vamos providenciar uma apólice ?
- Que nada, menina, já tenho o seguro da repartição, descontam um pouco do já pouco que recebo...
(silêncio) – alô ? Alôooo ! Mal educada, me toma um tempo danado e desliga na minha cara ! Que mundo cão !
( vai até uma mesinha e pega um copo vazio e encosta o copo na parede)
- Nada, nadinha, silêncio de cemitério... brigam que nem gato e cachorro, enxurrada de palavrões de corar prostituta aposentada, mas agora nada, nenhum escandalozinho para me distrair... vai ver fizeram as pazes e estão dormindo juntos.
- Sempre disse para mim mesmo: casar para viver às turras, melhor padecer solteiro, esses vizinhos sempre confirmavam minhas certezas...são tantas baixarias que é um horror...ela vive de cara marcada, ele de rosto arranhado, sorrisinhos sem graça no elevador...
(falando bravo com a parede com se fosse com os vizinhos) – Porra, quantas vezes quis dormir e vocês se estapeando, xingando, se mordendo, se atracando...
agora que preciso me distrair estão se amando, se fudendo, se lambendo...tudo baixinho, nos sussurros... porra !
(pausa, pensativo) – tenho que rever meus conceitos, a solidão indesejada é uma cruz, antes, talvez, uma mulher mal humorada do que falar com as paredes... tenho um conhecido na repartição, o Paulo, 47 de idade,que adora sair com mulheres de mais de cinquenta anos, até mesmo uma de 62...
- Mas rapaz, por que essa tara estranha ?
- As mais velhas não menstruam, não tem TPM, também não têm ilusões de querer casar, a maioria delas já se casou mais de uma vez...só querem se divertir ! Além do que, ganhando o que ganho, melhor as mais velhas, pois tem a sua própria casa e não tenho despesas com motel...O chato, às vezes, são as filhas, que são jovens e não se conformam com a sorte da velha mãe ahahah !!!
(CAI A LUZ AOS POUCOS)
CENA 2 ( mesmo ambiente e cenário, entra como se estivesse saindo do banheiro ao som da descarga)
- Vem dona Marina, vem sacudir meu pinto, me ajudar a baixar as calças, mijei-me todo... que morra a tua samambaia seca e amarela – justiça seja feita !
(imitando a Dona Marina) – Essa moça não serve para você, meu filho, é muito atrevida, vê como ela se veste ?
- Esta moça, cuidado com ela...presta atenção, depois não diga que eu não te avisei, não gostei !
- Agora você deu para sair todas as noites? Está com uma cara de quem dormiu tão pouco, te cuida ! Olheiras...é mulher, não é ? Tome cuidado, você é ainda muito moço...
Assim fui cedendo, aos poucos, que nem cordeirinho, e fui eliminando todas as pretendentes, uma a uma...
Fui permitindo que escolhesse minhas roupas, sapatos, fui abrindo mão de mim e das minhas vontades, sempre preocupado em agradá-la... o tempo passando, do garoto admitido em um projeto para jovens carentes ao concurso que me efetivou como assistente administrativo, sempre próximo a ela, a chefe.
Quando a conheci a achei uma mulher linda, elegante, de porte físico que inspirava admiração... de seu estafeta na repartição a assistente, sempre junto a ela. Finais de semana, fazendo pequenos reparos, até a feira, sempre solícito e pronto a atendê-la...
Pois bem, há 5 dias nenhum telefonema...nenhum ! Ingrata !
(pega um papel sobre o sofá) – Tem cada coisa que a gente escreve... por não ter absolutamente nada para fazer, tem momentos que se tem saudades até da dor, sabiam ?
por tempos aquele abcesso me incomodava, doía,
mas, através da chaga exposta, fui tirando lições
reflexões a me fazerem melhor em meus juízos
coisas da dor a cutucar humores e nos fazer mais humanos com menos orgulho, há dores que ensinam bem mais que maltratam...
cuidar da pústula vertida na pele,
assepsia d'alma curativos todos os dias,
lembranças presentes da vulnerabilidade
somos doloridos e nos inibem voos ousados
alados pela soberba e pelas incríveis leviandades
que a mente nos transporta quando nada incomoda...
e como somos sofridos e gememos dengosos !
a criança desponta no adulto e mimados ficamos
quando o infausto nos visita abrem-se portas antes inauditas, inusitadas e inesperadas e crescemos nas observações jamais percebidas...
ah, se pudesse dizê-lo, por bizarro que pareça, que saudades daquela ferida !...
Pode ? dá para acreditar que alguém possa ter saudades da dor ? cultivar uma pereba na perna e acostumar-se com isso ? Bem disse Shakespeare : há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia... eu estou desesperado, está coçando os dedos e nada posso fazer para suavizar esta sensação, é de matar ! Só me faltava depois eu sentir saudades disso, da dor...
Infelizmente, o idiota que escreveu isso sou eu, em carne e osso, expressão poética, se assim pode-se dizer...
(lembrando a dona Marina) - Nossa, Vicente, como você é sensível, como escreve com a alma, ficou lindo ! Coloca no mural, todos vão ler...
- Leram nada, pregaram um aviso de promoção de panetone em cima, nem se deram ao cuidado de me entregar a folha, que ficou escondida.
Certo dia a dona Marina estava alegre na repartição convidando umas amigas ao telefone para um almoço de domingo na casa dela...
-Vicente, meu amor, sabe o que eu quero de você, docinho ?
Tô morrendo de vontade de saborear aquele prato que você faz divinamente, aquela massa com carne assada, que saudades !
- Passei toda a manhã de sábado para comprar os ingredientes para o almoço na casa dela no domingo, comida para um batalhão.
- Quem é este rapaz , Marina, que cozinha tão bem ?
- Um funcionário da repartição...
( peraí, sou apenas um funcionário da repartição ? Nem um amigo, que dirá um filho pelo afeto...apenas um funcionário em expediente extra, sem remuneração e nem consideração alguma...)
- Ele é até bem apessoado !
- É muito reservado, não gosta de intimidades, é tímido.
– afirmava a minha proprietária, dona Marina, como se tivesse medo de me perder como seu escravo !
- Vicente, pode servir as bebidas ! ( esnobando como se tivesse um criado à disposição para ela e suas visitas !)
Cada vez que lembro , dá vontade de encomendar um despacho na macumba com tudo que tem direito para ela experimentar a minha desventura, talvez um gesso na perna inteira... mãe de araque, canalha, nenhuma ligação... Se eu morresse talvez nem ligasse... que mãe adotiva que nada, oportunista isso sim !
(vai até a janela e a abre rapidamente ( barulhos ensurdecedores de fora: buzinas e sirenes) e fecha rápido) - Meu Deus, não sei o que é pior, este silêncio ou a arruaça deste trânsito infernal debaixo da minha janela...estou preso dentro de mim mesmo...
Quando tomava meu café da manhã, ouvia um canto de um canário na gaiola do apto vizinho... rascunhei um texto, mas dessa vez não coloquei no mural, levei para a dona Marina
como o canto melodioso
do canário preso
na gaiola do vizinho
ninguém sabe se canta ou lamenta
a sua sorte prisioneira cativa
nos estreitos limites de sua cela
o certo é que encanta seu canto
e o que importa não é o possível
pranto mas a beleza que encanta
e o mantém refém na vida...
quantos de nós iludidos com a liberdade
ficamos restritos e contritos nos recintos
nos limites estreitos de nós mesmos...
como não gorjeamos lindamente como
canários resta-nos os versos
chulos para retratar o mundinho
visto da janela de um apartamento
no pombal de uma selva gigante de
concreto ouvindo o som de um pássaro
preso aliviando a nossa própria prisão...
- Vicente, lindo, mas amargo, sofrido, solitário...
( passei a escrever para que ela lesse, como se esperando uma aprovação, aquilo era um incentivo, uma forma de atrair a atenção dela e me sentir querido...)
havia também uma moça que cultivava rosas no parapeito da janela... desse ela gostou até às lágrimas, fez-me ler para as netas:
do parapeito da janela
cultivava lindas rosas
vermelhas brancas amarelas
com tal desvelo o fazia
que parecia no dia a dia
as flores rejuvenesciam
tanto apreço e carinho
no cultivo aprumado
nas podas dos espinhos
na sua rotina persistente
a observava ao longe
também de outra janela
a beleza do pequeno jardim
suspenso enfeite no ar
arranjo de várias cores
atrativo de pássaros
colibris pardais
visitavam a florista
suas mãos delicadas
preciosas de artista
encantava os olhares
de seu olhar contudo
pouco ou nada via
soube depois por outros
era uma jovem cega
entretida em sua lida
mimando sua roseira
como uma forma
toda sua
de saudar um novo dia...
-Vicente, você é sensível, capta as emoções da gente, exprime nossos sentimentos – és um poeta, meu menino !
- Não vou colocar minhas poesias no mural, dona Marina,
ninguém lê...
- Não coloque então, mas eu quero ler tudo o que você escreve, tens alma de poeta...
Adorava os versos que fiz na analogia entre o impossível amor de um sapo e a lua:
de seu panorama pantanoso
entre insetos no seu brejo
olhos esbugalhados atentos
na luz diáfana que emerge
suave dentre as folhagens
que rodeia seu meio
hipnotiza sua grandeza
brilhando intensa
abóboda reluzente
encanta reles seres
na muda candura
enlaça e moldura
ilumina terna clara
as criaturas obscuras
refúgios de pobres ocultos
no fascínio de sua beleza
dádiva de deuses, é deusa,
um batráquio se permite
deleitar-se com seus raios
sonhar em asas longínquas
beijar em sonhos sua princesa...
O meu prêmio era a sensibilidade dela, no brilho daqueles olhos que tentava sutilmente esconder suas emoções, quase em lágrimas...
Enternecia vê-la sensibilizada, aquilo valia por um dia inteiro de trabalho...alma sensível era a dela, recitando cada verso tocada em seu íntimo... como em embalagens dos sonhos:
somos embalagens
em desgaste no tempo
armazenando lembranças
sinais inexoráveis nas faces
nas cãs dos cabelos ou ausências destes
tesouro de memórias
registros particulares em óticas únicas
detalhes peculiares esmiuçados ocultos
no enorme baú em que nos confundimos
quem somos ? reservados de reminiscèncias,
olhares perdidos e solitários dentro de nós mesmos
histórias em folhas arquivos na mente guardadas
testemunha ocular e protagonistas de nossos enredos
única e preciosa certeza de nossas vivências
olhares em prismas singulares e exclusivos
as imagens e reportagens de nós mesmos
nossos passos registrados na multidão de outras
embalagens com suas bagagens
suas coisas particulares e íntimas
alegrias e tristezas
estigmas de vidas e sentimentos...
Um dia encontrei todos os meus escritos amarrotados e jogados no lixo... alma sensível de poeta, não é Dona Marina ?
Vontade tive de jogar na cara dela, mas me calei, aliás, como sempre...com o tempo percebi que faço todas as vontades dela... aquilo, de certa forma, me satisfaz, faz eu me sentir necessário. Agradá-la dá-me uma sensação boa, no fundo talvez eu a ame como uma mãe que já não tenho...
É uma relação doentia, como se ela, sabendo de minhas carências, alimenta essa relação sofrida, de servidão quase... Nos raros finais de semana que não me incumbe de alguma coisa é como se faltasse algo, fizesse me sentir vazio, inútil...
(pega um cabide que estava em um canto, desses que ficam em pé e começa a colocar algumas coisas sobre ele, como se o estivesse vestindo) – você será o meu amigo imaginário, não quero mais falar sozinho...você irá me escutar...
(uma luz sobre ele, excluindo o resto do cenário, como se declamasse ausente dali)
... eu quero me confidenciar contigo, falar de coisas que as pessoas em suas pressas não me ouvem... mas que tu, que não existe,portanto, tens todo o tempo do mundo e a paciência que só mesmos os pacientes teriam comigo...
...apraz-me descrever imagens, algo insólito e difícil só mesmo em metáforas, ou seja, comparações, me faço entender... é que a linguagem escasseia do universo que quero apreender no restrito alfabeto que disponho...
...feliz é a possibilidade de ser ouvido, pelo menos fugimos aos escárnios de loucos, os que falam sozinhos por falta de interlocutores... quem haveria de ouvir relatos sem pés e nem cabeças, entrecortados por pausas e reticências num retalho/mosaico de entrecortadas pausas ?...
...me cansa as tardes, melancolias, me salva os dias pelas manhãs promissoras e me rendem as noites no torpor dos sonos ou na inquietude das insônias...
...não quero somar lágrimas ao mar melancólico e estéril dos tristes e deprimidos, creio que neste sentido seja até otimista, o que me angustia é esta rebeldia de não ceder aos fatos tampouco saborear as frases feitas de eternos incentivos viver é remar, indiscutível, rememos, rememos...
....algo há a mais que nos distinga da animal condição de sobrevivência nos alimentarmos,procriarmos, defecarmos e esperarmos as coisas em calmarias,
ou ainda, amontoarmos moedas na esperança de mansa velhice...
...mas ainda me entontece tanta certeza, tantos manuais e filosofias, tantas crendices, resta-me, para ser ouvido, tentar ser lido, em sintéticas palavras...
...não lhe tomarei o seu tempo, aturdido como todos, nos torvelinhos de suas rotinas, como cães correndo atrás do próprio rabo,elencando fetiches para dar rumo e sentido...
afinal, você é apenas um pretexto para não me chamarem de louco que fala sozinho...
( O telefone toca. Ele hesita em atender, parece ainda perdido nas declamações, até que decide...)
- Alô ? Alô ? ( eufórico) - dona Marina?! sabia que ia me ligar cedo ou tarde... quem ?
que número você discou ? Não, não é este, trocou o final o 52 pelo 25, mas, espere.... ( desalentado) – desligou, era engano...
(pausa, está desolado.)
Se fosse ela eu me trairia, não ia conseguir segurar mais...
Estive muito perto de revelar o que sentia, ela fugia desse momento, mandei-lhe rosas vermelhas num ramalhete e versos que lia e relia emocionada, por ocasião de seu aniversário...
as rosas secavam no vaso de sua escrivaninha...ela decorava as palavras daquela poesia, lendo-a repetidas vezes:
flores encantos
substituem expressões
expressam o não dito
revelam paixões
denunciam amores
recônditos tímidos
cessam silêncios
clamam afetos
escusas insinuadas
perdões ressentimentos
nobremente inspirados
num arranjo perfumado
valem mais que palavras
que destoam nas atitudes
balsamizam enternecem
justificam clemências
injustificadas ausências
falam por nós...
Mal resisti controlando-me ao vê-la em lágrimas de emoção, não a era forte, poderosa fortaleza, mas quase indefesa, humana e acessível, imediatamente compus e guardei, talvez para sempre, como meu segredo:
quando a destronei de heroína
senti fraquezas em suas forças
a desnudei de impenetrável
enxerguei através de seus receios
suas doridas lágrimas humanas
quão presente era nos seus medos
e feito gente e não miragem
cultos falsos à imagem
percebi o quanto a amava...
- Quando a conheci, ainda jovem, linda,... o seu perfume discreto, sua educação, me vi atraído por ela...por que não confessar? Passei a sonhar com ela, a desejá-la...foi muito sofrido vê-la como uma mulher mais velha e eu um adolescente, quase menino. Tímido de fazer dó.
Ela parecia que lia nos meus pensamentos, estava difícil esconder meus sentimentos, mas ela parecia se comprazer com minhas torturas, me requisitando com mais freqüência, cercando-me de cuidados... se ela soubesse a falta que faz, não me deixaria tanto tempo sem falar comigo...
Aceitei que me chamasse de filho, era o máximo que poderia esperar...nunca me falou do falecido marido, jamais mencionou o nome dele, morreu em acidente de carro, a deixou grávida das gêmeas... Se ela soubesse (ou será que sabe ?) que jamais a vi como minha mãe, mas como uma mulher desejada...
Raios, porque esta solidão nos deixa tão amargo e lúcido? Quanto tudo é silêncio ficamos a sós com nossos fantasmas, sem disfarces e hipocrisias... eu sempre a amei, a desejei, sempre, desde que a vi...não importam as barreiras da idade, mas ela nunca assumiu que me vê como um homem... nos olhamos, sabemos o que sentimos, e nos calamos... Marina, eu te amo ! Te apresentava todas as moças que namorei esperando ouvir uma censura, nunca quis ninguém, aquilo era apenas uma forma de vê-la perturbada, impedindo-me de ter alguém...eu sei que não é fácil assumir esta paixão, minha querida, há as diferenças de idade, de posição na carreira...
Quem diz que não importam o que dizem ? Mentira, vivemos confinados às opiniões alheias, socialmente cercados, vivendo e buscando a aceitação social. Além da idade, que por si só é um abismo, ela teria que vencer a si mesma, sair de sua encubadora pessoal e se dispor a enfrentar barreiras... sinto que prefere que
continuemos assim, nos amando nos olhares, nas entrelinhas de meus textos, que tanto ela aprecia... É como um segredo a dois, não revelados a nenhum de nós mesmos, sabemos, intuímos, mas não nos revelamos em palavras, não nos assumimos...
o que diriam todos ? Que importa, eu só quero ficar perto dela, senti-la, satisfazer suas pequenas vontades, ser-lhe necessário... que falta ela me faz ! Fico louco, dias intermináveis, implacáveis, enlouqueço...
Só então pude entender por que todos os meus textos, que ela sabia de cor e os recitava emocionada foram parar no lixo...
Evidências de que também ela queria inutilizar as verdades que sentia e repudiava...
(AVANÇA TRANSTORNADO PARA O FONE, COMEÇA A DISCAR)...
(uma voz feminina em off) – Alô, quem está ai ?
Quer falar com quem... brincadeira de mal gosto, não tem o que fazer ? Ligando a estas horas ! responda ou vou desligar !
(segura o bocal e suspira, chora, está fora de si, e desliga)
- Por que este medo de dizer toda a verdade ? Medo de perdê-la de uma vez...de não ser entendido... de ser incompreendido em nome da moral e dos bons costumes...de não mais vê-la...
Melhor mantê-la por perto na figura materna, do que sentir que a perdi de vez... o desprezo me mataria, eu não suportaria ter relações cortadas...Marina, você acabou me ensinando a viver, não posso conceber a idéia de rompermos esta relação silenciosa entre nós, importa tê-la por perto, senti-la próxima... não posso correr o risco de jogar tudo no lixo...eu te amo, Marina...
Prefiro morrer a cada dia, sufocando minha juventude e meu vigor, tão somente para estar perto dela, vê-la, merecer a sua atenção...
Jamais entenderiam este amor, subentendido no silêncio dos olhares, que se policiam, opõem limites, não se permitem em se revelar.. Coroado pelo medo, asfixiado, esse sentimento, esperando que se escoa indefinidamente, como lágrimas conformadas com a sina que se propôs, até que a velhice nos impeça de vez de vivermos o que sentimos e, conformados, morramos...
- como dói amar, sentir-se amado, ou será imaginação, desejo único meu ?... já não sei..., convivermos juntos e não podermos encarar os fatos, nem para nós mesmos, como se fosse proibido um homem mais novo amar uma mulher mais velha...
Há uma barreira intransponível entre nós, jamais ela se permitirá se revelar que gosta de mim, seria ir contra todas as suas certezas e convicções, um peso maior que o silêncio dos olhares...
seus olhos
descerram
encerram
seus mistérios
leitura muda
enigmática
sentidos
insinuados
velados
alegrias e mágoas
sorrisos e lágrimas
um pouco de si
desvendada
na linguagem
sem sons
apelos
da alma
emocionada
- Se ela já demonstrou amor por mim ? Como não ? Sentia seu constrangimento a me ver com uma namorada, ficava inquieta, opinava, criticava até saber que havia desistido, qual a razão disso?
Querer-me como um bibelô, um capricho seu, seria mesquinho demais, sórdido demais, inconcebível...
talvez ela não me ligue para não se trair, talvez seja um desafio à sua resistência. Na repartição a convivência é mais fácil, trivialidades de colegas, em meio aos demais... na casa dela, com as filhas ou as netas, também encontra forças para não estar a sós comigo... no telefone faltariam assuntos, além de me perguntar como estou...
(como se respondesse à imaginária ligação) – Alô, querida, estou mal, preciso, urgente, de uma série de coisas, preciso muito de sua presença aqui...
ela jamais vai ligar...não terá coragem para isso, ela também me ama e luta contra essa verdade... Ela nem sabe aonde moro, jamais esteve aqui... Vivemos próximos... juntos e distantes !
(vai até a janela, não a abre, mas fala olhando para longe)
destoa a luz nas escuras
na torre de um mar
de janelas obscuras
lampejo persistente
alerta preocupante
meio da noite, de repente.
chama a atenção no breu
faísca em detalhe no todo
de um edifício dormente
sonos não dormidos
andar impaciente
passos consumidos
indolente ente
na solidão
ânimo doente
ou de si ausente
na saudade de alguém
na distância presente
clarão atesta
a dor acesa
e se ressente
gesticula, vaga
pelos cômodos,
silhueta frágua
nos gestos mudos
transpira sua dor
seus gritos surdos
vagando insana
imagem fantasma
mente doidivanas
insônia sofrida
sentida, amuada,
na espera de algo
talvez de nada
ou refém
pelo fim da madrugada...
inquieta-me as noites quentes
a pouca roupa e os suores
o andar semi-nu pela casa
o abrir e fechar da geladeira
a insônia partilhada na leitura
os indefectíveis ponteiros
marcando minutos
passos
lembrando horas
não tarda a balburdia matutina
as pessoas e seus sons
os carros fumaças e buzinas
a vida reinicia a sua rotina
adormecida
entre duas fases do dia...
( as luzes vão caindo, ele permanece na janela)
– 2° ato -
(entrando em cena, sem o gesso na perna, roupa social, gravata desajustada, uma garrafa na mão, visivelmente transtornado)
- Vicente, querido, estava esperando a sua volta para participar a todos vocês, meus colegas de tantos anos, este momento tão especial para minha vida...
Vocês que me conhecem sabem que enviuvei ainda jovem, esperando por minhas filhas, passei todos esses anos cuidando de minha família sozinha, fazendo de vocês todos um pouco da grande família do coração...
(Eu, atônito, achando que ela criara coragem para assumir diante todos nossa relação...talvez motivada pela minha ausência de 10 dias, parecia ser o meu grande momento...)
- Reencontrei alguém da minha juventude, que morava em outro País, perdemos o contato por tantos anos, até que nos reencontramos, ambos viúvos, e pretendemos recomeçar nossas vidas conjugais...
(pausa. Senta em uma cadeira de frente ao público, bebe aos poucos...)
Fui me achando
vasculhando
pelos cantos
de mim restos
perdidos
recolhidos
recompondo
quebra-cabeças
mosaico estilhaços
peça-a-peça
desenho
tosco
encontrando
aqui e ali
cacos farelos
inteiro e dolorido
em risos
ameaças partir...
- Fui convidado para o meu próprio enterro... morri nesta tarde apunhalado, varado por uma lança, que me perfurou o corpo e a alma...Sonhei como um idiota, alinhavei esperanças que só existiam para mim mesmo, parvo e estúpido como sempre !
- Só eu não vi que nesta relação ilusória só eu amava... mente burra, sonhadora, que cria uma fantasia que me anestesia como forma de sobreviver a esta solidão medonha, este cárcere que eu mesmo me impus e me sucumbi...morto em vida...empurrando os dias com a barriga, como um burocrata faz com seus papéis, engavetando soluções, fugindo de mim mesmo e de minhas cruas verdades...
Jamais fui amado como acalentei sê-lo, nunca fui correspondido, como acreditava... nunca existiram barreiras pois não existia nenhuma relação, nutrida apenas pelas minhas neuroses e fantasias...
Sussurrei não acreditando no que ouvia - Parabéns ! Nunca é tarde para recomeçar... a abracei frio, formal, desencantado...
Patético, parecia que ia desfalecer em frente a todos... minha cabeça rodopiou, mas, como sempre, ninguém percebeu...
o drama era só meu, as mágoas intransferíveis apenas minhas...
eu e a minha solidão dilacerante...
E agora, sonhador, em que porto vais ancorar tuas mágoas ?
Quais desculpas para se manter sobre as próprias pernas ?
Que razões para viver restaram ? Nenhuma !
( abre a janela, barulhos de carros e buzinas)
- Nenhuma razão para continuar meus dias, nenhuma, acabaram de levar meus sonhos, ilusões acalentadas sozinho...amor de mão única, nunca correspondido, apenas nas minhas fantasias...
mendigo de mim mesmo...
sou tão mendigo de mim mesmo
que os pensamentos que trago
cabem dentro de um envelope pardo
ressabiado com tudo e todos
andei arisco olhar soslaio
ensimesmado ocultando algo
da vida não me fartei
avara a lição marcada
avaro meus atos sucintos
até mesmo para expressar
o que quer fosse fui breve
monossilábico quase...
feito ostra me fechei
como escondesse a pérola
nos meus passos comedidos
em tudo economizava
nem lágrimas dispensava
para externar emoções sufocadas
vivi de forma modesta por opção
retraído de tudo e todos
minha passagem será esquecida como foi minha vida...
( fazendo menção de subir no parapeito da janela, desengonçado pois já está alterado com o álcool)
- Jamais saberão que um homem virou um pássaro e se estatelou no asfalto por um amor imaginário... bom tema para literatura e uma estupidez na vida prática.
Serei notado por momentos, enquanto durar o velório...mas corpo de esmagado tem velório apressado, enterram logo...então esquecerão mais cedo de mim... nunca entenderão a razão de meu suicídio, este segredo que me envergonha irá comigo para a sepultura...
Haverá uma nota sucinta em jornal popular: homem de meia-idade suicida-se, não se sabe as causas... Terei passado pela vida na insignificância do anonimato, sem saber o que é a tal felicidade...nem momentos felizes, de tão raros, não me recordo deles... Não deixarei mensagens, será um enigma... será que ela desconfiará da razão deste gesto extremo ?
Acho que não, nem ela, aturdida na felicidade de seu recomeço matrimonial, jamais imaginará que foi o motivo de minha morte...nem ela !
(pensativo, olhando a rua, distante)
O que me restou, a pena de mim mesmo, alguém de quem ninguém haverá de se lembrar por muito tempo, breve serei passado, esquecido...
antes que tudo finde
sentidos não divisem
a mente não focalize
arrede das lembranças
em brumas espessas
ecos risos das crianças
nada mais seja
fugaz na estrada
figura andeja
amigos e desafetos
erros e acertos
sonhos inconcretos
migalhas, tão pouco,
lembrado,
amado, não louco,
em chinfrins versos
inacabados,
mancos,controversos
antes que amortecido,
esvaindo, sumindo,
nas cinzas putrecido
urge a luz na escuridão
calor, aconchego, acalanto,
ideais ressurgindo na emoção...
.
Gritos que não ressoam, mudos, inválidos, calados, soterrados,
aprisionados na garganta e no Ser...
( toca o telefone insistente. Ele reluta em atender, parece decidido ao ato de se jogar pela janela) – Miserável, tanto quis que tocasse nestes 10 intermináveis dias de agonias e ficou mudo...
Agora resolve tocar...
( vai desanimado atender) – Alô ?
- Marina ?! dona Marina, que surpresa boa ! (reanima-se)
- Sabe que sim... Não, não se preocupe, não estou ocupado, pode falar... jamais me incomoda, a senhora sabe que não...
- Claro que sim, fico feliz que tenha se lembrado de mim...
pode contar comigo, aliás como sempre, eu também, eu sei o quanto a senhora me considera, fico feliz, muito feliz, por isso...
Seja feliz nesse recomeço de vida...
( vai até a janela e a fecha) – Morte, fica para outra vez, quero viver ! Ela ligou, lembrou-se de mim....
(irônico) - Ela sabe que pode contar comigo sempre que precisar... ela ligou ! - Não estarei só enquanto ela viaja... a gatinha Filó ficará comigo... ( Rindo de si mesmo, riso nervoso)
- Estúpido, Vicente, como um menino que se engana com um pirulito...
Estou contente ?! As algemas se apresentam em meus pulsos, depois de terem sido removidas, estendo as mãos para a volta à prisão ou renego a subserviência e tento andar por meus próprios passos sem acalentar ilusões ? Atiro-me pela janela ou enfrento meus medos e enterro estas fantasias que me ajudaram a construir estas paredes em que me aprisionei alienado de mim mesmo ?
Ela não me deixou, não...isso não ! Pois jamais esteve, estivemos juntos e distantes o tempo todo...
devo a ela a libertação de minhas ilusões, enterrou o insepulto cadáver, figura existente apenas na minha imaginação...
(parecendo estar meio fora de si, aparvalhado, distante...)
_sussurrando, quase chorando :
- O que seria de nós sem o consolo íntimo ?
Sem a eterna esperança que nos arrasta a viver ? Alimentando falsas fantasias que nos iludem para nos ajudar a caminhar, a viver cada dia, sucessivos e iguais, como se fossem indefinidos futuros, sem porto de chegada, sonhos adiados para eternos amanhãs como forma de suportarmos a realidade presente, o fardo que nos pesa nos ombros e na alma...
( fala com o cabide, vai trocando as roupas com as do que estão no cabide)
- Pois é amigo, a vida é feita de escolhas, alguns, como eu, escolhem a dor por companheira, as ilusões por consolo, a solidão como única opção
não se permita o desespero
acalente sonhos e sorria
mantenha o leme do seu barco
recicle se o panorama é tedioso
volte-se e busque novos olhares
sinta-se capaz de pelo menos sentir
acredite que tudo é efêmero
dores e desilusões
agudas hoje amainadas amanhã
reaja e não se abata
há sempre soluções
não se maltrate tanto
se a dor for inevitável
a curta com seu fel
e cresça com sua lição
e, mesmo só,
há milhões de seres
que palpitam e sofrem
que amam e sorriem
anseiam e acreditam
há vidas, enfim...
Dor hoje sufoca
amaina amanhã
esquece depois
Tudo Passa...
Águas correntes
seixos e pedras
correnteza leva
o que resta
no fundo
o tempo desgasta
Tudo passa...
Palavras, meras palavras ao vento, auto-consolo, piedade de mim mesmo !
(Amargo): - Não se brinca impunemente com a vida alheia, minha cara, isso nunca ! como diz Saint Exupery no pequeno príncipe: você é responsável por tudo aquilo que cativas...
Como fico eu neste enredo tosco? um ingênuo, que imaginou que era amado, que era correspondido...por isso foi usado como um simples serviçal... ( cruel, dementado) – Há que se haver comigo, cara-a-cara, dizer que nunca sentiu nada por mim, além da falsa amizade, há de afirmar que nunca gostou de mim como um homem... Chega de diálogos mudos, de subentendidas atitudes, chega !!! Há de se ver comigo, nem que seja a decisão mais séria e definitiva que eu tenha que tomar. Não serão meus medos, minhas ponderações a me fazer sair de cena como um objeto inanimado...
Marina, terá que me dizer, frente a frente, que nunca nutriu nada por mim, sim, que apenas eu, na minha imaginação doentia, construí este castelo que vejo desmoronar na minha frente...
Já não há mais tempo para remediar situações, a vida corre, a minha foi controlada pelo olhar dessa mulher, lia nas entrelinhas suas ordens, a me guiar como um robô...agora vai partir, como se nada, absolutamente, me devesse ? Isso não !
( disca fazendo-se sério) – Dona Marina ? Sim, sou eu.
Quero lhe dizer que terei que requisitar uma das licenças-prêmio, um parente doente no interior, um tio meu... amanhã mesmo.
Desculpe por não poder ficar com a Filó ( sarcástico) – Teria o maior prazer em ajudar... Gostaria de vê-la antes de sua viagem, estará sozinha? posso esperá-la na garagem ? Claro que a espero se chegar antes.
( desliga satisfeito e imita a dona Marina) – Mas, Vicente, contava com você, só confio em você...claro, para cuidar daquela velha gata espalha pêlos, para isso ela só confia em mim...talvez pensasse em me pedir para deixá-la no aeroporto com seu amado, tenho certeza que pensava em me pedir isso e também carregar as bagagens, quem sabe ? Sim, certamente que sim !
_ Boa viagem, dona Marina, seja muito feliz !
( fazendo um gesto de quem dá uma banana)
(procura dentro do guarda-roupa um objeto, que está embrulhado)
- Nunca imaginei que pudesse precisar disso um dia...
(Resoluto, olha-se no espelho, penteia-se, passa perfume. Abre uma agenda e procura um telefone)
- Aqui está, Tânia, sabia que tinha guardado...
(disca. Uma voz feminina atende)
- Tânia, é o Vicente, da repartição... claro que a surpreendo nunca te liguei antes, está ocupada ? Quero vê-la, que tal sairmos ?
- Passo por aí, assim que chegar te ligo, você desce, ok ?
- A Tânia linda, leve, solta... e jovem, dona Marina !
Eu fingia não ver o interesse dela, preso nesse amor neurótico não correspondido, quanto tempo perdido !
(pega o paletó, alinha-se e se dirige à mesa, pegando um calhamaço de papéis, dentro de um envelope, joga as folhas, aos poucos, pela janela)
Neste envelope pardo, Vicente, sua trincheira e fortaleza, iludindo-se e remoendo sua solidão na espera por sua princesa, como aquele Sapo de meu poema em sua paixão pela Lua...tão distante, tão impossível... Estivemos o tempo todo, Marina, Juntos e Distantes
- Chega de tantas lamúrias, da solidão acalentada em palavras sussurradas entre estas paredes, de confissões de minha covardia expressas em chulos versos... Deixo minhas muletas, meus falsos consolos...
- Marina, você me libertou do cativeiro que as minhas carências construíram... só eu estava cego, era mais fácil seguir vivendo na alienação de mim mesmo do que me enfrentar com meus desafios e medos...
(sai de cena, levando o embrulho, bate a porta)
TERCEIRO ATO
( as luzes são as da TV e ele está sentado na poltrona, assistindo, como no início...) ´
(locutor do telejornal):
“ agora a noite foi encontrada morta, dentro de seu carro a funcionária chefe do depto público da secretaria municipal, senhora Marina Angélica de Souza Lima, 59 anos, viúva, ao que tudo indica vítima de latrocínio, o assaltante, se evadiu levando a bolsa da vítima, ferida de morte por três disparos à queima roupa, nas proximidades do estacionamento do edifício em que a mesma residia, não houve testemunhas...”
(Levanta-se da poltrona segurando a bolsa da vítima, espalhando seus pertences sobre a mesa)
( olhando as fotos dos documentos)- Como você estava linda nesta foto, minha querida, linda...
- Tudo poderia ter sido diferente, Marina, minha amada, tudo...
(lembrando-se dela) ... meu querido, minha criança, você se confundiu, nunca o vi como a um homem, te juro, nunca !...
Não me permitiria sequer imaginar essa possibilidade, você se enganou, te amo como a um filho...
Um filho ?! É tudo o que você tem para me dizer, depois desses anos todos de subserviência, de retraimento, de esperanças cultivadas e jamais, nunca, desmentidas ? Você acha mesmo que estou maluco, que só eu acreditei nesse amor subentendido ?
Você, maldita, trancafiou-me em mim mesmo, construiu as celas de minha prisão íntima, segregou-me de viver a minha vida... Agora, partes para viver a sua, comprazida em prazeres, sem ao menos dignar-se a me ver como alguém que amastes em silêncio...
- Choras, diante a verdade ?! Quem sou eu, um boneco sem sentimentos ?, um ser que se usa quando necessário, um empregado sem salários, alguém desprezível ?
Não, jamais, o preço da ternura negada, migalhas recolhidas em olhares furtivos, esperando, esperando...eternamente, como se fosse possível reprimir sentimentos pelo tempo todo...
Você brincou comigo, ceifou o melhor de mim, de minha juventude, ditou regras de como viver, como me comportar, assumiu meus gostos, decidiu tudo por mim, roubou-me por inteiro...
Fiquei preso, retido entre estas paredes, como o canário do vizinho, que lamenta a sua sorte cantando triste, e a mim, que nem mesmo confidências pude ter e sequer cantar meu pranto solitário e desesperançado... você foi tudo, e foi o nada, estivemos juntos, próximos...JUNTOS E DISTANTES, sempre !
- Choras o choro do desespero, porque sabes que a minha liberdade tolhida reivindica o teu fim para se libertar totalmente, sabes o preço do descaso, o carinho negado, o consolo que tivestes de mim e jamais o retribuístes... nenhuma ligação para saber como eu estava com minhas dores na alma e na minha solidão... mas sempre, solícito, para lhe prestar solidariedade, enxugar tuas lágrimas, entendê-la, protegê-la em seus medos... Não, eu nunca a amei como uma mãe, você sabia disso, mas procurava esconder...sabe que seria capaz de renunciar a tê-la como uma fêmea que desejei, apenas satisfeito com a sua presença, quer sentimento maior, mais desinteressado, mais despojado que esse ?
Sublimei minhas carências, meus ímpetos de homem, reneguei o sexo que me inflava as veias e me reivindicava a carne do desejo por apenas respeitar suas convicções... cedi, cedi sempre, cederia sempre, eternamente...
Não me peças para deixá-la ir com outro alguém, distante de mim, entregue aos afagos que não compartilhastes comigo, não me peças isso... Você é uma mulher sensível, sabia mais que eu mesmo, o que eu sentia, o que escrevia, os amores impossíveis narrados em farrapos de poesia...sensibilizada, enxugava suas lágrimas, por que um homem só, ainda jovem, teria tanta solidão expressa em versos melancólicos não fora diante a um amor impossível...tão retratado como um sapo que ama uma lua, numa distância intransponível ?
Fale que me amou, mas teve medo, eu respeito... mas não negue,
Não transferiras a mim a demência única, seja partícipe de minhas
Ilusões, não me deixe só na minha loucura...assuma que tens medo de revelar a si mesma seus sentimentos, eu entenderei, mas não negue, não me faças sentir que sou lunático, que apenas eu, nas minhas fantasias, enxerguei errado...
assuma que me ama, não como a um filho, isso não, isso é esmola, mentira, desculpas, assuma que me querias com o desejo de uma fêmea diante ao macho, ai e eu entendo e a deixo livre...
-Tudo poderia ter sido diferente, minha cara, se você confessasse que me ama mas tens medo de me assumir...eu teria deixado você ir, mas... o seu silêncio, a insistente negativa, não deu sequer razões para desistir de me libertar de ti, apertando aquele gatilho...
-Se tivesses confessado teus medos e receios, mas não negado o teu amor, ainda que impossível, estarias viva para seguir teu caminho, mas preferistes teus escrúpulos, pisando em minha dor...
(bebendo... pausa)
restos, sobras, o que ofertastes
àquele que usastes e feristes
a quem nada mais interessas
desferistes à esmo, imprudente,
menosprezos azedumes letais
migalhas de afeto e atenção
trouxestes no âmago acalentado brando
quem te carregastes nos ombros
e te erguestes em tua solidão
soterrastes sob pés inclementes
martirizastes com crueldades
inoculastes o fel da ingratidão
saístes inteira em teu orgulho
pouco importastes e te negastes
a dar um adeus, compaixão.
segue teus caminhos,
em desatinos,
semeastes dores...
...colhestes espinhos !
Você ficará na minha vida como um sonho, do qual nunca acordei, breve será um passado , tua ida minha alforria, minha libertação...
Meus temas não serão mais de lágrimas transcritas em poemas, mendigando a atenção de alguém, tentando em enigmas transpor minhas dores... Não mais, agora serão saudações à vida, à liberdade...não mais escreverei para ti, mas para mim mesmo, para me certificar o quanto estou bem e lúcido, dono de meus passos e de meu destino...
(como se fizesse um brinde, irônico, levantando uma taça)
Agora, minha cara, não estamos mais Juntos e Distantes...apenas distantes !
Devo ter um roupa apropriada para essas ocasiões de condolências... um terno preto, um olhar inconsolável...
(toca o telefone insistente)
- Alô, Tânia...sim, acabei de saber, estou atônito.
Acho que ocorreu no momento em que estávamos juntos,
Ela era uma mãe para mim...
( AS LUZES VÃO SE APAGANDO E ELE FICA IMÓVEL NO TELEFONE)
FIM
* TEXTO REGISTRADO NA BIBLIOTECA NACIONAL DE DIREITOS AUTORAIS, CÓPIAS E ENCENAÇÃO APENAS COM EXPRESSA AUTORIZAÇÃO DO AUTOR. N° de registro: 491.990, livro 930, folha 44.