UM CAIPIRA VALENTE - 4. Aventura
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Uma ambulância pequena, não muito bem cuidada, saiu da estrada de terra e guinou mato adentro depois da ponte do rio. Dois homens vestidos de branco desceram do veículo. Olharam para os lados como se procurassem alguma coisa.
— Pricuram arguma coisa pur aqui? — perguntou Ozório, com a espingarda apontada para eles e a arma que havia tomado do motoqueiro bem a vista em sua cintura. Na mão esquerda, segurava uma cascavel, delicadamente, próximo à cabeça dela. A víbora enroscava em seu braço e balançava o chocalho.
— Não senhor! Apenas... paramos para fazer um xixi — disse um deles.
Ambos olharam para a serpente na mão daquele caipira.
— Ela é mansinha... e, esta terra é minha. Eu protejo os animais aqui. Num gosto de estranho pur aqui — mentiu o vaqueiro.
— Nós...
— Encosta cês dois no carro... cum as mão pra tráiz! — e acenou com a espingarda.
Os dois homens obedeceram. O vaqueiro encostou o cano da espingarda na nuca de um dele. Sutilmente, encostou a boca da víbora do lado interno do punho do primeiro. As veias são bem salientes no local. Com a picada da víbora, o homem encolheu o braço. Imediatamente, sem poder se mexer, e nem saber o que havia acontecido com seu companheiro, seu colega sentiu também no punho, a picada da serpente.
— Esta serpente nos picou, seu miserável! — Ozório, sem que eles percebessem, atirou a serpente dentro da ambulância. Ela sumiu por entre os bancos do motorista e do passageiro.
— É uma cascaver! O veneno dela, segundo se diz, paralisa os músco, impede qui sua presa ande, os óios fica meio trapaiado, num se inxerga dereito... Ocês tem mais ou meno uns trinta minuto mode dizê a verdade pra eu... e buscá ajuda procês. Pra quem ocês trabaia? Num vô priguntá de novo...
— Viemos aqui socorrer uma pessoa... que nos disseram estar ferida.
— Pra donde ia levá a pessoa?
— Para hospital, claro!
— Adonde! Quar cidade?
— Bem... para o mais próximo...
— Somos enfermeiros! Apenas, obedecemos a ordens! — respondeu o motorista.
— De quem? — perguntou o vaqueiro, percebendo o desespero deles. O tempo era curto.
— Do hospital! Droga! - berrou novamente.
— Quem mandô ocês aqui? Numa rodovia de terra... depois da ponta do rio... perto de uma cruz... Num foi isso?
— Foi! Foi! Viemos socorrer uma pessoa!
— Nesse fim de mundo! Quem avisô ocês?
— Recebemos um chamado... Droga! — exclamou o enfermeiro moreno.
— Tô isperano!
— Recebemos ordens por telefone... Não conhecemos quem dá as ordens! Recebemos um bom dinheiro e fazemos nosso trabalho — disse o novamente o enfermeiro moreno.
— Num são infermero de verdade, num é memo!
— Não! — respondeu o outro, pressionando o braço acima da picada da víbora.
— Nem essa ambulânça é de verdade, né! — ficaram calados.
— Por favor, nós vamos morrer! — suplicou o motorista.
— Abra o bico ou num vão saí daqui cum vida, seus fios da mãe! O tempo tá passando...
— Seu miserável! — berrou o motorista, começando a sentir os efeitos do veneno.
— Ocês num são gente! O tempo tá passano... Vão ficá cum a visão isquizita, daqui a pouco, nem vão dá conta de mexê.
— Dr. Pedrosa. Hospital Geral de Belo Horizonte. Quem manda a gente buscar as pessoas é João Catalão. Ele vive disso. Arruma pessoas para serem seqüestradas e vende seus órgãos para pessoas ricas — berrou o homem moreno, louco para sair dali.
— Já lhe dissemos o que quer saber! Deixe-nos ir embora buscar ajuda! — suplicou o motorista.
— Carma, ocês num tem dó dos outro, tem? Manda pra cá seus dicumento e esse apareio de falá! — imediatamente, foi jogado perto dele duas carteiras e dois celulares. Ozório apanhou tudo. Verificou os nomes.
—Temos apenas uns quinze minutos para chegar num hospital! Deixe-nos ir embora! — exclamou o moreno.
— Conhecem o “dotôr” Valença... e seus amigo?
— Não! Não conhecemos. Eles devem trabalhar para o fazendeiro. Deve receber ordens dele — gaguejou o motorista.
— É... ocês foi pegá a moça e uma cobra picou ocês, né! Qui pena! — um deles passou a mãos pelos olhos.
— Já tá veno meio trapaiado? — riu Ozório.
— Seu desgraçado — gritou o motorista.
— Agora memo é ocê — disse Ozório, referindo-se ao homem moreno, que já demonstrava os sintomas da picada. — Só mais arguns minuto e ocês, se dé conta, pode ir imbora. Segundo um delegado dice pra eu, num tem crime sem prova.
— Pelo amor de Deus! Deixe a gente ir — gaguejou o motorista.
— Tá ficano difíci se mexê, né! Pois é... a vida das pessoa qui ocês pega, mode vendê pedaço delas, tem um preço. Pode ir imbora!
Os dois homens, com certa dificuldade, entraram no veículo, tremendo e suando. O que estava no banco do carona olhava para o motorista, gaguejava para ele sair logo dali. Mal podia se mexer. O motorista tentou ligar a ambulância. Sua mão tremia.
O vaqueiro caminhou pelo mato até onde estava seu cavalo. Sua filha estava ao lado do animal, encostada no tronco de uma árvore, meio zonza. Agachou-se, abraçando-a carinhosamente.
— Minha Patativa, seja forte! Pricisamos saí daqui! — e a colocou sobre a sela. Montou na garupa do animal segurando sua filha pela cintura. Ela resmungava palavras sem nexo — Carma fia, carma! Tá tudo bem agora. Vamo saí daqui.
Momento depois, começou a chover fino. O vaqueiro pressentiu que a chuva iria engrossar. Procurou abrigo rapidamente numa caverna. Colheu alguns galhos nas proximidades, fez uma fogueira. Com o coxinilho do arreio, aqueceu sua filha. Lentamente, ela voltava ao normal. Tudo foi explicado a ela.
Sua filha olhou para os celulares que estavam junto às tralhas de seu pai.
— Comprou isso para o senhor, pai? — perguntou ela, curiosa, examinando um aparelho.
— Tomei deles. Num mexe nisso — mas já era tarde.
— Eu já mexi algumas vezes nisso. A filha do nosso patrão me ensinou um pouquinho. Veja pai, tem um monte de números de telefones aqui... — e foi dizendo a ele os nomes e números dos telefones que via.
— Vai cê útil pra nóis... intão. Mas não mexi nisso. Pode apagá os telefone. Dispois qui a chuva passá, vamo falá cum a moça da delegacia. Ela se chama Juliana.
— Aqui tem Sônia... Pai! Tem o nome do telefone da fazenda Ponte Funda aqui. Olhe!
— Um deles me disse qui o Jão Catalão dá ordi pra eles.
— Esta escrito... JC... e o número da Fazenda Ponte Funda.
— João Catalão... nosso patrão, fia. Vê se tem aí um tar de Pedrosa... dotôr Pedrosa.
—Tem “P”... e um número de telefone.
— Esse é o médico na capitar qui fáiz os transplante... Intão é pur isso qui nosso patrão, cumo falam na fazenda, se inrricô dipressa. Ele insistiu muito e inté deu o dinhero pra ocê vim nesse festivar. Ele deve iscoiê bem as pessoa, ocê é muito sadia e forte e ele sabe qui eu sou um Zé Ninguém e num temo parente... Vivia priguntando pra eu sobre parente meu.
— Se entregarmos isso para a pessoa errada, nós vamos perder as provas que temos.
— Num vamo fazê isso, fia. Eu peguei uma moça e ela falou coisa sobre ocê... qui tinha ti sarvado e dispois eles apareceram comm as motorocas... o nome dela é Juliana, Ju.
— Ninguém me salvou... meu pai! Então, é a mesma moça com nome diferente. A moca que me deu carona é a que me deu uma bala e depois não vi mais nada. Não e lembro direito do carro que ela tinha, mas ela é quase da minha altura e clara, cabelos curtos...
— Hummm... eu tive ela nas minha mão, fia!
— Então, é a mesma pessoa.
— Pai — exclamou Patativa, como se lembrasse de algo importante. — O senhor se lembra que me disse uma vez que já trabalhou para os Cotia, na cidade de Delfim Moreira?
— Claro qui me alembro... Seu Cotia... Dona Fia... Todo mundo gente boa dimais! O Aruera, um dos fio do Seu Cotia, num tinha medo de nada. Uma veiz ele deu uma surra num moleque que mexeu com cê na rua. Cê era uma minina-moça. O Aruera e todo mundo na fazenda tinha ciúme se arguém mexesse com ocê. Lá, impregado era cumo se fosse da famia. Todos fios e fias do Seu Cotia, gostava muito docê. Gostava de vê quando ocê cantava... Desde minina sua voz era muito bunita. O Aruera deve tá homi feito, agora.
— Pai, quando eu estava vindo para o festival, eu ouvi uns rapazes dizendo que poderiam aprontar muito no festival, pois na cidade de Delfim Moreira, o delegado de lá havia limpado a cidade e não tolerava bagunçeiros... e que se chama Kostella Kid, fio do Seu Cotia. Eu não me lembro direito deles. Era pequena.
— Né pussivi se isso for verdade... Mas se for... — a filha dele discou três números no telefone.
— Qui tá fazeno, fia?
— Pedindo o número do telefone da delegacia de Delfim Moreira — e com um pedaço de graveto se preparou para escrever no chão.
— Pronto! Delegacia de Delfim Moreira!
— É o fio do Seu Cotia qui tá falano? — perguntou Ozório, não acreditando ainda na história de sua filha.
— Sim. Delegado Kostella Kid.
— O Aruera?
Kostella Kid ficou em silêncio, sua mente voltava no tempo em busca de algo... Somente uma pessoa o chamava de Aroeira... Quem?... Quem?... Quem?...
— Num tá se alembrano de mim, né rapaiz? Já faiz muitos ano. Eu trabaiei na fazenda do seu pai, Seu Cotia. Aqui quem tá falano é o Ozóro... Se alembra de eu?
— Ozório?! O amansador de cavalos bravos, que pegava boi pelo chifre! O único peão que montava nosso boi branco Bolero, que meu pai levava nas touradas e você nunca caiu dele?
— É ieu memo, Aruera... o qui montava o Bolero. Boi danado, né. Cumo tá o Seu Cotia e Dona Fia?
— Bem, muito bem... Há poucos dias lembramos de você... E sua esposa? E a Patativa, ainda esta cantando muito, ainda?
— Minha esposa... morreu, meu fio... mais a Patativa tá cumigo. Canta mió ainda.
— Como você esta homem?
— Muito increncado, Aruera! Priciso de sua ajuda dipressa!
— O que aconteceu?
Rapidamente foi contada toda a história.
— Olhe, vou pegar alguns homens aqui, comunicar com o juiz e com a Polícia Federal, guarde esses telefones que estão contigo, aliás... pode me passar os números que estão neles para eu mandar rastrear. Estamos indo agora para onde você está... Não saia daí... Sei onde é! Já pesquei nesse rio e sei onde é esta caverna.
— Gradicido, Aruera.
— Ozório... Vamos armar uma cilada para eles... Faça o seguinte...
Ozório ouviu atentamente as instruções de Kostella Kid.
— É ele mesmo, pai?
— É sim, minha fia! É o Aruera! Agora tamo sarvo. É homi inté dibaixo dágua. Vai vim cum os amigos dele e dice qui vai avisá a Puliça Federar... Pidiu pra mode nóis guardá esses telefone. Isso é prova.
— Graças a Deus.
— Mais temo qui fica atento... Inté ele chegá, tamo correno pirigo.
...