Ainda faltava amanhecer

Fechado no elevador metálico, cheirando a graxa, os olhos do garoto fitavam os números vermelhos do indicador de andares. Ainda reverberava por baixo de seus cabelos loiros, dentro de seu crânio, as impressões que as paredes muito brancas do apartamento em que estivera lhe causaram.

Cada uma das obras latinas que lá estavam parecia observá-lo como o estranho que ele era naquele ambiente. A última fatia de linguagem que ouvira há pouco parecia, agora, não estar sendo pronunciada por aquela boca adulta que ele não beijara. Vinha das paredes, vinha detrás das carrancas, vinha do cheiro de limpeza e da rigidez do mármore daquele ambiente.

Ali naquele cubículo metálico, que naquele exato instante estava no sexto andar, ele sentiu uma vontade incontrolável de cuspir – coisa que jamais tinha feito. Se ele estivesse fora de seu corpo, perceberia que seus olhos estavam pálidos, metálicos como as paredes do equipamento. Nenhum sinal do azul e das fatias verdes que compunham a extraordinária beleza daqueles olhos jovens estava presente.

Não tinha coragem de olhar-se no espelho do elevador. Sempre teve a impressão de que existia outro lado em todos os elevadores que frequentava. Mais tarde compreendeu que era essa a função daquele espelho: iludir aquele que observa, de forma que o ambiente pareça menos opressor. Ele recusou essa gentileza do espelho, não desviou os olhos do pequeno painel.

Quando as portas se abriram sozinhas, sentiu, talvez, aquilo que sentira no momento de nascer: a obrigação de viver que têm aqueles que não possuem determinação suficiente para terminar com a própria vida.

Agora, do lado de fora, sentia-se sujo. Aos dezesseis anos vivia um momento decisivo, que carregaria consigo enquanto a luz do sol ou da lua brilhasse sobre sua pele rósea.

Assim que alcançou a calçada, cuspiu pela primeira vez. Cuspiu muito, cuspiu tudo, ficou com sede. Começou a caminhar pela calçada que imitava a de Copacabana, em linha reta, até perceber que um líquido escorria pelo seu rosto. Levou sua mão cheia de dedos com as unhas roídas até a face e a afastou. Viu, com a iluminação amarela das lâmpadas incandescentes, uma mancha de vermelho vivo. Sentiu gosto de sangue e percebeu que seu nariz sangrava.

Ali, ainda próximo ao edifício cheio de flores, sentou na calçada e suspendeu a cabeça em direção às costas. Essa posição obrigava-o a olhar para o céu, que já não apresentava todo aquele rigor de escuridão que presenciara antes. Ainda faltava amanhecer, e aquele céu era o autêntico espaço que o espelho do elevador tentava imitar.

Nesse devaneio, acabou desmaiando. Quando, sozinho, recuperou os sentidos, percebeu que o sangue estava endurecido. Somente um exame minucioso de seu corpo, posteriormente, concluiria que aquele sangue se misturava com resquícios de esperma em seu braço direito.

Precisava voltar pra casa de alguma maneira. No entanto, essa era uma obrigação lógica e automática, pois de nada adiantaria estar em um lugar diferente ou nos que costumava viver, uma vez que ele próprio já não era o mesmo. Todos aqueles momentos da infância, ainda recentes, úmidos, pareciam manchados.

Alguém com menos sensibilidade, ou melhor, com a sensibilidade endurecida pelas conveniências e constantes adequações de comportamento da vida cotidiana, poderia enxergar esse momento como uma tolice adolescente. Mas naquele momento, dentro daquelas circunstâncias, o garoto carregava um peso semelhante àqueles que carregam os doentes terminais, que já viveram uma vida inteira e aguardam ansiosamente pelo outro lado.

Quadras passavam sob seus pés, empurradas pelos seus músculos. As luzes apagadas, os carros estacionados, a sujeira da rua e as folhas que não se movimentavam transmitiam, intensificavam uma sensação de que os meios eram uma ânsia desesperada pelos fins. A agonia presente na iminência de um novo dia que estava para surgir fazia seu corpo endurecer, e quem sabe até esfriar perante tamanho despropósito.

Adiante, o muro implacável do cemitério mais antigo da cidade parecia ter sido colocado ali de propósito, para compor a cena. Toda a razão de ser daqueles cadáveres que ali jaziam parecia se resumir naquele momento em que uma vida tão jovem se abandonava.

Luiz Gustavo Silva
Enviado por Luiz Gustavo Silva em 02/04/2010
Código do texto: T2173516
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