OS MEUS FANTASMAS. - LIA LÚCIA DE SÁ LEITÃO – 1/04:2010.
Finalmente abril, mês das chuvinhas de prata e florzinhas amarelas no jardim da casa de mamãe. Por falar em mamãe quantas saudades! Hoje, fiz um jantarzinho para umas amigas de prédio, e na efusão das conversas lembrei mamãe. Figura linda! Diplomática quando queria, risonha, fazia o outro chegar ao ápice da auto-estima, incapaz de tecer um comentário negativo sobre qualquer forma, ela dizia: tudo gera preconceito. Assim, ela levava a vida entre o seu lindíssimo roseiral , seus sapatinhos de salto toc toc toc pelo corredor, as músicas, as leituras, pinturas e seus sonhos geniais. Minha mãe era uma mulher de muito bom gosto, tanto que jamais ninguém a viu amassada ou mal arrumada, nem pensar os cabelos em desalinhos, até para cuidar dos seus afazeres domésticos ela tinha um jeito todo especial.
Acho que nunca revelei um os meus grandes segredos. Foi mamãe quem me despertou o gosto pela Literatura e pela escrita, acho que nem sabia falar meu nome ela já estava à postos com alguns poemas, como se explica uma adolescência desmiolada como a minha, de risadagens e brincadeiras, de liberdade de expressão embora vivessemos debaixo dos anos chumbo, a minha sorte era papai, médico altamente respeitado pelas grandes esferas, dos militares e mamãe era amicíssima dos pensadores, escritores, poetas, artistas, e da nossa casa muitos partiram para a Europa sem serem maculados com os tormentos dos inquéritos policiais. Sem desviar caminhos. É necessário avisar: esse texto possivelmente estará fora do convencional de folhas que escrevo, fazer o quê? São memórias, dessas que todos possuem e poucos escrevem como registro do seu histórico de vida.
Retornando a idéia central. Mamãe, os poemas, meus aniversários na casa grande dos Arcos.
Só para esclarecer o porquê dos poemas. Um dia, a Diretora Dona Terezinha de Belém, jamais esqueço aquela minha diretora em Aracaju, obrigou todos os desesperados do Colégio de Aplicação da Universidade Federal assistir um recital de poemas dos veteranos, que suplício! Meus 14 anos! Ter que aguentar aquela xaropada fui radical, mas a nota atenuara o tormento, Lei da mais valia, eu sempre vivi penduradas nos déficits dos meios pontos para passar no bimestre, optei pelo esforço cultural.
Qual sacrifício nada!
O recital era Navio Negreiro de Castro Alves, no meio da apresentação a colega veterana esqueceu o texto por causa do nervoso, todos esperavam pela fala e a moça entupida, mais parecia ter engolido um ovo, não sei que faniquito me ocorreu, levantei e continuei a fala, o recital permaneceu no eixo como se houvesse uma pessoa comum na platéia direcionada para o contexto, aquela loucura salvou a apresentação e eu fui parar num psiquiatra, meus eternos por quês? Eu não sabia explicar o motivo pelo qual sabia decorado aquele poema se nunca tinha lido Castro Alves.
Mamãe só fazia rir, e dizia eita! Incorporou a alma do poeta.
Eu me pelava de medo e ela ria a plenos pulmões, mas antes de mamãe fazer a Páscoa, a grande passagem, ela me disse, olha filha desde o ventre lia para você poemas, contos, romances e a Bíblia e ouvimos muitos Clássicos e MPB, sempre entendi essa troca de afetividade tudo muito forte, sempre soube que ela me direcionou com diplomacia se fosse nos tancos eu teria sido muito resistente até a aprender escrever meu nome..
( Eu amava Fredinho, o Castro Alves. Não é fácil esquecer um dos mais lindos poemas do autor, sem aquele mela mela de paixão, mas sim, com a paixão do homem viril. Sempre gostei dos poemas de pegadas fortes.O poeta baiano foi meu ídolo, tanto que devorava tudo o que escreveu, desde Eugênia Câmara a última amante, a cantora Agnese Trinci Murri, soprano italiana.
“TU PENSAS NA FLOR QUE NASCE. / MENOS BELA DO QUE TU! / NA BORBOLETA VIVACE / BEIJANDO TEU COLO NU!”
Mas não vou desfocar meu interesse de escrita.
A minha saudade, faz três anos que mamãe partiu, sei que a alma dela está bem confortável em alguma nuvem, e que ela voltou a ser uma criança linda de cabelos com caixinhos dourados, de bochecha rosada e lábios carmins, tipo anjinho barroco.
Mas sempre que pode apronta uma das boas brincadeiras com os pobres e temerosos mortais, eu sou a peça mais vulnerável.
Mamãe no leito do Hospital, com suas mãos macias, segurou nas minhas e disse com um olhar tranqüilo e um sorriso de cantinho dos lábios. Era o sorriso de quem ia armar uma das boas. Com voz sumida ela disse: olha vou morrer no dia o teu aniversário para não esqueceres de mim. Fiquei nervosa, pedi para ela parar de brincadeira sem graça, detestava desde sempre quando ela fazia humor negro, Ela ria como criança e dizia, verás ... verás!
A bem da verdade mamãe não partiu no dia do meu aniversário, mas na véspera, e a maior saudade foi passar o primeiro aniversário sem a alegria dela, sem as músicas, sem a festança que ela jamais deixava faltar toda vez quando eu voltava para casa, eu podia estar na África. Era de bom tom estar no Brasil em casa de papai na semana do aniversário, e assim ela ria a valer, pois de onde estivesse pegava o primeiro voo e ficava ao menos uma semana em companhia da família.
Quebrei os padrões faz 2 anos que não passo aniversário em casa, mas não esqueço as diversões que fazíamos.
Era mês de abril não lembro o ano estávamos sentadas na varanda da casa grande e ela olhava o tempo sobrevoando o vai e vem das folhas da cana de açúcar como quem analisava a trajetória das borboletas. Olhou nos meus olhos e disse, vamos ali, tenho algo para mostrar e quero que um dia escrevas sobre o assunto, nessa época já tinha ganho algumas premiações internacionais. Sentia na alma Raquel de Queirós, Clarice Lispector, Florbela Espanca, a estrondosa Pagu, só as meninas da Literatura. Pretensão clara!
Mamãe subiu as escadas da Casa dos Arcos em passos rápidos, e adentrou no ambientes das relíquias, eu o conhecia como a sala das assombrações e assombramentos e mesmo adulta só passava ali nas carreiras, o corredor muito grande dava um ar sinistro de sombras, vultos e sons, o pisos muito lustrados dava um ar de castelo do tempo do boi bumbá, as portas abriam em folhas ao meio, pintadas de azul celeste, cor de caixão de anjo, arrepiava!
Eu amava a casa dos Arcos, ali criei as primeiras historinhas de assombração, só o pagamento com doces livraria os primos mais novos dos fantasmagóricos assombradores meus amigos, os priminhos choravam de medo, mas eu nunca ficava sem um puxa puxa, um bolo, uma cocada.
Era dali, daquele reservado escuro, ainda preservado aos moldes da construção primitiva, tosca das sedes de engenho nordestino, mantida sem energia elétrica mas com candelabros de cristal e umas velas que pareciam nunca tremerem na brisa que corria pelo ambiente.
Mamãe acendeu todos os lumes e finalmente, a sala clareou romanticamente, os espelhos surgiram da penumbra e corroboravam com as gotinhas de cristal a refletir a chama daquelas tochas maiores presas nas paredes e o ambiente assumia um tom amarelado propício para assinar cartas de amor às escondidas, discutir as relações das tias, velhas solteironas e seus amantes. Estudar qual a quantia que enviaria para o Senhor Bispo colaborando com donativos na festa da padroeira, desde que falasse umas dez vezes no nome de Tia Ifigênia a beneficiária maior, Tia Ifigênia era uma larga senhora, tinha uma bunda que ainda hoje me pergunto como ela fazia para sentar nas minúsculas cadeiras de palhinhas, tão delicadas, ela tomava toda a sala de visitas com a sua presença, e o tamanho das jóias que usava não era menor que seu volume de ocupação no mundo. Era fofoqueira de registro, mas do mesmo jeito que decompunha a vida de uma criatura ajudava com a mesma generosidade. Durante dias era feroz na defesa do cristão, mas passado um mês do fato, retomava ao pensamento rápido e ferino para decompor novamente a alma em questão, e assim os anos levaram a tia cheia de pelanca mas com uma pataca de rouge as bochechas, os lábios o baton carmim e os cabelos tingidos com preto azulado. Tia Ifigênia jamais perdeu em espaço pra ninguém nem mesmo para o Bispo que também tinha uma bunda que mais parecia duas panelas de barro subindo e descendo quando andava nas calças compridas, quando estava de batina mais parecia uma daquelas beatas viuvas detentoras da moral e bons costumes.
Sai do devaneio porque mamãe me chamava atenção com uma caixinha de madeira com uma inscrição em nanquim e uma fitinha desbotada de cetim amarrando a tampa ao bauzinho.
Chega-me ela sorridente e toda feliz.
Filha aqui tem umas cartas que descobri na escrivaninha de sua tia bisavó Ifigênia. GELEI! E ela continuou, queria que você lesse com cuidado, e um dia quiçá escrevesse sobre o assunto, afinal eu tenho um apreço pela falecida, e riu aquele sorriso de quem tem maracutaia por trás das paredes.
Tomei a caixa e questionei, você leu? Ela riu de chorar e disse que sim. Minha curiosidade foi imediata, mas não tinha condições de abrir um calhamaço de cartas, as declarações da tia ali era o maior presente de aniversário, mas não podia esmiuçar uma a uma das cartas pois logo mais chegariam os primos e primas tios e tias e amigos amados para o jantar de comemoraçãode mais uma ano de vida.
Ouvia os barulhos de Ba na cozinha, atiçava a lenha do fogão secular, ela sabia que era meu maior prazer a comidinha da rua, galinha, ou peixe de mar, ou bolinhos de feijão molhados no bife, estranho? Nada era estranho pra mim, nunca fui dada aos grandes arroubos familiares.
Nos meus aniversários anteriores, aprendi a não esperar todos reunidos. Os outros faltosos sabiam do meu gosto simples e sem jornalistas pra dar notícias em páginas sociais, assim não sendo, não era nada interessante minha comemoração. Eu gostava mesmo era da lambança que o pessoal da rua preparava, muita musica muita alegria.
Explicação, a rua era a antiga senzala, que se tornara uma pequena vila por trás da casa grande e ali os serviçais da casa grande tinham toda a regalia da cidade, luz, água, saneamento, camioneta para transportes e até um núcleo de internet para os jovens e quem quisesse utilizar.
Fui até meu quarto guardar aquela relíquia, mas não resisti, abri e fiz uma leitura scaner de uma carta em meio a uma tulheira de papel de carta dobrados e conservados pelo amarelo do tempo.
Li a primeira carta: Iniciava com a data de 1920 quando a tia era menina moça casadoira aos 14 anos, um dos mais bem remunerados partidos da região.
Caríssima Senhora Dona Ifigênia. E no desenrolar da leitura o jovem marcava um encontro com a tia na porta da Igreja de costume, dado que parecia perdido no tempo, não sabia se era a Igreja da fazenda, se era a do cemitério da fazenda, ou da Vila que ficava a alguns quilômetros da fazenda, essa idéia foi logo descartada.
Troquei de roupa às pressas, nem vesti a roupa nova, e sai de jeans e camiseta commo era o costume, a família, as velhas tias que ainda sobravam , o Padre, o Juiz, passaram um rabo de olho como quem dizia uns aos outros perdoem ela nem sabe o que faz. Fui diretinho na cozinha, Ba estava molhada, um cheiro de cebola com suor, eu amava o cheiro da minha Ba.
Perguntei meio que rindo, se ela sabia daquela história da tia Ifigênia e desse precioso moço enamorado por ela. Ba cresceu os olhos na minha direção, enxugou o suor da testa com um pano branco, e disse, não me venha mexer com essas histórias, os fantasmas vão aparecer um a um nos seus sonhos, era tudo o que eu queria!
Insisti com Ba, e finalmente ela sentou-se num banco apontou para o lado e disse senta aqui endiabrada.
Faz muito tempo, quem trabalhava aqui na casa para a Senhora Dona era minha mãe, e Ifigênia nasceu magra que parecia um mosquito, minha mãe que deu leite de engorda para ela, mas quando a menina ficou com uns 14 anos era uma linda moça farta de quadris e seios, ( imaginei e deu naquile monumento desproporcional!) e Ba continuou, minha mãe tinha os filhos mais velhos menos eu, e a minha irmã era quem saia com a filha do Conde.
Um dia Ifigênia precisou ir na Capital, e minha irmã oi acompanhando. Ela foi médico por causa de uma dor nas costas, dor que matava de sangue pela boca, imaginei tuberculose, mas a menina deu trabalho, ficou magra, amarela e feia. Era um choro só pela casa, uma reza que não parava, novenas com Padres e Bispos, finalmente, o milagre! A menina não tinha nada, mas precisava de bons ares, a mãe de sua bisa era uma mulher altiva, risonha, feliz, disse que ia levar a menina aos passeios mais modernos da época e assim fez. Tomou um vapor no porto do Recife com destino ao Rio de Janeiro e de lá para a Europa. No navio a menina conheceu um rapaz que também estava a passeio com os pais e era daqui da região, de família conhecida mas sem tanta projeção, mesmo assim, se deram a conhecer, e tudo ficou entre famílias. Quando voltaram Ifigênia deu continuidade ao namoro, mas um dia o Conde viu os dois com pouca vergonha,ele segurando a mão dela e beijando-lhe a testa. O Conde brigou com os dois revelou na ocasião na pouca idade dos dois não permitindo um namoro pra casar.
O pai do rapaz com medo que o Conde utilizasse a influencia para prejudicar o rapaz tocou o moço para estudar na Europa. Ifigênia só via esse rapaz uma vez na vida outra na morte quando ele estava de viagens aqui. Essa carta que você esta nas mãos, quem entregou foi meu irmão nas mãos dela, e disse em casa o acontecido foi a sorte do moleque Zé para não morrer no pau.
Ifigênia chamou quatro homens do eito do engenho, e levou consigo dois na frente e dois atrás disfarçadamente empurrando um palanquinho comrodas para ela não cansar da casa grande até a porta da Igreja do Cemitério da família, o rapaz estava lá esperando por ela com uma linda jóia.
Ela desceu feliz do palanquinho achando que seria a sortuda do enlace matrimonial, mas a triste notícia era inevitável, ele não retornaria mais a Pernambuco porque ia casar com uma portuguesa de Lisboa. Ifigênia num acesso de ira, voou a jóia longe, mas ainda está na família, é aquela que a sua mãe usa nas festas com um camafeu rodeado de esmeraldas, um dos homens resgatou entre as sepulturas e devolveu a minha mãe que muitos anos depois entregou para a família.
Ifigênia fez os homens amarrarem e castrarem os testículos do rapaz como se castra um porco, por que se ele não seria dela não serviria a nenhuma outra.
O rapaz adoeceu gravemente e não resistiu, morreu. Morreu no dia do aniversário dela, o Sr. Conde mandou fazer luto, chamou até melico da Capital para ajudar a desvendar tão horrendo o crime, quando descobriu que foi a moça, o homem trasfigurou-se e mandou Ifigênia de castigo para o Convento das Freiras em Olinda, mas ela fugiu de lá e voltou para as terras.
Quando voltou depois de um par de anos desse convento de Olinda foi pior. Era mais arguta, mais malvada e arteira.
Um dia ela começou a gritar dentro da casa grande, a se contorcer, a quebrar as coisas de cristal, e jogar os santos no chão. Fez o maior salseiro, a Velha Dona mandou meu irmão buscar o Padre na cidade porque a menina tava possuída. O padre quando chegou começou umas orações que ninguém conhecia nem as benzedeiras da região e ela foi se acalmando, o Padre ficou conversando com ela no quarto e minha mãe que foi a mãe de peito dela ficou acalmando os ânimos das mulheres da casa com chás.
Nessa noite foi descoberto que Ifigênia guardou os bagos do rapaz num vidro com água ardente de alambique, e quando retornou do Convento descobriu que tinham jogado fora o vidro que ela tão bem escondeu e toda a noite o fantasma do rapaz entrava no quarto dela para cobrar os culhões que ela lhes tirou.
Nesse momento, ´Ba olhou bem profundo nos meus olhos e assegurou; se você prestar atenção todo dia 10 seja de que mês for a casa fica um inferno, a noite não passa, as batidas aumentam, as panelas caem, a impressão que ouvimos gritos, gargalhadas aterradoras que só os malucos dão, passos correndo, tudo assombração! Nada mais é que o rapaz desesperado batendo em tudo para grudar no céu os bagos perdidos na terra.
As risadas são de sua tia por causa do desespero dele.
Mas tem muito mais assombração nas histórias de Ifigênia, leia com calma e você saberá uma a uma. Pois ela tomou gosto em maltratar todo mundo inclusive os rapazes que procuravam amizade dela, tem até uma que é a História de um Padre.
Quando sua mãe deu essas cartas para você eu pensei meu São Gerônimo! O que falta acontecer agora? Pois Ifigênia só teria paz de espírito se sua mãe escrevesse todas as histórias dela, e só agora depois de anos que ela pede isso a você. Tenha respeito pelos seus fantasmas mas nunca deixe de tirar uma boa gargalhada do que foram as Sinhás Donas do Engenho, as prendadas filhas e netas do Conde assim como você.
Ri sem graça, levantei dobrando a carta e procurei minha mãe. Questionei, mãe porque eu? E ela disse um dia eu vou morrer sem escrever essas histórias, e você fará por mim. Eu retruquei: mãe eu não tenho nada haver com esses fantasmas de família! E ela olhou pra mim e disse escreva, aquele tom matriarcal, engrossei dizendo um não escrevo! Ela riu e disse baixinho escreve sim.
Mamãe ali no hospital perguntou você escreveu as histórias da tia Ifigênia? Eu ri e disse não faz tempo que deixei de escrever, desde o último concurso literário resolvi não escrever mais uma linha.
Ela olhou com os olhinhos esverdeados e disse pois vou morrer no dia do teu aniversário para que não esqueças de escrever sobre os fantasmas.
Pois, mamãe não morreu na véspera do meu aniversário, e três anos de tormento, ontem sonhei com ela cobrando os contos e com esse peso na alma. Resolvi escrever todas as histórias dos meus fantasmas que tenho conhecimento.
Aguardem pois são cabeludas.