A RICA MENINA POBRE
A mocinha, Adélia, quinze anos, classe média baixa; filha de operário e mãe costureira morava no subúrbio, casa popular modesta; frequentava a escola pública e fazia um cursinho de bordado oferecido pela igreja evangélica. Tinha dois irmãos que já trabalhavam, um era ajudante em padaria e outro era servente de pedreiro.
Menina de poucas amizades e muitos sonhos.
O seu maior sonho era conhecer o modo de viver das pessoas ricas; ela mesma não se imaginava ficar rica algum dia; já estava conformada. Era suficiente conhecer o que é viver na riqueza e a idéia que fazia da vida dos ricos provinha das imagens exibidas pela televisão. Admirava as casas suntuosas servidas por criados uniformizados, com belos jardins e muitas festas. Admirava o seu modo de vestir, a decoração dos ambientes, a comida servida e as viagens. A vida dos ricos para Adélia era exatamente o que as novelas descreviam e ela gostaria de experimentar tudo isso.
Jamais passou por sua cabeça ser uma atriz de novelas, bastava-lhe o pensamento de que a novela e vida real eram uma coisa só. Ela queria entrar na vida real da novela, para assistir de dentro. Meteu na cabeça que realizaria o sonho caso se empregasse em casa de alguma família rica.
Conversou com a mãe e o pai dizendo que gostaria de começar a trabalhar como doméstica. Os pais não se opuseram, pois seria mais uma renda somando-se ao apertado orçamento, pagavam a prestação da casa própria e precisavam de dinheiro para um puxadinho onde colocariam a máquina de costura da mãe.
A filha ainda não tinha idade para assumir as responsabilidades de uma doméstica, contudo poderia começar trabalhando como ajudante. A mãe ficou de conversar com o pastor da igreja e o pai e os irmãos prometeram ficar atentos a qualquer oportunidade.
Uma das vizinhas, faxineira numa empresa, disse saber de alguém que estaria precisando de uma empregada doméstica. Adélia ficou muito alegre e, acompanhada pela vizinha, foi para uma entrevista.
Para sua felicidade foi aceita mesmo sem a experiência exigida e o serviço se limitava a fazer companhia a uma mocinha e para tal morar na residência da família. O sonho de Adélia iria se realizar!
Como deveria usar um uniforme não precisou levar suas humildes roupinhas e seu quartinho, anexo ao da garota, lhe pareceu muito confortável.
Chegou o dia da mudança. Sua mãe a levou de manhã cedinho e elas foram recebidas por uma senhora que se apresentou como a avò e justificava a ausência do casal.
A mãe se despediu da filha e, em seguida, a avó mandou buscar a neta para apresentá-la à acompanhante.
Para seu espanto, Annamaria veio trazida em cadeira de rodas por uma enfermeira, não articulava as palavras, apenas sons, os seus movimentos eram descoordenados e ria muito. A avó e a enfermeira disseram qual era o problema e Adélia sentiu uma tristeza enorme.
Aos poucos ela foi conhecendo a rotina da casa e se afeiçoando à mocinha deficiente.
A casa de fato era uma mansão, linda com sua decoração moderna; o jardim magnífico com o riachozinho; a piscina enorme e a quadra esportiva tão grande quanto a da igreja de seu bairro; e havia muitos empregados também; parecia mesmo a casa das novelas.
A avó não morava na casa e sim em outra cidade; passara uns dias com a neta até ser encontrada uma companhia para ela. A enfermeira ficou mais algum tempo na casa e foi dispensada porque Annamaria já estava restabelecida da infecção renal.
Adélia assumiu todos os cuidados e se revelava dedicada e atenciosa, coisa surpreendente para sua pouca idade e nenhuma prática. Aos poucos ela passou a compreender a linguagem e as necessidades de Annamaria.
Com paciência ajudava-a a comer, e incentivava para que ela usasse as mãos para colocar pequenos bocados na boca, lia para ela e ouviam música
O quarto de Annamaria era amplo, o banheiro adaptado se abria para um pequeno jardim oriental enfeitado com um viveiro de periquitos.
O closet era repleto de roupas lindas, caras e raramente usadas e a sapateira cheia de sapatos jamais calçados. Adélia nunca vira e pegara em tantas coisas bonitas num mesmo lugar, nem no shopping que visitou uma única vez com a mãe. E havia ainda um armário cheio de bonecas, verdadeira coleção de bonecas vindas de várias partes do mundo. Adélia e Annamaria se afeiçoaram uma à outra.
Por outro lado, os pais de Annamaria brigavam muito, discutiam e se agrediam às vezes. Dormiam em quartos separados; o pai viajava muito, mas sempre que estava em casa à noite colocava música e ficava ouvindo com a filha, até ela adormecer, porém a mãe raramente passava momentos com ela. A maior parte do tempo estava lendo, bebendo ou falando ao telefone com amigos, isto quando não saía para seus compromissos de sociedade.
O motorista, depois das sessões de fisioterapia, costumava levar as duas para um passeio de carro, percorria a orla da praia; foi a Petrópolis uma vez, mas Annamaria não gostava de viagens longas, adorava o mar e enchia de areia os cabelos.
Após o primeiro mês de adaptação para as duas meninas o casal concedeu uma folga num fim de semana para Adélia passar com os pais.
A mãe costurou um vestidinho novo, igual ao de uma revista, preparou a comida favorita, o pai colocou uma persiana nova no quarto e os irmãos trouxeram presentes: um pão recheado de frutas cristalizadas e uma pulseirinha de couro e chapinha de metal com o nome de Adélia gravado. Foi uma festa.
Adélia estranhou um pouquinho o tamanho da casa, assim que entrou. Não havia jardim e o único banheiro era tão pequenino que nem tinha espaço para um box de vidro; a velha cortina de plástico com desenhos de peixinhos ainda separava o chuveiro das demais peças. Estranhou a caminha estreita e o guarda-roupa lhe pareceu ter encolhido de tamanho. Deixou a bolsa sobre a cadeira e foi se reunir à família na sala onde aguardavam curiosos para ouvir Adélia contar a experiência.
E Adélia falou.
- Que vida mais triste tem aquela família rica; como são pobres! Nossa casinha parece ser pequena, mas tem espaço suficiente para nós; os desentendimentos entre papai e mamãe são irrelevantes, sempre se entendem no final. Entre nós, irmãos, existe amizade, amor e carinho. Somos felizes aqui. Annamaria é uma moça linda e meiga, parece uma princesa aprisionada que não desfruta de toda a riqueza material que possui; a felicidade dela se resume em não se dar conta de suas limitações, de seu aprisionamento.
Nenhuma novela é capaz de exibir o drama real em que vive a família de Annamaria. Para mim foi suficiente, conheci uma novela de verdade. Vou ficar com Annamaria enquanto for bom para ela ter a minha companhia, mas sei que será por pouco tempo, o médico já avisou aos pais. Sou muito feliz, uma rica menina pobre!
E todos se abraçaram.
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Adélia passou mais um ano em casa de Annamaria que faleceu por insuficiência renal.
Formou-se em medicina e hoje chefia uma equipe de neurocirurgiões de um grande hospital publico.