O jardineiro

Eleanor havia me dado ordens expressas: não podia deixar que o tempo simplesmente comesse suas carnes, precisava levá-la até o lugar em que desejou fosse definitivamente abandonada. Como impedir que isso ficasse na minha cabeça, martelando como se um anão compulsivo tomasse domicilio e estivesse pendurando cada maldita foto de família na parede? Não suportaria uma só semana desta sobrevida, portanto, decidido que estava, parti com Eleanor.

Na verdade, parti Eleanor, depois é que deixamos a casa dela. Veja, onde vai ficar é impossível que entremos juntos, não nas condições em que se encontrava. Morta. E como explicar a minha ausência e o desaparecimento completo daquela companhia? O porteiro comentaria que nunca a viu descer, mas jura lembrar que aquele rapaz do 305 entrou com alguém naquele quarto, ah, entrou.

O coroa me recebeu com aquela habitual sobriedade de início de jogo. Parece que esse cara perde intimidade com você conforme as horas vão passando desde o último encontro, de forma que quando você o revê, pode acabar tendo um aperto de mão deixado ao sereno da noitada. Em pouco tempo, a partida fica entrosada e logo vou subindo até o 305 com uma garrafinha d'água, cortesia, o cara queria fixar os clientes, aquela coisa toda.

Deixo a bolsa sobre a cama. Eleanora teve o sangue drenado, por isso estou tranquilo com relação a problemas de campo. O feche cruza todo o percurso estabelecido pelos pedaços de um amor que me varreu todas as medidas, qualquer tipo de proporcionalidade, em absoluto uma consciência vigorosa, sou completamente ruínas e o pior, estou aqui contando a história. O apagamento pesa sobre Eleanor como uma culpa que devo refrear, porque apenas os vermes devem se alimentar esta noite, não as minhas entranhas de si mesmas, mas eles, os operários da finitude, o povo underground que não pára até que tudo esteja em seu devido lugar.

Carreguei a bolsa até o jardim de inverno. Aquele detalhe nos tinha feito grudar noquarto. Haviam outros, claro, mas aquele era especial. Três das pedras que margeavam o limite da terra com o cimento eram rosas, fato que sem qualquer motivo não nos saiu da cabeça por muito tempo. Comecei a cavar enquanto cantava os versos de Cartola, que por alguma razão me vinham à memória como se eu gostasse tanto assim de samba.

O porteiro veio logo na minha direção, quando deixei o lugar pra tomar um ar pelas ruas. "Cadê a moça?", ele disse. "Terminamos, faz um mês que não a vejo. Bom você ter perguntado, vou procurar por ela", respondi. Então, fui até a recepção e prontamente fui atendido pela jovem bilíngue. "Escuta, quero fazer uma reserva longa. Vou fazer minha pós aqui perto e preciso de um lugar pra estudar em paz. Vocês cobram quarenta e cinco pelo quarto. Pergunte ao gerente, por favor, se ele consegue um desconto, jogar a diária pra trinta e cinco e eu pago tudo agora, porque é o dinheiro que economizei pra esse projeto. Você entende? É importante".

A menina foi até o gerente e, primeiramente, recebi uma resposta negativa sobre a oferta. Insisti, disse a ele que, inclusive, tinha uma série de amigos que viajavam o tempo todo e, caso ele aceitasse, conseguiria uma boa clientela nos feriados e nas festividades da cidade. O homem comprou a minha ideia, parecia interessado nas promessas que fiz desde o início, coisa que me fez dizê-las com gosto. "Onde vai com tanta pressa?", ele disse, assim que me viu sair apressado de sua saleta. "São cinco e meia!".

"Camila", era o nome da simpática atendente da loja. "Quero plantar uma orquídea", eu disse. Ela disse que eu não tinha jeito de quem plantava bananeira, sequer. Ri, claro, como evitar esse gesto diante de duas promessas tão atrevidas de felicidade sob um sorriso fascinante de menina? "Além do mais, é preciso de muito cuidado com uma orquídea. O senhor tem tempo?", ela inquiriu. Achei aquilo tão agradável, aquela distração juvenil falando um tanto cinicamente. "É preciso dar mais atenção a ela do que se dá normalmente a uma mulher, sabia?".

Enquanto eu abandonava a floricultura, senti que os passos apressados traziam-na até a porta, "floresce em um ano", ela gritou. Acenei de costas, pensando que deveria voltar pelos fertilizantes, mas desisti, afinal, o tempo há de tornar os restos um alimento ideal pra que floresça novo destino. Quiçá, novo homem. Quem sabe o que a jardinagem pode fazer com a vida da gente?

Avati
Enviado por Avati em 30/03/2010
Reeditado em 30/03/2010
Código do texto: T2166796
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