A Paixão de Osvaldo
A Paixão de Osvaldo
Osvaldo chegara mais cedo. Cerca de hora e meia atrás, viu-se obrigado a repetir 3 vezes o nome da rua para o sujeito que faz o papel de Simão de Cirene. O sujeito o olhara desconfiado, como se tivesse sido ele, Osvaldo, quem dera nome à rua. Rua Madre Rita Amada de Jesus.
O colégio havia sido demolido há quase uma década mas alguns ex-funcionários e pais de ex-alunos mantinham a tradição de encenar a Paixão no mesmo local. Seu filho tinha estudado lá.
- O Osvaldo porteiro já está aqui – disse uma mulher para outra, como se ele não estivesse presente. Acenaram para ele e ele retribuiu com um sorriso. Elas não sorriram.
“Um olhar e um sorriso”, pensou ele.
Outras pessoas vinham chegando, alguém tinha a chave do portão, com a demolição o terreno se transformara num estacionamento que funcionava quase todos os dias, exceto nessa época. Alguém, essa informação nunca chegou até ele, pagava a montagem da enorme tenda, arquibancada e assessórios, tudo arranjado na véspera. Tratava-se de uma empresa de eventos cujo dono, diziam, era judeu.
De uns anos para cá, Osvaldo passou a ser chamado para representar. Ele nunca recusou. Além de residir nas proximidades, uma antiga professora era sua amiga de infância e sabia que para ele qualquer bico honesto amenizava sua sobrevivência. Osvaldo estava desempregado há mais tempo do que conseguia admitir. Ele sempre remendava essa margem, dizendo que sua empresa falira numa época posterior à realidade dos fatos.
Famílias inteiras chegavam e a noite começava a cair.
- É, é o mesmo cara – falava um sujeito ao celular – acho que o contratam por ser magro, a madeira da cruz não é grande coisa então, já viu, né? Olha, minha sogra me inferniza se eu não venho...Ok, depois vamos jantar, sabe onde fica o...
Uma mulher loira e de frios olhos azuis chamava de modo impessoal as pessoas pelo nome, e então entregava-lhes os trajes: túnicas brancas, turbantes, sandálias, mantas, saiotes, lanças e capacetes para os legionários, paramentos para os membros do conselho, andrajos...
“Um olhar e um sorriso” pensou ele, afastando-se distraído. Sem perceber, esbarrou numa mulher gorda que carregava uma bandeja com copos de plástico. O conteúdo dos copos, refrigerante e suco, manchou-lhe a blusa branca de cetim, ela só olhava para blusa, ele pedia desculpas, pessoas próximas deram risada, crianças e adolescentes, uma delas puxou a mão de um adulto e perguntou: essa é a Vera Birita, que te deu aula de química? O adulto não conseguiu reprimir o riso.
- A Sra. me desculpe, eu não vi – disse Osvaldo falando baixo e olhando para os próprios pés.
- Você fez de propósito! – gritou ela – conheço você! Você não presta. Nem seu filho te convidou para a formatura dele!!
Ela não tirava os olhos da blusa e a esfregava com as mãos enquanto falava. Por alguns minutos a atenção de todos se fixou nesse quadro.
Osvaldo permanecia impassível com seus olhos fundos, seu rosto magro, o cabelo ralo, via-se que algo saía de seus lábios, mas não o som, sílabas perdidas das próprias palavras, a mulher loira que distribuía roupas surgiu em socorro desta, que não aceitava desculpas e prosseguia nos impropérios. As duas se afastaram lentamente.
Mais pessoas chegavam. Osvaldo carregava à tira colo, numa sacola de pano, seu traje de linho branco já devidamente manchado com borrifos de tinta vermelha.
Alguém com um megafone pedia para que todos estivessem à postos.
- Dentro de 15 minutos...- anunciava o megafone.
- Ele nunca foi porteiro daqui – esclarecia um homem de terno azul marinho para duas senhoras – isso é ridículo... Algumas pessoas o chamam assim porque ele costuma chegar muito antes e esperar junto ao portão. Só por isso...
A mulheres disseram alguma coisa, Osvaldo não conseguia ouvi-las, só o homem de terno, que tornou a falar:
- Fui diretor da escola durante muitos anos. Como? Vim de Taubaté... Não sei nada a respeito dele ou do filho. Não conheci o filho. Gosto da maneira como ele representa, quem me indicou foi a Fátima, era nossa professora de história. Amiga dele...
A dois passos dali:
- Então, você é o Osvaldo?
Dois sujeitos mais altos e mais jovens do que ele se aproximaram. Um deles soltou a pergunta. Ambos estenderam as mãos.
- Somos os ladrões – disse um deles.
Cumprimentaram-se. E durante este ato Osvaldo desferiu:
- Ué? Novos ladrões? Ano passado foram outros...
- Pelo menos os ladrões mudam...- gracejou o que ainda não havia dito nada. E prosseguiu – viemos te perguntar como que é, é....dizem que você já tem experiência nisso...
- Ora, normal, é uma encenação...- replicou Osvaldo.
- Sim, é claro – adiantou-se o outro – é que nos disseram que às vezes, durante a encenação, algumas pessoas ficam mais emotivas, tanto os atores quanto os de fora, que rola uma emoção muito forte...
Mais pessoas chegavam. O megafone indagava sobre a presença daquele que fará o papel de Simão de Cirene. Osvaldo olhava para eles, aquele tumulto ganhava crescimento, ficou pensando se o sujeito entendera o nome da rua, por fim, disse não conseguir pensar em emoção, pelo menos dessa forma, face, talvez, a emoção sentida por aqueles que representaram esses papéis pela primeira vez.
Se despediram com um “até breve”, ao passo que o megafone insistia na presença de Simão de Cirene.
- Você estragou minha vida...
- Outra vez com isso! – exclamou Fátima, que chegara por trás e de repente – olha, eu trouxe a coroa. E esquece essa história.
Osvaldo a olhou com perplexidade, como se ela fosse uma aparição e ainda por cima lesse seus pensamentos. E, de uma forma embaralhada, trôpega, ele externou isso.
- Você não estava só pensando – exclamou ela – você estava falando sozinho.
Ela exibiu a coroa e lhe deu um abraço apertado. Duas mulheres se aproximaram, chamando “Fátima, Fátima, onde você estava?”, ao passo que ela lhe sussurrava no ouvido, “esquece essa história, por favor, ele estava velho e doente, toca a sua vida”.
Ele devolveu a força do abraço e também sussurrou: “Se ele me disse três coisas na vida, foi muito”. “Lembra das outras duas” disse ela, se desvencilhando do abraço.
Acenos foram trocados. Osvaldo examinava a coroa com os dedos.
Fátima contou para as amigas que havia acabado a gasolina do carro, por isso o atraso. “Sim, duas vezes no mesmo dia”, afirmou, com o ar de quem conta a verdade, seja ela qual for.
Osvaldo continuava parado ali, sem dizer nada, olhando para algo que não estava fora e sim dentro.
Uma senhora, acompanhada de três crianças, que provavelmente deveriam ser seus netos, dizia:
- Aí não, aí não...isso não pode. Arre, mas que chateação esse alto falante. Ninguém nem sabe quem foi Simão de Cirene...É um papel tão simples, porque não colocam outro para fazer?
Fátima virou-se para ele e, através de gestos, exprimiu:
- Chegou a sua hora, vá se aprontar...
Duas cruzes são usadas para levar a cabo a encenação, uma de levíssima madeira que Osvaldo carregaria, aparentemente, sem a ajuda de Simão, e outra, fixada no centro do palco, de frágil aparência embora capaz de sustentá-lo, como tem se provado no decorrer dos anos.
Entre o portão e o fundo do terreno são cinqüenta metros justos. Era necessário percorrer essa distância, pois os vestiários e os ditos banheiros químicos ficavam lá.
Alguém toca seu ombro de leve, dizendo “e aí, companheiro?”. Tratava-se de Augusto, o que iria fazer o papel de Judas. Se abraçaram. Amigos de longa data, nos últimos tempos só tem se visto na encenação. De súbito, uma espécie de uivo geral acompanha, com uma fração de segundo atrasada, o apagamento de todas as luzes.
- Não esquenta – disse Osvaldo – tá acontecendo direto aqui no bairro. Eles tem geradores.
Logo em seguida a mesma informação, expressada de outra forma, anuncia através do megafone que dentro de minutos os geradores serão ligados.
Os dois caminham no escuro em meio a movimentação de alguns e reclamações de outros. Augusto diz que toda vez pega no telefone para ligar para o amigo, mas sempre alguma coisa atrapalha a ação. Tinha uma coisa importante para perguntar. “Não devia ser tão importante” comentou Osvaldo, em tom irônico.
A energia elétrica é restabelecida e, pouco antes de entrarem no vestiário, uma mulher de traje esportivo aproxima-se de Osvaldo, trazendo uma rosa e oferecendo-a para ele. Tinha o sorriso muito branco e misteriosos olhos castanhos.
- Você é o melhor – disse ela, e em seguida, como que envergonhada, se afastou em direção a platéia.
Osvaldo ficou com aquela rosa na mão pensando, “melhor em que?”. Augusto indagava quem era.
- Estou me perguntando a mesma coisa – respondeu ele, sem saber onde colocar a flor – acho que ela estava aqui ano passado...
Se aprontaram em questão de minutos e Augusto reclamava do traje, que estava lhe pinicando o pescoço e sorte que seu papel era pequeno.
Potentes alto falantes exibiam os primeiros acordes da música de abertura.
- Ah, lembrei – exclamou ele – queria te perguntar sobre aquela sua palestra, a última que eu vi, acho que foi no Centro Empresarial.
- Putzgrila, Augusto, isso foi em 2007...
- E daí? Tem um negócio que não me sai da cabeça. Estou sempre pra te perguntar e nunca lembro.
- Manda...- disse Osvaldo. Os dois foram afrouxando os passos, a música de abertura era longa e ainda havia um breve discurso por parte dos organizadores. Tempo de sobra até que ambos estivessem em suas marcações.
- Sobre o condicionamento – exprimiu Augusto, que sentiu dificuldade em articular essa palavra – o condicionamento e o negócio da glândula. Glândula pin...
- Pineal – completou Osvaldo – você lembra o nome da palestra? Aconteceu tanta coisa...
- Não – Augusto parecia reticente – lembro que eu procurei no Google...gostava daquelas palestras. Você deu exemplos cotidianos, você falava dos policias, que quando eles descarregam a arma no bandido, isso não quer dizer que sejam maus, mas sim que eles são treinados para isso...
Osvaldo franziu o cenho, tentando lembrar ou apenas procurando palavras corretas para adequar sua lembrança. Então disse:
- Muito pouco do que nós somos está aqui, agora, presente. Noventa por cento do tempo estamos reagindo a coisas e reproduzindo gravações. Como se fôssemos robôs... O negócio da glândula é o seguinte: a ciência descobriu que nessa região – ele apontou para a parte de cima da testa – ou melhor, dentro da glândula, existem pequeninos cristais receptores de energia...
Os alto falantes mostravam o desenrolar do discurso, agradecendo e citando nomes de colaboradores. Às vezes se ouvia um tímido aplauso.
- Robôs...– sublinhou Augusto – pois...se a energia vem de fora...
- Vem de fora – atalhou Osvaldo – estamos o tempo todo bloqueando a energia com nossos condicionamentos.
Ficaram quietos por um momento, até Augusto dizer:
- Por isso você falava tanto sobre a necessidade de meditar, para se livrar dos cacoetes...
- Antes fossem cacoetes... – murmurou Osvaldo.
O discurso parecia interminável. Os dois foram para suas marcações. Augusto lhe disse, de modo jocoso: “carregue a sua cruz com classe”.
Osvaldo sorriu de volta e depois fechou os olhos.
Para melhor se concentrar no papel.