As Pedras da Rua Amazonas




A ruazinha já não se movia mais. Assisada em seu brio, cismava sobre os passos alheios que marcaram proximidades. As casas, todas fechadas, também meditavam. Mariana se entregava aos pensamentos, recortados apenas pelo voo dos mosquitos.

Entre a ruazinha e a casa, o portão singelo. E seus portões? E seus portais? Arcabouços frágeis, incompletos, de sua construção. Às vezes tudo era tão igual! Dentro, fora. Ela era só um entremeio, renda de argamassa e madeira, onde se encontravam presos alguns pedaços de destinos que já não andavam por ali. Só ela, talvez, deles se lembrasse. A fumaça do cigarro bailava, enquanto ela corria atrás do passado que se desvendava retalho por retalho.

Os dias se perderam das horas. Dono do tempo era o amor aprisionado pela liberdade de poder, sem portas, sem janelas, por todos os cômodos da casa, plantada ali na ruazinha, que por vezes se fazia longa demais. Os minutos contados nas pedras, apontadas uma por uma, pela ansiedade da espera quase insuportável. Depois, ah, depois!

Como a ruazinha, ela distinguia os segredos, o peso de pés e passos que vieram e se foram; que passaram por passar, rasgando órbitas, descosturando planetas, alterando a sua e a vida dali, espalhada, derramada, por sobre pedras lavadas de luas. E suas próprias pedras? Todas, todas arrumadas em algum terreno baldio do seu silêncio. Menina, brincou ali, no pasto regalado daquela ruazinha, sem desconfiar que outros pés se trançariam aos seus e depois iriam, para sempre.

Havia ainda o encantamento da primeira vez, quando a procura e a descoberta se fizeram com lentidão, sorvendo, lambida a lambida, o gosto, um do outro. Mais do que o encantamento, a necessidade súbita da presença, do estar e a busca quase desesperada, a se balançar, perigosamente numa saudade estreita, doída, antecipada. A caça nervosa, de correntes e algemas para que o tempo não fugisse, a hora parasse. Os compromissos deslembrados, que abrigavam mentiras futuras, as desculpas esfarrapadas saídas de sorrisos presos, sorrateiros. E na presença, as indicações dissimuladas dos toques distraídos, as pistas no roçar tímido, perdido no sem querer duvidoso, sabidamente falso. No ar, o desejo quase desconhecido, latente, de mostrar-se em transparência para encurtar o caminho, para se chegar mais cedo, ao encontro quase sede, quase fome. Essas lembranças todas trafegavam ainda com ela, pela ruazinha sem graça.

Velhos amores, novos amores, cansados amores, partidos amores... Amor, amor, sempre o amor, nascendo nos imprevistos como um acidente na esquina, no sinal que inesperadamente fechou, ou abriu. Sempre, sempre ele, no domínio, na condução, no controle... Suspirou. Mas o amor, é verdade, também perde o viço, a frescura. Amadurece. Reveste-se de outras formas, de outras cores, de novos experimentos, outros paladares. Esse era o seu momento. A ruazinha também já não era a mesma. Novos portões, outras luzes, embora guardasse ainda a tranquilidade de sempre. Só as pedras, presas ali no chão, duras, frias, brutas, permaneciam cravadas, em uma eternidade de morte.

Era bom lembrar... Era bom... Do fogo, da fraqueza suada temperando o corpo amanhecido, das delicadezas dos dias claros, do frio aquecido pelo afeto habitual. Era bom... Era bom lembrar...  Na noite, a ruazinha sob a lua cheia. Chamou o cachorro que dormitava ao lado:

– Vamos, Luly, vamos dormir. Amanhã será outro dia. Deixa, deixa o mundo seguir. Sabe de uma coisa? Aprenda isso: "as rugas da vida, naturalmente envelhecem os momentos" .



Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 28/03/2010
Código do texto: T2164002
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