Villela, o corajoso



                                                     O Villela trabalhava em farmácia e era o empregado mais requisitado do bairro, por saber aplicar injeção como ninguém. Tinha muita habilidade . A picada da agulha não era sentida pelo pessoal que se servia dos seus préstimos. Era o famoso mão de seda.
                                                   Muito conversador, prosa boa e sempre contando uma história mirabolante, onde, naturalmente, ele se saía como herói, graças à sua desmedida coragem. Em cada casa que comparecia para aplicar injeção, costumava bater um bom papo com o dono ou a dona da casa, por uma meia hora, o tempo necessário para o Villela contar suas façanhas, onde prevalecia a coragem- sua marca registrada.
                                                Um desses fregueses, o Môa, homem bom e liberal, acabou se tornando amigo do Villela e até incentivava o rapaz a narrar seus feitos, esperando o desfecho corajoso do homem da farmácia. Com o tempo, a amizade solidificou-se, como também a confiança.
                                               Certo sábado à noite, o Villela é chamado, mais uma vez, para aplicar uma injeção na esposa do seu Môa. Conversa vai, conversa vem, Villela anuncia que iria no dia seguinte, domingo, ao grande jogo de futebol entre Flamengo e Vasco, no Estádio de São Januário, o melhor estádio do Rio de Janeiro, no ano de 1949, um ano antes da construção do colosso do Maracanã. O Gilberto, filho do Môa, de 09 anos de idade, viu a sua grande oportunidade de ir pela primeira vez a um estádio de futebol e pediu ao Villela para ir com ele a campo.
                                              O Villela, na mesma hora, prometeu levá-lo, desde que os pais do garoto consentissem. O Môa e a esposa Luíza, embora hesitantes, acabaram deixando que o filho fosse com o Villela assistir ao jogo, pois estavam seguros de que o farmacêutico, corajoso como era, não deixaria que nada de ruim acontecesse ao menino. E lembrou-se logo, para tranqüilizar-se, que o Villela havia, na semana anterior, entrado em briga com um marginal, armado de facão,no bairro da lapa, tendo dominado com facilidade o bandido, desarmando-o e ainda,sozinho,aguardou a rádio-patrulha, que acabou por prender o facínora.                                                                   Naturalmente, história contada pelo próprio Villela, sem testemunhas.
                                                   Chegado o domingo, às 13.00h lá foram o Villela e o menino Gilberto, para São Januário. Estádio lotadíssimo e os dois na arquibancada, aguardando o início da partida. Naquele tempo, havia um alambrado frágil, separando a arquibancada do campo. Em campo somente os jogadores, o Juiz e os bandeirinhas, não havia gandula.
                                               Primeiro tempo encerrado, sem gols, e até então tudo às mil maravilhas. Vendedores de picolés e café vendiam seus produtos. A marca do café, o garoto nunca mais esqueceu: “pucará”. Evidente, que os torcedores, muito “educados”, gritavam a plenos pulmões : “putará, putará, putará!” O garoto se maravilhava com toda aquela balbúrdia e molecagem sadia, até então!
                                          Começa o segundo tempo e o Vasco mete o primeiro gol. Gol de Ademir Menezes, o popular “queixada”. O Estádio, que era do Vasco, veio abaixo, para tristeza do flamenguista Gilberto. Aos 30m. do derradeiro tempo, Maneca mete o segundo gol e, novamente, São Januário estremece.
                                        Villela, o corajoso, e o menino Gilberto, espremidos, quase que desapareciam no meio da multidão. Pois foi exatamente neste segundo gol que a torcida do flamengo, inconformada, começa a brigar com os vascaínos, briga generalizada nas arquibancadas,e a fúria dos torcedores foi tal que o alambrado foi derrubado e se deu uma clareira enorme no lugar onde estavam os nossos torcedores.
                                               A briga não cessava e o árbitro foi obrigado a suspender a partida, esperando que os policiais militares resolvessem o conflito. Quando tudo serenou, o Gilberto, que era um menino calmo, procurou pelo Villela e não o encontrou mais. Foi o primeiro a correr. Sumiu na poeira. O Villela tinha simplesmente evaporado, deixando o garoto sozinho, longe de casa e ainda por cima sem um tostão no bolso.
                                             Aproveitando o fim do tumulto, o menino desce rapidamente os degraus da arquibancada e passando por cima da grade arriada, se viu dentro do campo, na lateral, naquele local onde ficam hoje os gandulas. Deitou-se na grama e, por incrível que pareça, ninguém notou o garoto ali deitadinho na grama, de onde assistiu, sem ser incomodado, o finalzinho do jogo.
                                           Reiniciada a partida, bem no fim da peleja, Ademir, numa corrida louca, desde o meio de campo, entra com bola e tudo no gol do Flamengo, fazendo o terceiro gol. Vasco 3x 0 Flamengo. Com a cabeça quente pela derrota do Fla, justamente na primeira vez em que foi a um estádio de futebol, Gilberto, se guiando pelo roteiro dos bondes, caminha a pé, de São Cristóvão ao Catete, levando três horas para chegar até sua casa, felizmente,sem qualquer problema.
                                          Nunca mais soube do paradeiro do Villela, mas ficou a lição: as histórias mentirosas não são só privilégio dos pescadores...