Pedra sobre pedra
___Meu estômago ronca. Está roendo por dentro o que sou agora. Minha nuca dura é fria, meu olho vago é peso, minha ideia de vida termina em cada sexta próxima, quando a feira dá adeus aos bichos, sob o olhar atento dos mineiros. Todos os versos que já vivi se transformaram na prosa fácil de cada sinal, no gesto rápido dos membros leves, que guardo feito criança, pra não perder a ingenuidade e o viço. Quando perdi tudo que havia conseguido com os anos de escola, com o tempo de serviço no exército e os anos de trabalho atrás da mesa do pequiá, pensei que a única saída era encher os bolsos de pedra, como Virgínia, e me afundar até não ter mais qualquer luz projetando sombras.
___Uma pedra inteira me deixa sem eira, nem beira, nem medo ou remorso, eu sou o que posso ser e venho sendo conforme as circunstâncias apresentadas pelo tempo, coisa que ninguém segura pelos cabelos ou pêlos expostos, sendo então o único jeito esse cavalgar do instante com o que se tem de mais elevado, esperança no futuro, fé nas entidades rasteiras, ou então o amor pela beleza de viver sem nenhum propósito, crendo apenas que toda brincadeira deve acontecer, invariavelmente, entre pólos opostos da gente mundana.
___Duas, três, meu corpo treme em vezes multiplicadas por vezes que já nem sei, mas imagino que esteja afundando conforme o corpo pesa com os danos causados pelas pedras que no rio arranjo com a certeza de que ainda resta um dia a mais. Toda feira tem um momento de luz branca, quando a manhã ainda se levanta pra varrer as circunstâncias da noite, sempre passageira, confusa pra tantos, e nessa hora eu sei que tenho mais tempo aqui fora, no meio do tumulto, da gana e da exortação, longe do escuro pra onde me recolho a viver de orvalho e ventania.
___Já não posso respirar. Estou completamente submerso, com a cabeça afundada nas águas que nunca são as mesmas pra ninguém. Um rato nada à margem pra chegar ao corpo que está tombado, jantar anunciado ainda cedo, cortesia de uma dívida paga com ferro quente, pólvora, um dedo rápido na mão firme, a mira que não se altera conforme se vive, a explosão que anuncia o fim da prova. As entranhas estavam apinhadas de famintas roedoras, do tamanho de gatos domésticos, com os olhos vermelho-sangue brilhando na escuridão parcial e as bocas manchadas de gula dando gritos de prazer. Passei com enorme peso por aquele cenário horrível, vendo tudo por debaixo das vagas que a correnteza tirana joga sobre os que param pra admirar.
___Meu corpo é luto. Minha luta continua num ritmo lento, quase parando, como se meu destino fosse arrastar o ventre até o fim dos meus dias, feito aquele que estragou os planos mais perfeitos que a criação tinha como estabelecidos pela providência divina. Em cada minuto mora um novo desespero, e tudo que vejo é o movimento dos monstros acima do azeite em que se converteram as águas deste percurso. Meu fôlego murcho acode às necessidades primarias. Meu deus é o silêncio dos inocentes. Perde-me de vista, já nem sou mais um ponto preto na correnteza dos teus pensamentos. Submerso que estou, nem lembro mais se já fui gente ou se algo resta além da espuma que faço na crista da onda.