La Cosa Nostra

___Chove, pouca luz escapa por entre as nuvens lutuosas, poucos pássaros se propõem a cruzar o céu, muita gente está correndo pelas artérias urbanas, ademais, chove torrencialmente sobre o peito aberto, sobre o apartamento, naquele velho prédio de poucos por andar, uma rua simples neste bairro que se perde nas entranhas da cidade. Grudadas ao ritmo, escorrem com a gravidade que as coisas assumem diante de uma ferida estampada; as gotas, passageiras silentes sobre a superfície rigidamente momentânea.

___Fica um vento por adivinhar. Sacode as árvores um dia copadas, hoje exibidas como a mão que parou em movimento, ressequida, desejosa de obter das alturas uma compensação pela firmeza notória de suas raízes tão antigas quanto inabaláveis. Era, ao centro, uma grande sequóia de tantos anos, de poucos planos, é verdade, mas a disciplinada guardiã da memória. Seu corpo milenar esconde segredos que à noite se transmutam em sonho ou pesadelo, pesados do orvalho que a serpente deixa antes de submergir nas águas do rio.

___Um cigarro é único companheiro. Entre quadros de Klimt, Toulouse-Latrec e Chagall, mesmo rodeado de fotos de uma prima, dos pais e dos irmãos, a tevê sem volume passando qualquer coisa cristã, os livros da faculdade guardados em ordem de aquisição, ainda que o celular sobre a escrivaninha indicasse, com um ligeiro tremor, a existência de duas ligações não atendidas, a coisa real que dividia sua atenção era o tabaco cilindrado enfiado por entre os dedos.

___O telefone toca, aos cuidados da secretária. Após o aviso de que um sinal de agudez insultuosa surgiria, eis a mensagem sonora: "quero ter mil noites de amor a uma só de prazer, a delícia do fim dos dias ao rush que me causa a adrenalina, quero colher das sementes que plantei a comer do suor alheio, quero tudo que há pra se querer e por inteiro".

___Final do cigarro, somente as cinzas como testemunhas, jogadas ao cinzeiro no desleixo do fumante vago, um monturo de restos do esquecimento a que se forçava enquanto as palavras deixavam o aparelho, a tomar o rumo do peito por conta própria. Aberto que estava, ficou, olhando faróis que iam e vinham, sinais piscando na distância úmida, embaçada pela única sensação viva nos arredores, aquela que bate quando a coisa morta fica.

Avati
Enviado por Avati em 26/03/2010
Código do texto: T2160303
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