BRANCO
Tratando-se de memória tudo é permitido. Como me recordo, perdoo até meus próprios erros, minhas falhas e lapsos. Não se trata também, tenho de admitir, de reminiscências minhas daquela noite. Nem sei por que recordo. Recordo, contudo, por que devo fazê-lo, por que passei por aquela noite e agora posso lembrá-la.
Realmente morreram em mim muitos naquela noite. Morri várias vezes por que quis morrer. Atirei muitas das pedras que perpassam o ar em câmera lenta na minha memória. Muitas pedras feriram o ar para que eu não tenha de admitir que a lançada por mim feriu um outro. Um outro rapaz, como eu mesmo fui naquela época, naquela noite — um tanto ingênuo — caiu no chão por causa da pedra que arremessei na intenção de atingi-lo. Muitos intencionavam atingi-lo.
Usavá-mos de pedras para atingi-lo. Cortavam o ar como extensão de nossas mãos que não queríamos ver sujas do sangue que, mãos perfurando seu corpo, faríamos brotar.
Brotou o sangue germinado pela chuva que minha memória permite ilustrar para ser mais dramático, para ser menos vermelho.
São lapsos.
Fosse um pouco mais ingênuo como gostaria de acreditar que era, não veria o corpo estendido sangrando no meio do asfalto, no meio do caminho de um caminhão ou ônibus que viria estraçalhar. Não veio.
Não veio a ingenuidade que eu queria, tampouco veio o socorro recolher o resto de mim espalhado nos muitos eus que gritaram quando uma das pedras atingiu a cabeça e o rapaz caiu. Era como eu. Queria ser como os que riram e gritaram:
— Morreu o viadinho!
Muitas vozes gritaram dentro de mim ao descobrir que também eufórico gritei ao pegar uma pedra no chão e jogá-la. Atingindo em meio a chuva que caia sobre o menino, em meio ao granizo/granito, gritamos.
Fugimos para dizer que sabíamos. Sabíamos que ele era viadinho e todas as noites estava sob o toldo esperando. Esperava sempre que reagíssemos por que era isso que via em nossas provocações, era o que via silenciando-se em desdenho todas as noites.
Todas as noites fugimos, todos que habitam em mim e não controlo.
Perco o controle de minhas memórias e quando a dor me angustia como uma chuva demasiado pesada para o corpo aguentar descoberto, sem um toldo que abrigue, sem um carro que estacione e proporcione a fuga, acelero.
O passo é de fuga, de devaneios dialogando em mim, de granizos intensificando a dor de um teto que não me abrigue, de um olhar que fixa e persiste insultando, de uma chuva que limpe o rubor do meu rosto. Uma sentença escrita por meio de epitáfios.