– “Você está bem? Aconteceu alguma coisa?”
– “Nada não.”
Se não era nada, como respondeu, porque também não sabia. Podia ser – ela deu de ombros. O portão marrom colou em sua retina, num vôo desde lá de fora, que atravessou a janela, cobrindo o resto do mundo. Parada, ficou. Se não era nada, por que deixar o muxoxo pendurado no canto da boca feito um trapezista abalançando no ar? – a pergunta ficou nos lábios...
Pegou o livro, acomodou-se na cadeira de balanço ao lado da cama, mas a reposta atravessada do marido pairava no ar feito mosca à espreitas do grão de açúcar. Não era nada, não era nada, mas ele parecia maré em mar de tempo ruim, levantando e sentando, enchendo a casa com mais gente do que nela cabia. E a barulheira? Parecia celebração. Copo, garrafa, garrafa, copo, talher, prato, panela, tudo revolvido. Um escorregava, outro batia, outro quebrava... Do quarto ela ouvia. Conversa estranha. Decididamente ela não sabia traduzir Plincs! Prec! Blém!... As palavras, com certeza, fariam menos barulho.Se não era nada, por que a vírgula, saltando do olhar parado, no fio da fumaça do cigarro?
Na cadeira, era como se a morte a abraçasse, meigamente, com seus longos e macios braços. Fechasse os olhos, flutuaria. Momento insólito. Um pingo entre todos os outros que caiam no meio do dia mais sábado do que terça-feira. Aquele “nada não” mal humorado, quase cochichado, cuspido entre dentes serrados, tinha quebrado a cara da manhã, assaltado o almoço e já apontava suas más intenções ao cair da tarde e, com certeza, a criminosa era ela. Nada a fazer senão aceitar a sombra da mudez, que enchia toda a casa, e ruminar as perguntas como se fora um chiclete sabor algodão. Ou seja, nenhum. Ou seja, mascar aqueles porquês todos como borracha, que rola pela boca de um lado a outro, sem poder jogá-los fora ou, devorá-los.
Ah, Deus, se ele soubesse! De olhos fechados, tomou uma chave imaginária e abriu a porta do tempo. Se soubesses – pensou alto –se soubesses quantas mulheres, de mim, nascem todos os dias! Quantas de mim perdoam, quantas de mim inventam... Se soubesses, quantas de mim choram, quantas de mim recriam... E se perguntasses o quê? Para quê? Dar-te-ia dicionários inteiros de respostas, enciclopédias completas de acontecimentos e causas. Se soubesses, quantas de mim voam por espaços desconhecidos, para além do além mais além, em busca de outras luas; quantas de mim se arriscam, perigosamente sem armas engendradas, sem artifícios especiais, sem armaduras, em confrontos diários com batalhões de dúvidas; quantas se aventuram por caminhos inclinados, ruas escuras, becos, em busca de outras que possam ser... Se soubesses, quantas morrem de medo: do amor, da solidão, do tempo, do abandono... Se soubesses, quantas sonham pelos mesmos motivos... Se soubesses, se por um momento, caçasses esse saber, atravessarias as palavras e, do outro lado, mergulharia no meu sorriso dessa manhã.
Aí, soprarias ao vento essa resposta vazia, e no vazio da resposta plantarias o silêncio da pergunta. Por uma fresta, teu sangue velejaria por minhas veias até que teus olhos e os meus olhos se encontrassem à luz de relâmpagos. Se não permitisses que o tempo, aos poucos, te aprisionasse entre barras de esquecimentos, saberias. Se não andasses pela escuridão do caminho em busca do caminho da escuridão, saberias...
O barulho surdo do bater da porta arrancou-a dos pensamentos. Em casa, só ela e uma comprida noite por visita. Apagou a luz. voltou ao quarto, ligou a televisão e suspirou – ou soluçou– fundo:
– “Pois eu sei, quantas de mim, até amanhã, morrerão”.