Carla!

Carla!

para que elas vejam luz em mim

[1- a Cena gostosa do desequilíbrio]

Entrei num vagão revoltado, o último metrô do dia – ou o primeiro – o Sol iluminava a cidade timidamente ou se convertera numa luz baça redonda da noite, um halo impotente combatendo todos os bares e crimes da madrugada. O Sol era a Lua. Carla me empurrara para dentro do vagão à força, depois de me emprestar o dinheiro da passagem e do café, que me acendeu e me despertou imediatamente; sentei-me rijo e confuso, ela acenou indiferente do lado de fora, como fechasse a porta à visita impropícia, como quem despedisse uma atenção não desejada – o gesto quase neutro duma criança partindo da jaula dos macacos à jaula dos jacarés. Toquei o banco de plástico, mas o desconforto vinha de dentro, fiquei em pé e, me aproximando da parede oposta, fui consultar o mapa das linhas – qual?! – como uma brincadeira deliciosa eu descubria que – na minha querida cidade – todas as linhas do metrô, todas as estações, absolutamente todas se chamavam “Carla”. Esta linha, a próxima, a outra, a anterior, todas elas me levavam de Carla à Carla, e ainda não sei por onde eu andava.

O vagão se mexeu... me desequilibrei e cai, foi só o começo. Aceleração vertiginosa, um chacoalhar, um remexer, ora parava abruptamente: não sabia e nunca saberei onde entrei – em “Carla” obviamente, onde estava Carla, estará ainda?; quando as linhas se cruzavam – milhares de vezes se cruzavam – havia um nó temporário nos serviços e nunca pude entender em qual vagão continuei porque meu vagão escurecia, girava no ar desconjuntado, arrulhava como um demônio voador – ademais, as linhas eram ora subterrâneas ora aéreas e por isso a paisagem não contava muito, ela atropelava o passageiro docemente; as direções imperscrutáveis, zona Norte e zona Sul ambas omitidas dos mapas, os funcionários que conduziam o metrô diziam sempre e simplesmente “Sssssstaçãum Carrrrrrla”, conquanto me vinha um comichão danado, quis perguntar a todos onde estávamos, porém meu vagão era ocupado por homens que saltavam depois de uma estação, por um senhor que não se mexia e por uma mulher linda, de olhos amarelos, cabelos pretos, silhueta de dançarina; dormi, pareceu-me justo descansar.

Trepidando e pulando do banco vazio, sou arremessado ao meio do vagão, a mulher me olhava fingindo me conhecer – sua simpatia era instantânea. Recupero a dignidade ao limpar a roupa, olho em volta, somos três ainda – “Sssstação Carrrrrla” e três homens sobem felizes conversando – volto ao meu banco, abro minha pasta, retiro meu caderno de poesia, saco uma caneta e começo a desenhá-la, assino – Tenório, que é meu nome verdadeiro e provisório - e essa mulher olha dentro dos meus olhos ainda, me hipnotizando ou me reconhecendo – o que entre amigos é compreensível – e pronunciou “Você é o Tenório!”

Aquele cujo nome, verdadeiro e provisório, revelado lhe revelarei.

“Sou sua amiga”, ela deu voz, eu retorqui “Amiga minha!”, ela continuava falando sem me ouvir, disse que se chama Próspera, disse que tem tudo o que quer – e mesmo o que não quer -, disse que conhece o sistema de transporte melhor do que ninguém, disse que adora se perder, também disse que tem relacionamentos confusos, que não raro ficava parada no meio do vagão sem poder se decidir, disse que dia-a-dia o complexo se expande e que é preciso paciência para começar a prever os nós e se aproximar da Estação Sé, disse que gosta de estar sozinha, disse que gostou da minha doçura à primeira vista, disse que eu sou sensível, disse que gosta de cozinha, disse que ama animais, disse mais, disse “Você não me é estranho, apesar de ser estranho!”, eu calado, eu falando “Você não conhece muitos Tenórios, não é?”

“Conheço todos os Tenórios, eles são todos iguais.” (como ela é ótima, fingindo que me conhece, quase acredito, por um segundo, mas sei: é só um recurso banal para não se interessar por mim) “Você é como o Tenório ali no canto do vagão”

“Não, você não me conhece ainda. Nem eu lhe conheço, com licença.” (ela sorriu)

“Mas eu o vi e reconheci, Tenório. Só pode ser você.”(descoberto enfim, eu que deixara meus crimes do lado de fora da vida)

“Eu o quê, Próspera?”

“Você que quer se apaixonar por uma mulher como eu” (eu ri)

“Eu não quero nada, moça, eu quero ficar quieto aqui” (ela riu)

“Não pode ser...” (eu ri)

“E todos os Tenórios se apaixonam pelas Prósperas?” (ela riu)

“Só existe uma mulher Próspera nesta linha de metrô, tolinho.”(ela é tão segura, não sei o que dizer sem parecer idiota) “Mas agora você deixou cair seu caderninho, não é, bobo? Aonde você quer chegar?” (recolhi o caderno que estampava a marca daquele perfil cativante)

“Eu vou à Sé da Carla, quero chegar à Estação Central, quero descer no nervo, bater na veia, parar em todas as estações, desmaiar de apnéia no coração dessa serpente” ela me corta pousando a mão no ombro, fico sem palavras, fico com palavras de novo “Vou aonde Carla me levar!”

Então Próspera sorri e beija minha boca, sai pela porta, fico a esperar, embasbacado, o sangue acendendo aos poucos, a saliva dela florescendo pétalas, aromas, frutos gigantescos, fico pensando em poemas do itabirano – “E se o anjo torto, beijando a boca de Carlos dissesse ‘Sê o Drummond nesta vida’, fugisse pela porta à gauche e Carlos caísse no chão?” (eu penso e sorrio resignado, porque o anjo acabava de sair). Depois paro de pensar no beijo em si, passo a pensar em Próspera. Batuco no banco, mordisco a bunda da caneta a refletir, escrevo um poema e não sei se o dedico à Carla ou à Próspera, dúvida cruel, cantarolo um música, leio o poema, o homem do canto do vagão resmunga um “Não!”, os demais ocupantes do vagão sorriem entre si, creio que não me tenham ouvido, estão a trocar idéias sobre Carla, que é bonita, que é maravilhosa, que é cruel, que é inteligente, que é curiosa, que é misteriosa, mas ninguém admite “Eu não a conheço bem.”

O desconhecido é cheio de adjetivos.

Mas minha Carla era um substantivo só. Não um objeto, um substantivo. Um dos camaradas de vagão me pergunta se eu desceria na próxima estação como todos, eu fico sem palavras. O trem pára – ou as portas se abrem, não sei – todos descem. Eu permaneço, gosto de acreditar: eu persevero, eu persisto. Pelo menos Carla ainda não me veio buscar, apesar de estar por toda parte; eu só permaneço.

Tenório é um homem comum como os demais Tenórios: apaixona-se por Próspera toda vez que a vê, sente-se alegre durante a silhueta de Próspera (alegria que dura mais quanto mais se pode tocar e cheirar e ver e saber), mas traz no peito a saudade de Carla, o desejo de Carla que o arrasta por plagas e estações desconhecidas, para estadias imprevistas. Um Tenório nunca está acabado, apesar de Próspera afirmá-lo contrário e de Carla afirmá-lo indeciso. Dividido entre Próspera e Carla, escrevendo febrilmente, Tenório – nome verdadeiro – não vê quando Próspera volta ao vagão certo para dizer a Tenório – nome bizarro – algo a respeito de Tenório – nome provisório. O trem volta a se mover.

Próspera me diz, duma voz melifluente e sensual “São mais de mil linhas,Tenório, você é paciente? Porque Carla não é exatamente um sistema, é mais como uma árvore, entende? Tem raízes bem escondidas, galhos infinitos retorcidos, folhas, flores, frutos diversos. Você está se sentindo bem?” (ela percebe quando eu coro, por isso me pergunta)

“Eu... penso sempre nessas linhas de trem como uma constelação” (a comparação é idiota, literalmente)

“Você é paciente?” Neste momento vem...

O nó (na garganta não há saída de emergência, apesar do fogo estourar no peito). O trem volta a se mover. A próxima estação – será a mesma? Caminhamos desde que entrei? Há quanto tempo entrei? – ampla, arborizada, com pátios cujo teto translúcido me faz ver as nuvens, um senhor entra, gentil, com sua mulher (muito mais velhos do que eu), sentam-se juntos e são um belo casal, ele toma as mãos dela e as beija uma de cada vez. “Parece tão galante” (quero escrever um poema um dia sobre um casal a envelhecer) “Seria sublime, se eles soubessem para onde vão...”Cada estação parece maior, mais ampla, mais arejada. Ou sou eu quem diminui? Vejamos...

“O senhor sabe o que cada estação significa?”

“Meu rapaz, eu nem sei mais”

“Pois, isso não me ajuda...”

“Tampouco atrapalha...” (a mulher o puxa pela manga do terno)

“Mas eu quero saber como as linhas do metrô se chamam Carla, as estações. Ou é tudo uma piada de mau gosto ou Carla é...”

“...como um sonho te levando até a Sé da vida.” (a mulher sussurra). A mulher chacoalha o corpo num calafrio calando todos os circunstantes, depois ela continuou “Foi com essa dúvida que eu o encontrei dentro deste vagão... há tanto tempo.”

Ambos começam a trocar carícias amenas, como palavras são coisas amenizadas, cada carícia valia um corpo nu, um sorriso, um poema. Isso me enoja, tenho vontade de vomitar com essa placidez, essa entrega sem sentido. É inveja. E o que me inspira a permanecer, todavia, à esta altura, já não sei dizer: se Carla, se Próspera, se o nojo, se a inveja. Ou o poema. O homem do canto do vagão parece um monge tibetano em trajes de dançarina, ele lambe os beijos, tem um picolé na mão – limão – e sorri à Próspera (que já se chama Poseidôna, eu me chamando Poseidon), quando fala é calmo e quando se move estica os pés até ficar em pontas; Prosérpina passa jeitosa, rebolante, tocando-roçando-roçante meu peito nitente. Somos feitos um para o outro, o homem-do-canto-do-vagão beija a mão de Priscila e me faz um gesto “Fica”.

O homem do canto do vagão me conhece, deve ter-me visto durante o sono, analisado, dissecado, deve ter contado meus passos, auscultado minha respiração, anotado meus delírios oníricos; está agora mesmo a ver como eu peço um gole do suco de laranja de Esperanza e – esgotado – me sento num banco do outro lado do vagão, enquanto multidões entram e saem falando sobre Carla e sobre o nó.

Ou sobre um vago “nós”?

Vem um nó Sssssssssssssssssstaçãummmmmmmmm Carrrrrrrlaaaaaaaa

Não resisto, cansado, cochilo, o homem-do-outro-lado-no-canto-do-vagão me faz um sinal “Bons sonos”, eu acedo, um monge tibetano me pacificando e uma bailarina me enfeitiçando – ele até parecia Carla, mas era Tenório-nome-qualquer, Próspera ainda beija minha bochecha.

[2 - a Cena dos Colos e dos Beijos]

Mais um nó, tive um pesadelo, acordei e estava sentado no banco, Carla havia apoiado a cabeça no meu ombro. Acariciei. Sua orelha quente me transmitia uma segurança, segurança que alguns pernilongos queriam romper. Protegi. Depois vieram dezoito pernilongos picar minhas mãos, meus braços, minhas pernas, meus olhos. Contei. Depois vieram abelhas africanas, vespas e batalhões de moscas. Eu tinha orgulho em defendê-la contra todos. Ciúme puro, não matei, porque são súditos do meu afeto sublime.

Carla dormia, depois se mexeu, ajeitando a cabeça, tocou de leve meu braço, não me disse palavra. Nesse ínterim, Próspera entrou no vagão e veio em minha direção, tocou minha fronte, fingiu não ver Carla, se ajoelhou à minha frente e dormiu no meu colo, disse “Eu quero calor, Tenório” –e meu nome já era Timóteo – “Timóteo, eu quero descansar”. Não me importei com mudar de nome tão rápido, mas estive vexado por alguns segundos, quando Luz entrou no vagão e dispensou o carinho dos demais, veio e se ajoelhou ao lado de Próspera, empurrando um tanto as pernas de Carla, disse “Eu quero sonhar que estou voando...”

“Vá à merda!” (eu respondi). Ela não ouviu, repousou preguiçosa.

Então Lídia, Marina e Conceição, Renata, Bruna e Dolores (madrilenha cheirosa) vieram exigir seu quinhão. Beijei a testa de Carla, ela acordou, beijei a bochecha de Próspera e a mão de Luz. Sentei-me no chão e todas se ajeitaram sobre meu corpo – Carla se levantou. Sorri. Elas dormiram aos poucos, as portas não fechavam e a voz repetia “Ssssstação Carrrrrrla”, “Sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssta (outra voz recomeçava) Ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss (recomeçando) Sssssssssssssssssssssssss (e ao mesmo tempo) Carrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr Carrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr Carrrrrrrrrla la la la la la la la la Sssssssssssssssssssssssssssssss Carrrrrrrrr Ssss lalalala Ssss Car Sssla Car” elas dormiam, Carla voltou, se embrenhou entre Mercedes, Penélope, Circe, Calipso, Calíope, Miopia, Margarida, Pérola, Pagú, se ajoelhou às minhas costas, esfregando os seios calmamente, sem pudor, beijou meu pescoço e dormiu também. Vigiei o sono de todas. Vieram pernilongos, chacoalhei-os. Resolvi atrai-los para meus braços – façamos dormir todos! – e eram mais do que dezoito. O vagão se mexeu Sssssssssssssta ta ta t at at atata tatatat aata ta ar ra tatata ra tatata Carrrrrrrrrrrrrr la. Algumas sonhavam, todas se pareciam à Carla – aquela que deixara-me entrar. Todas eram como Carla, mas cada uma a seu modo, eu mesmo cheguei a pensar ser como Carla, mas eu era já Osório, era Genaro, era Mateo, era Orégano, Daniel, era Prometeu, Carla, Carlos, Cogumelo, Ateu, Atreu, Michael. Era o bom e velho Procópio, bebedor de vinho na Rue Sébastopol, Paris, português espadaúdo e rico, que falava francês sozinho por um mês, casado com Maravilha, a mulher sem medo de ratos.

Contei tudo, não matei, ciúme puro. Como pode alguém ser tão variado? Carla saiu pela porta, corri, as mulheres correram, as portas correram, os velhos e os trilhos correram; ficaram Próspera, Luz, Flor, Colores, Lis, Íris, Ísis e afins. Gritei “Carla” – um senhor que saía respondeu “ESTAÇÃO Carla, meu jovem, Estação Carla”, ela parou, se aproximou e sussurrou – não sei o que. Voltamos de braços dados, Próspera me puxou pelo colarinho e beijou minha boca. Ardeu. Ela mordeu meu lábio inferior. Mordi. Depois Flor me puxou pelo braço e me deu um beijo – elas não diziam nada entre si, mas pareciam se divertir – e Flor beijou minha testa também. Com a língua. Íris pegou minha mão, beijou minha boca e minhas bochechas, lambuzou meu pescoço e enfiou a mão na minha calça. Carla voltou com um copo de refrigerante e pipoca. Veio Teresa, fez tudo diferente e foi igual. Luz (da minha vida) beijava bem e longamente, me concentrei, Carla assistia e ria ria. Paloma pegou meu queixo e puxou. Doeu, mas foi diferente. Contudo, foi igual. Sorri. Gatinha queria colo, enlacei-a num beijo monstruoso. Próspera de novo, enlacei-a num beijo carinhoso monstruoso. A porta se abriu Ssssssssssssssssss... etc Sssssssssssssssssss... O refrigerante mudara o hálito de Carla, Carla tinha o beijo mais gostoso: sabor Fried Chicken! Sabor melão-com-presunto-café-da-manhã-no-meu-aniversário-em-motel-barato. Minha boca doendo e eu beijando Carla, não largava, respirava e voltando exercitava os lábios, vermelhos, doloridos. Doloridos tentou me beijar – era homem de confiança – concedi. Depois Carla pegou a pipoca e o refrigerante, veio Porco, Palmito e Plebeu, Pierrot, Paulo e Queiroz (se Deus é por nós, quem é contra nós?).

Minha boca doeu, Carla voltou, sabor “Baked Potato” com queijo cheddar. Poi erano tutte le frutte qu’io sentivo nei sui labbri.

Carla foi embora, chorei. Despediu-se como quem tem sono. Depois a porta se fechou, escutei atentamente uma voz por trás dizer “Plínio” (eu) “você me quer?” Era Próspera ou era Carla? Virei-me, desapareceu; depois de novo a voz “Orfeu, és meu?” “Sim sim!” (respondi) “Sou teu, só teu” e me virei, desapareceu; chorei;

“Vá à merda, Alceu!”

“Meu nome é Crápula!”

“És meu?”

Virei-me, afinal eu era dela, seja lá quem ela fosse... Desapareceu e se moveu às minhas costas, me apunhalou. Morri. A porta abriu Sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss

“Carrrrrrrrrrrrrrrrrrrla” dizia uma voz anasalada e moribunda “vá à merda!”

Estação Carla, Carla desceu, tentei pegar em sua mão, pedir força; ela chacoalhou a mão e disse “Você está atrapalhando a passagem”; chorei; ela me pagou um café, mas estava indiferente, parecia cansada; depois me empurrou de volta, acenou indiferente do lado de fora, como fechasse a porta à visita impropícia, como quem despedisse uma atenção não desejada – o gesto quase neutro duma criança partindo da jaula dos macacos à jaula dos jacarés... Numa das demais jaulas havia uma cena de sexo indescritível, envolvendo aviões e arame-farpado – um dos passageiros de “Carla” me contara.

(janeiro de 2008)