ALMAS QUE SE ENCONTRAM PARA UM CHIMARRÃO.- Lia de Sá Leitão – 15/ 09/2009.
Como é comum, todos sabem que vivo com a fiel escudeira caçando histórias do Paraná.
Outro dia estava saindo de Cascavel e vi aquela enorme cuia de chimarrão, já sabia que o Paraná é o dono da Erva Mate, mas de tão saboroso no frio os vizinhos sulistas tomaram também para si a tradição do chá. Ri e brinquei, naquele momento falei que de tanto tempo aquela cuia ali exposta precisa de litros de água sanitária para lavá-la. acreditava naquele momento que era apenas um marco de mais uma indústria.
Felizmente, Vânia, como fiel paranaense me fez conhecer um pouco mais das lendas e tradições da Terra.
Ali não estava plantada como uma escultura apenas uma cuia de chimarrão mas sim, o marco dos pioneiros dessa terra vermelha que já podemos dizer que é o celeiro do mundo.
Sai estrada à fora pensando, todo marco tem um signo, um material e outro a idéia. Qual a história por trás de todas as Histórias? Só os pioneiros? Só os desbravadores? Só os comerciantes de mulas que transportavam mantimentos pra lá e pra cá sabiam o motivo exato ?
Tudo tem um começo, voltei quilômetro no primeiro retorno da BR para Cascavel para espanto da fiel escudeira que berrou em plenos pulmões, mas que loucura é essa? Porque voltar? Ri e fui numa casinha que tinha um senhor sentado na calçada, cheguei com meu sotaque nordestino e questionei, amigo, o senhor sabe alguma história sobre essa cuia de chimarrão? Ele riu e disse tem várias, e retornei a perguntar se ele poderia me fazer ciente de alguma interessante, ele contou na verdade todas que sabia, ouvi como criança, atenta aos detalhes, mas a que mais me chamou atenção foi a da alma penada que aparecia ali. Agradeci, votei para o carro e retornei para o apartamento em Cascavel, Vânia já fumaçava pelas orelhas e eu falei, ora amanhã é feriado, nós vamos para Curitiba numa boa, agora a estrada está até perigosa, e ficamos.
Mergulhei na pesquisa e descobri algo interessante!
Há muito tempo um velho forasteiro paranaense perdeu seu cavalo numa aposta de cartas e ficou sem ter como voltar para o seu lugar de origem.
O homem montou um acampamento muito simples na beira de uma estradinha de terra batida, no intuito de ouvir algum tropeiro e pedir ajuda. Ficou ali meses e ninguém passava ao largo. Como ao redor ele plantou milho, criou umas galinhas, e cultivava a erva mate, passou a vender na vila próxima, todo final de semana o homem ganhava uns trocados e guardava numa caixa de alumínio. O seu objetivo era guardar o suficiente para comprar um cavalo e voltar a fazer seus negócios com as tropas que varavam do Paraná para o extremo Sul.
Um dia, a neblina estava muito forte e ouviu trotes de cavalos, mulas e vozerio de homens, ele correu para a estradinha e um daqueles forasteiros pediu algo quente para beber, na casa simples tinha apenas o necessário para sobreviver mas ele tinha feito uma cuia e tinha recebido de pagamento uma bomba e assim ele podia oferecer aqueles homens o melhor chimarrão quente da redondeza. Logo se abancaram, acenderam fogo, cada um tirou dos seus fardos costelas de porco salgadas, carne de charqueado, um mais afoito saiu e trouxe uma caça, que nessa época era farta nessas regiões. Os homens ficaram ao redor da fogueira e a conversa varou a madrugada entre as voltas que o chimarrão dava e o sabor dos churrascos feito ali, na hora.
O chefe da tropa perguntou ao homem qual o motivo daquele isolamento,e o homem disse: amigo forasteiro, eu perdi meu cavalo, e agora só trabalho para comprar outro e retornar a vida de fartura que tinha antes. O homem compadeceu e mandou um empregado pegar a melhor mula da tropa e disse venha conosco, e serás feliz.
Mais que depressa o homem vestiu-se em sua melhor roupa e partiu com o grupo.
Tornaram-se amigos inseparáveis.de festejos e negócios.
A sociedade dos dois era invejável, todos queriam saber qual a razão de tão promissora vida. Eles se riam e alardeavam ao mundo que não eram mais amigos e sim irmãos, que a confiança de um com o outro era cega, e assim o sucesso e a alegria dos dois homens e suas famílias foram despertando inveja em outras pessoas. As maledicências das línguas más minavam a amizade, mas nada abalava, nem arranhava a fidelidade de um para o outro. A honestidade e seriedade de um com o outro era sublime.
Quando viajavam para a Capital os dois tomavam a frente da tropa lado a lado, nenhum avança meio metro na frente do outro, quando o negócio era para ser na cidade das águas fartas e de fronteira, a mesma coisa.
Um dia, os dois pela primeira vez na vida precisaram fazer trabalhos em direções diferentes, não podiam perder os excelentes negócios. Resolveram assim: um faria o caminho de Cascavel para a Capital o outro do mesmo ponto de partida para Foz do Iguaçu. Depois de concluídos os trabalhos se encontrariam no caminho.
Resolveram se encontrar em terras de Nossa Senhora de Medianeira e assim fizeram.
Os dois voltaram pelo caminho combinado, um sem parar em Cascavel para deixar o dinheiro arrecadado e o outro sem parar em Foz do Iguaçu com o mesmo propósito.
Avançaram na estrada com suas tropas e suas fortunas.
Dias marchando pela estrada de terra, o frio era cortante, mas eles não se renderam quero sucesso um do outro. Quando um dos tropeiros gritou que a tropa amiga estava ali diante menos de cem metros.
Foi aquela alegria! O encontro foi perfeito, deitaram fogo no buraco e fizeram aquela churrascada regada ao bom vinho da terra e as conversas entre os homens eram cochilhas, mulas, prendas e dinheiro.
Os dois grupos festaram a noite inteira.
O dia amanheceu com uma neblina pesada, os amigos estavam tonto de tamanha lambança, mas ao mesmo tempo viram uma placa acanhadinha oferecendo uma terra para a vender, os dois riram e apostaram pela primeira vez:
Quem chegar primeiro naquela terra será o dono da fazenda. Mas as pernas dos dois não conseguiam se sustentar em pé quem diria numa corrida, e os dois chegaram quase ao mesmo tempo e quando olharam aquela planície enorme, um disse ao outro, que tinha chegado primeiro e começaram a discutir pela primeira vez, e dessa discussão veio a tragédia.
Diante dos olhos de todos os homens das tropas, um tirou da cinta o facão e agrediu mortalmente o outro que ficou estendido inerte naquele golpe fatal. O assassino perdeu o sentido da vida e ali tombou enfartado com o corpo ao lado do amigo.
A tropa de homens gritava, chorava, perdia o rumo e tudo era caos.
Os dois ali tombados, mortos por uma brincadeira desajeitada de final de bebedeira.
As almas se olham e nesse momento deu uma ventania e um clarão branco espalhou aquela neblina.
As duas almas incrédulas do ocorrido com os dois corpos inertes! Abraçaram-se, a alma do assassino chorava e a alma do assassinado olhava silenciosamente para aquele desespero.
Colocou a mão no ombro do seu verdugo e disse: amigos, ainda somos almas, queríamos comprar essas terras por puro orgulho, a minha parte eu deixo para o futuro chefe da minha tropa e você fará o mesmo para continuarmos felizes no além. A alma do assassino encheu-se de esperança pelo perdão e concordou.
O primeiro homem que cuidava das tropas dos dois amigos exerceu a função de tropeiro e as duas almas hoje estão ao lado de uma cuia de chimarrão bem no meio da estrada aonde os dois se enfrentaram para a morte.
Quem passa na estrada que vai para Medianeira em noite de neblina fraca, vê uma fogueirinha acesa, dois homens sentados um passando a cuia de chimarrão para o outro enquanto os descendentes do homem que ficou como chefe das duas tropas dormem o sono dos inocentes.