Perdão

Os sinos deixaram no ar uma música que fazia até mesmo os anjos se arrepiarem. Sobre o átrio da igreja, uma senhora de setenta anos varria as folhas outonais, numa solidão silenciosa embalada apenas pela sequência metálica e angélica que reverberava por toda a cidade. Não se ouvia nada além daquele som: até mesmo os pássaros suspendiam seu canto; o vento freava momentamente o som que fazia ao balançar as folhas secas, retirando-as do conforto de seus caules; as crianças paravam a gritaria do futebol e as senhoras fofoqueiras suspiravam, cedendo um segundo precioso de silêncio aos seus discursos pérfidos.

Às sextas-feiras a missa começa apenas as oito, e contavam ainda duas da tarde. O sol se estampava em um céu sem nuvens; o calor intenso imprimia um ambiente instável de chove-sol-chove que ninguém conseguia entender, por mais que os ambientalistas tentassem explicar. Sob sua batina negra de quem nega os prazeres da carne e esconde as suas – como uma penitência pelos pecados que ainda virá a cometer –, o padre suava. Os poros gritavam por um pouco de ventilação, as gotas convertendo-se em minúsculas cascatas que deslizavam por sobre a testa saliente, dissolvendo-se na roupa pesada.

O padre contava ainda vinte e oito anos, sendo um dos mais novos que já havia passado por aquela igreja. Tinha olheiras profundas que só um viciado em cafeína poderia nutrir e reconhecer, olhos leitosos de quem passa muito tempo analisando palavras miúdas e se nega a usar um par de óculos ou lentes de contato, mãos calosas de quem, ao contrário do que possa parecer, não gasta horas na academia, mas sim na construção de casas para necessitados durante as semanas onde as obrigações com a igreja não são tão urgentes. Um ser incorruptível, dono de um sorriso manchado que gerava risinhos das mais novas e maus olhares das mais velhas – “ora, ele deve andar por aí a se esfregar com menininhas iludidas que o tomam por uma diversão”, ou “ele é um menino bom demais para não ter nenhum defeito, deve andar por aí alisando os coroinhas sem fazer cerimônias, tudo às escuras, como o demônio gosta de fazer as coisas”, os comentários indo e vindo silenciosamente, mas os sorrisos bobos e falsos de admiração, as mãos beijadas numa humildade beata e os conselhos encorajando-o a manter-se sempre íntegro e bom como sempre foi e sempre deveria ser só aumentavam. E o padre, realmente inocente de todos os pecados que lhe imputavam, acreditava piamente que tudo aquilo era sinceridade santa, que Deus havia posto aquelas mulheres e homens naquele lugar para dar-lhe conselhos tão bons porque era misericordioso e sabia reconhecer todos os seus méritos como discípulo de Pedro.

Estava sentado sobre um dos bancos da igreja, aproveitando aquele raro momento de paz em que o sino badalava para conversar com Deus. Tinha o hábito de sentar-se pelo menos duas vezes por semana naqueles bancos envernizados cheios de chicletes nas partes de baixo, quando a paróquia estava fechada, longe das loucuras dos domingos ou da legião de senhoras que vinha sempre rezar seus terços e cantar seus cânticos aos santos devotos e à virgem Maria. Ele fechava todas as janelas e a porta, ficando só, encarando a face ensanguentada do Cristo, que pendia na parede atrás do altar, olhando-o com uma expressão de tristeza misturada à piedade. O calor era insuportável, mas o padre dizia a si mesmo que o inferno não teria tanta complacência quanto às paredes daquela igreja, portanto a temperatura era suportável.

Tinha os olhos fechados, na metade de um salve rainha, quando a porta da igreja vibrou estrondosamente. Alguém batia do outro lado. Batia freneticamente, sequenciadamente, pronto para derrubá-la se assim fosse necessário. Alguém gritou, um grito cortante que se sobrepôs à última badalada do sino, tirando os pássaros de seu silêncio e o vento de sua letargia, fazendo o padre abrir os olhos em um sincero questionamento que ora tendia ao aborrecimento ora à preocupação. Respirou fundo, coçou a cabeça, secou a fronte e foi ver o que diabos estava acontecendo. Ninguém tinha o hábito de bater na porta do padre com tamanho desespero e urgência. Alguma coisa poderia não estar certa.

Tirou as chaves dos bolsos e abriu o cadeado que ficava entre as argolas de aço da pesada corrente. Desenrolou-a da porta da igreja – se perguntando por que ainda não haviam colocado um ferrolho ou uma chave tradicional naquela porta – e jogou-a para o lado, abrindo as portas duplas com violência. A luz do sol penetrou sem cerimônias, cegando o padre que até então se mantinha na penumbra dos vitrais translúcidos, e tudo o que ele pode ver foi um vulto alto caindo ao seu peito, pedindo ajuda e chorando como apenas os bebês esfomeados ou os recentemente enlutados choram. Tinha as mãos viscosas de quem derramou lágrimas demais, mas bastava um olhar mais atento para perceber que aquilo não eram lágrimas. Eram mãos rubras, manchadas de sangue.

O homem tinha uma faca nas mãos. E tinha as mãos manchadas de sangue.

- Padre, me perdoe, pois eu pequei.

Ajoelhou-se e chorou desesperadamente, atingido por uma dor desconhecida que o corroia por dentro e o insuflava a chorar cada vez mais. Caiu, deitado em posição fetal no meio do corredor, os olhos voltados para o altar. Jesus crucificado o encarava.

As pessoas não tardaram a aparecer pela porta. Primeiro, curiosos por conta do barulho das batidas na porta; depois, curiosos com os gritos lacrimosos do homem, como o presságio funesto de algum acontecimento importante. Logo, a porta da igreja estava repleta de olhos desocupados, pescoços espichados e expressões que transitavam entre a estupefação completa e a desaprovação. O padre fechou as portas sem pedir licença, deixando um sabor de curiosidade insaciada nas gargantas da pequena cidade.

- Padre! – gritou alguém do outro lado. – Ele está armado!

- Eu já vi! – o padre gritou em resposta. – Vão embora daqui, ele veio se confessar!

Mas ninguém iria embora dali até que todas as respostas estivessem saciadas, e o padre sabia muito bem disso. Suspirou, passando as mãos pelo rosto para tentar recompor-se do susto antes de voltar-se novamente para o homem.

O homem das mãos ensanguentadas agora já estava mais calmo. Havia se arrastado até um dos bancos, absorvido em seus próprios pensamentos atormentados, olhando para um lugar incógnito com olhos vazios daqueles de quem faz uma análise de sua própria alma. Brincava com a faca entre os dedos, mecanicamente.

- Dê aqui essa faca. – pediu o padre ainda de longe, com medo de um acesso nervoso do homem e um ataque eminente.

Sem reclamações – na verdade, sem nem mesmo uma palavra sequer – o homem estendeu a faca e entregou-a de bom grado, tremendo.

- Isso mesmo. Agora me conte, o que aconteceu?

O homem tinha as palavras engasgadas. Tentava falar, mas tudo o que saía de sua garganta eram gemidos ininteligíveis e sofridos, trêmulos como suas próprias mãos. Os anjos das pinturas e dos vitrais, as esculturas aos sopés das janelas, os próprios querubins bordados na toalha de mesa que cobria o altar, tudo parecia silencioso e atento àquelas palavras, prontos para a decisão que o absolveria ou o levaria para o inferno. Eram olhos de Deus transformados em criaturas inanimadas e intimidadoras, gárgulas traçadas nos mais belos desenhos, longe dos moldes góticos e funestos.

- Vamos, homem. – o padre tentava encorajá-lo. Agora, como o homem tivesse apenas as lágrimas que desciam de seus olhos como arma, o padre tinha coragem para se aproximar. Sentou-se ao seu lado, postando uma das mãos em seu ombro esquerdo, apertando-o com força, transmitindo sua coragem. – Vamos, diga-me o que aconteceu. Vejo que está arrependido, só resta que me confesse o seu pecado. Você matou alguém?

Sabia da verdade daquelas palavras no momento em que vira aquela faca. Sim, aquele homem havia enfiado aquela lâmina fria no peito de alguém, quanto a isso não restavam dúvidas. O sangue, a faca e o nervosismo do homem já eram provas suficientes para que nenhum investigador seguisse por outra linha de raciocínio.

O homem, tal como uma criança mal-criada pega em suas travessuras, apenas acenou em concordância com a cabeça, olhos abaixados de quem finalmente teve seu segredo revelado.

- Não se preocupe. Deus é infinitamente bom, homem, ele há de te absolver. Agora me conte o que o levou a fazer isso. Não precisa ter medo, não sou seu juiz, não irei te denunciar ou fazer qualquer coisa para te prejudicar.

O homem soluçava, abalado e ainda nervoso. Nem mesmo o peso da verdade saiu-lhe das costas. Ao contrário, pareceu-lhe um fardo ainda mais pesado. Fez com que ele chorasse ainda mais sonoramente, com mais sofreguidão. Deitou as mãos sobre os olhos, manchando as bochechas de sangue e diluindo-o nas lágrimas constantes.

Com dificuldade, o homem conseguiu articular as palavras que mudaram completamente a expressão do jovem padre.

- Ele... seu irmão... me perdoa, padre, me perdoa... por favor, me p-perdoa.

Chorava como apenas os verdadeiramente arrependidos choram; não por convenções ou teatralidade barata. Chorava com uma dor que o corroia, que o levava à loucura, ao caso de pensar em se matar para tentar amenizar um pouco a dor que pouco a pouco acabava por matá-lo. Jogou-se no chão, ajoelhado e humilhado, jurando por todo o amor de Deus que o que acabara de fazer – o sangue ainda estava fresco em suas mãos – fora extremamente amargo, com um gosto eterno de fel que ainda estava em sua garganta.

- Do que está falando, homem? – o padre tentava não ligar os pontos, numa burrice consciente. Ouvira perfeitamente as palavras daquele homem, sabia com toda a certeza que aquele sangue que o manchava era um pouco de seu próprio, mas, ainda assim, numa sucessão de atos irracionais, tentava convencer a si mesmo de que ouvira errado, que alguma coisa pudera milagrosamente ter entrado na boca do homem e atrapalhara-lhe a dicção. Ah, como ele queria que aquilo não fosse verdade!

- Seu irmão, padre... eu, e-eu o matei. Por favor, rogo seu perdão!

Abraçou os tornozelos do padre, beijando-lhe as botinas recém-escovadas e molhando-as com suas lágrimas salgadas. O homem fora claro e direto. O peito do padre comprimiu-se, num misto de vazio e incredulidade; seus olhos buscaram em vão algum conforto, uma imagem que pudesse dar um pingo de coerência àquela cena que se desenrolava a sua frente. Mas tudo o que recebeu em troca foram aqueles olhos gélidos de Jesus e de seus anjos, que o afogavam e comprimiam, esperando uma resposta aos atos hediondos daquela criatura miseravelmente posta aos seus pés.

O que fazer, no fim das contas? Agir como um ser irracional, deixar-se levar pela passionalidade e enxotá-lo igreja afora, onde uma horda de curiosos esperava impacientemente por respostas? Pô-lo sobre o genuflexório e mandar que rezasse para que redimisse seus pecados? Ou, por fim, agir como se não fosse o seu irmão, carne de sua carne e sangue de seu sangue, que havia acabado de morrer nas mãos daquele assassino, e perguntá-lo friamente os comos e porquês, como um bom psicólogo faria?

As opções vieram em um milésimo de segundo onde o ar foi suspenso e até mesmo os curiosos pararam com seus murmúrios – ou assim pareceu. O que fazer, Deus, me ajude! O que devo dizer, o que devo fazer, oh, por Deus, o que devo fazer?

Nunca havia sido muito próximo de seu irmão. Lembrava-se com amargura de, quando pequeno, sempre sair chorando das brincadeiras com os meninos mais velhos da rua, que o puxavam pelas cuecas e o chutavam até que pusesse sangue pela boca. E o irmão ficava por lá, impassível, rindo da brincadeira como os outros. Não ousava encostar-lhe um dedo, mas também nunca havia sido suficientemente corajoso para dar um basta àquelas brincadeiras idiotas. Era como se o que acontecesse não acontecesse com seu irmão, mas a um estranho digno de todas as perturbações a que era submetido.

O tempo passava, eles cresciam e o irmão mais velho era sempre aquele que tinha as mulheres e os amigos; o que se divertia e bebia, enquanto o mais novo ficava à particularidade de seu quarto empoeirado, com livros velhos e mal-traduzidos, olhando pela janela à procura de alguma alma que pudesse tirá-lo daquele lugar e mandá-lo para outro, onde as coisas eram permitidas, onde Deus não estaria vendo e onde ninguém o machucaria. Se divertiria como apenas os lascivos se divertem, sem peso na consciência, sem nenhum temor pelo castigo – seja do pai da terra ou do Pai do céu – e seria a mais feliz das criaturas.

Mas isso não aconteceu – ora, e quando acontece? Ao invés disso, a solidão só aumentou. Procurou refúgio na incompreensão da religiosidade e, com isso, tornava-se cada vez mais assíduo das missas e festas da igreja. Ouvia o padre com certo fascínio, mesmo relutante, de quem não acredita realmente no que ouve, mas finge acreditar para ao menos se sentir confortado, como se mentir para Deus fosse um ato perdoável. Balançava a cabeça em acordo com as palavras do padre, sublinhava a bíblia cegamente em busca de um parágrafo belo aos ouvidos ou uma citação que merecesse ser usada como uma frase de efeito.

Fez amigos na igreja, mas não acreditava na amizade de nenhum deles, não realmente – e quanto a isso não fazia questão de tentar mentir para si mesmo, já que nunca havia sido muito adepto a amigos, de qualquer forma. Via-os vez por outra, trocava palavras e conselhos da boca para fora, era ombro amigo de quem queria chorar e tecia comentários maldosos sobre o mundo e sua imundície, e de seu trabalho para salvar todas aquelas almas pecadoras que habitavam essa imensidão. Não era raro ver um ou outro amigo em uma falsidade descarada e inerente a qualquer relacionamento. E ele tentava encarar com naturalidade quando alguém vinha lhe dizer que a Maria já havia transado com o João e entrado na fila da comunhão no mesmo dia; que Alessandra se masturbava na sacristia da igreja e que até mesmo o padre José já havia transado em frente ao Santíssimo. Ele acrescentava um comentário aqui e ali, rindo da humanidade e de seus defeitos incorrigíveis.

Seu irmão nunca havia ido para a igreja, não desde que atingira idade suficiente para responder por seus próprios atos e tomar suas próprias decisões. A mãe ainda acreditava que o filho era católico e que rezava ao seu modo, quando na verdade ele era apenas mais um dos tantos católicos funcionais, que rezam o pai-nosso em voz alta antes de devorar a ceia de natal e pede o socorro de Deus nas horas de desespero em que ninguém mais pode ajudar.

Passaram a morar na mesma cidade, assim que o padre havia sido remanejado para a igreja de sua cidade natal. A igreja ficava a três ruas da casa do irmão, mas ainda assim fazia ao menos dez anos que o padre não o via. Não havia se dignado a visitá-lo nem mesmo uma vez, preferindo, ao invés disso, esperar pelo irmão, aguardar pelo fatídico momento em que ele entraria por aquela porta e se redimiria de seus pecados, pedindo perdão de joelhos, olhos cheios de lágrimas, numa humildade que apenas Deus poderia lhe dar.

É claro que isso não aconteceria, ele sabia disso. Sabia que o máximo que poderia acontecer era vê-lo passando pela rua, distraído como sempre, chutando pedras e assoviando a caminho da padaria ou do mercado. Trocariam no máximo um abraço e teriam um diálogo de elevador, falando sobre o tempo e perguntando o que aconteceu de bom durante todo o tempo em que não se viram. E naquela conversa eles se descobririam estranhos, dois homens que não passam de colegas, vizinhos que não se falam.

Por que, então, se importar tanto com a morte dele? Por que chorar pela morte de um estranho, pelo assassinato de um homem que há muito deixou de ser alguém importante na vida dele? A morte de um colega sempre chega com certo choque, mas não chega a ser triste. É apenas um ‘oh, ele morreu...’ e uns minutos de silêncio, acompanhados de um dar de ombros em que a vida segue adiante. É apenas o fim de mais uma presença, o desaparecimento de um rosto não tão familiar ou conhecido. Mas o que fazer quando esse rosto é sangue do seu sangue, um irmão, que, no fim das contas, nunca cometera nenhum ato vil o suficiente para ser laureado com uma faca em seu peito?

- Por quê?

Foram as únicas palavras que conseguiram sair da boca do padre, como um mero sussurro que reverberou como um grito por toda aquela igreja. Ele não queria motivos, não realmente. Não queria saber o que havia acontecido, queria se manter na escuridão da caverna de Platão, ver apenas sombras e ser feliz com suas amarras. Então por que a pergunta? Por que se envolver mais profundamente com a morte de um homem que não mais conhecia?

- Oh, rogo a Deus, não me pergunte nada! – o homem respondeu, sussurrando tão baixo quanto o padre. – Só peço que me perdoe, padre, pois não me orgulho do que fiz.

O que fazer, agora que aquele homem lhe pedia o perdão? De fato perdoar-lhe, como um bom padre cristão, ou denunciá-lo às autoridades? Ora, era um irmão, era um amigo, acima de tudo, que havia morrido pelas mãos daquele homem, posto sua impessoalidade ou qualquer sorte de pensamento negativo. O que fazer, Deus do céu, ajude-me!

Viveu um momento onírico: era como se as paredes parecessem menores, como se os vitrais o oprimissem, exigindo uma resolução imediata ao problema, exigindo um veredicto absoluto sobre a vida daquele homem que tão humildemente se ajoelhava aos seus pés, beijando suas botinas e chorando sobre o chão sagrado da sacristia. Era como se o padre houvesse bebido uma quantidade considerável de vinho; tudo rodava ao seu redor, pedindo uma explicação racional e uma resposta sincera. Precisava de um argumento convincente, seja para incriminá-lo ou para absolvê-lo.

- Vá em paz, meu filho. – disse, um nó formando-se em sua garganta, segurando as lágrimas que queriam cair. – Teu pecado foi grave, mas teu arrependimento é absoluto, posso ver em tuas palavras que discorre acerca da verdade. Vá em paz.

- E qual a minha penitência, padre?

- Tua consciência o dirá, meu bom homem. Não sou ninguém para puni-lo ou culpá-lo por tais atos. Teus motivos, sejam eles banais ou não, não são de todo irracionais. Não sei de teus propósitos, e nem intenciono sabê-lo; já me basta o teu arrependimento, é o bastante para tua absolvição. O mundo já será cruel o bastante contigo; Deus será misericordioso, como sempre o foi, e poderá entender todos os teus motivos. Não sou Deus para julgar-te; sou padre para absolver-te, e essa é minha função.

- Oh, padre, obrigado, obrigado! – ele respondeu, lágrimas escorrendo de seus olhos avermelhados, joelhos postos no chão, cabeça baixa e mãos postas a frente do peito. – Meu pecado foi horrível demais, não poderia imaginar que tu irias me absolver. Obrigado, oh, obrigado, por todos os santos!

- Saia pelos fundos da sacristia, bom homem. – o padre ainda teve a consideração de dizer – Evite os curiosos que amontoam a entrada da igreja em busca de respostas.

O homem saiu, desfazendo-se em agradecimentos, fielmente convencido de que o padre o havia perdoado.

Mas não, ele não o havia perdoado, não por completo. A dor de perder o irmão, assim que aquele homem lhe foi embora pelos fundos, finalmente fez-se perceber: ele lembrou-se de todos os dias no parquinho, escavando a areia com as pás de plástico, jogando terra nos olhos de seu irmão, rindo e colhendo amoras com a ajuda da mãe, que o segurava no colo e o elevava às alturas em busca dos frutos mais maduros e deliciosos. Ele sentou-se sobre um dos bancos, chorando como nunca havia chorado antes, lembrando das risadas e dos dias em que o irmão fazia piadas; da juventude, oh, a juventude, os quinze anos de idade onde eles roubavam os cigarros do tio e fumavam escondidos; onde pediam bebidas aos donos do bar que, de bom grado, lhes davam garrafas e mais garrafas com as quais os dois se embebedavam. Ao chegar em casa, diziam que estavam jogando bola no campinho e estavam profundamente cansados de toda a correria.

Lembrou-se de todos os dias em que choraram: por conta de alguma frustração besta que nem mais lembravam uma semana depois, por namoradas esquecidas, por matérias perdidas na escola, por bebedeiras que deixaram de participar, por transas que não completaram seja por nervosismo ou simples desconforto.

E também se lembrou de todos os dias que riram: por todas as mulheres que conquistaram – o irmão em um número extremamente maior –, por todos os sonhos que conquistaram – que iam desde ler um livro de mil e quinhentas páginas até ir para o seminário – e por todos os desejos que conseguiram realizar.

Sentado sozinho, ele chorou. Não por perdoar o homem que manchara as mãos de sangue ao matar seu irmão, mas por não se perdoar ao perdoá-lo.

Chorou por todos os dias em que poderia ter falado com o irmão e não falou. Chorou pelos momentos em que poderia ter-lhe dito: ‘eu te amo’ de um modo fraternal e não o disse. Por todas as brigas e por toda a inveja, por todas as coisas ruins que cegaram seus olhos às coisas boas que ambos compartilhavam.

Chorou por ter de esperar a morte do irmão para perceber o quanto ele era importante em sua vida.