RETINA
Sem muita disposição para ir, o calendário lembrava-me insistentemente que deveria. Embora um pouco avesso a autoanálise, um pouco tenso com a hipótese de ter marcado um dia e desta forma me obrigar a ir por ter estabelecido que iria, olhava pela janela. Buscava uma desculpa até que alguém se lembrasse e viesse me dizer que hoje tinha uma consulta, uma consulta marcada.
Sentindo-me velho, procurando na velhice a desculpa para desmarcar, pegar o telefone e cancelar, usando do que eu supunha fosse impedimento para um velho não sair; olhei o tempo. Não, não o tempo não passava pelos meus anos e não vasculhei lembranças que me tornassem saudosista. No instante em que intencionava recordar dos amigos que o tempo expurgou da minha vida, disse a mim mesmo que não era o caso, que a desculpa que eu procurava estava na chuva, nas gotas que cairiam oportunas naquela hora de abrir a porta, nas gotas artificiais da mangueira utilizada por minha esposa para regar as flores do jardim recém plantado. O jardim molhado sujaria meus sapatos e me importava com a aparência que teriam ao me examinar e uma flor na lapela seria cabível se tivesse nascido há muitos anos atrás. Não era o caso.
“Você não tem uma consulta hoje?”, a esposa me perguntou. Olhei para cima e o calor me parecia mais convincente.
“O que faz vestindo o terno do seu pai?”
Realmente, vestia o terno de meu pai e sentia tanto calor quanto ele sentia naqueles domingos suarentos de missa. Meu pai usava o calor como desculpa para não nos acompanhar. Íamos apenas minha mãe e eu. Ia eu sem ninguém para minha consulta vestindo o terno que pertencia a meu pai sob protestos de minha esposa. Havia tantas roupas que eu podia usar, escolhia justo aquele terno por que motivo se já havia tantos anos que meu pai falecera? Mas me servia tão bem, minha barriga tão saliente quanto aquela que meu pai exibia nas fotos penduradas na parede, aqueles óculos que lhe davam o ar de seriedade e me fazia temer quando enrubescia franzindo a testa e movimentando as lentes. Os óculos me lembraram do exame, de que havia marcado aquela data e estava atrasado.
Estava atrasado para lembrar meu pai depois de tanto tempo. Mas recordava por todo o trajeto.
Havia marcado a consulta com o mesmo médico que me examinava desde criança, desde que foi descoberta minha miopia, desde o instante em que acompanhava meu pai nas consultas com o Dr. Geraldo, ambos caminhando míopes pela calçada. Segurava minha mãe protegendo a meus olhos deficientes e eu apertava para repetir o gesto solidário.
Bato na porta. Existe um interfone, mas nunca utilizo, repito o bater ritmado e se não sou ouvido me afasto e olho a janela do segundo andar e grito o seu nome.
Não me atendem. Não vem a resposta de que posso entrar e que o portão está aberto.
Havia marcado uma consulta e o calendário fizera questão de me alertar que aquele era o dia. Mas Dr. Geraldo havia se esquecido.
Quero pensar que ele se esqueceu, que não ignorou meus gritos, que não se esqueceu que eu era filho de meu pai e me confundiria com ele, não quero acreditar no que sua filha diz gritando também da janela.
Dizia sempre como era meu pai, como eu era parecido com ele e agora não o tenho mais para clarear minha miopia, para me proporcionar a visão de meu pai além da foto pendurada na parede. Não tenho mais o foco. Tenho um paletó e a lembrança de que preciso deixar de me examinar.