O DOENTE
Movia agitadamente braços e pernas, e quando chegaram com a maca, foi um custo pô-la ali e sair na ambulância, tiveram que sedá-la com uma injeção. Mas fora necessário, falavam todos. Fora necessário. Levavam-na pela segunda vez. Era pequena quando fora pela primeira. E não dera tanto trabalho assim. Era apenas uma garotinha e hoje é uma moça de quinze anos. Assaltada por desejos comuns à idade, seguiu uma colega até a casa do namorado dela, onde encontraria o primo de uma colega, e estavam namorando em segredo há umas semanas. E lá, ninguém sabe mais o que aconteceu. Chegara em casa aterrorizada com algo, algo inexplicável. Inexplicável porque nem a colega e o namorado dela souberam dizer algo que pudesse explicar tudo aquilo. Era comum passearem e a casa do namorado da dita cuja era uma casa estritamente de família. Não havia porque se preocupar.
Mas os pais da doente se preocupavam. E começou a desconfiar a dizer coisas às travessas de um lado e de outro. Até que a mãe do namorado da amiga da doente se manifestou: Que ele pudesse se conter na frente dos outros. Estavam todos em casa: o marido, a empregada e ela. As crianças conversavam na cozinha, ela e o pai na sala a assistir TV e a empregada a lavar a louça, escutando tudo. Mas o que diziam então? Não sei. O que diziam Bernadete? Ah, sim. Falavam de provas a fazer, de namoradinhos de coisas assim, nada de mais. Nada de realmente chocante. Ficaram sozinhos sim. Mas não por muito tempo. Apenas por uns minutos enquanto a outra ali estendia a roupa no varal. A verdade é que algo se perturbou... E alguma coisa aconteceu. O que foi que aconteceu? Ninguém sabia. E o pai da doente ainda se questionava quando a viu deitada na cama, cheia de marcas roxas e unhadas pelo rosto. Ela mesma que fizera, dizia o enfermeiro, indefectivelmente de branco e com o rosto todo suado. O hospital estava quente àquela hora e ele dizia que infelizmente o ar refrigerado estava estragado. Mas que ele não se preocupasse que isso se consertava logo, e os quartos, a despeito de tudo, eram arejadíssimos, ele que visse por si mesmo tudo, como era bom.
Sintomas comuns de esquizofrenia, dizia minutos depois o médico a ele e à sua esposa. A filha deles certamente seria portadora de uma esquizofrenia comum. Mas o engraçado era que os exames feitos não indicavam nada disso. A esquizofrenia é incurável, no entanto é diagnosticável em exames como os que fazemos aqui e ela não tem nada. Ela, por acaso, é usuária de drogas? Essa pergunta abalou a ambos e responderam incontinenti que não sabiam de nada e a filha tinha sempre as melhores companhias. No entanto, algo poderia ter acontecido. Ela tinha disritmia quando criança, disse a mãe ao médico, sacando um envelope velhíssimo com o registro das ondas cerebrais da menina. O médico disse que não precisava, a mulher insistiu e ele olhou dizendo que o que ela tinha era algo, por assim dizer, sem importância e sem relação com tudo o que acontecera, já que exames mais modernos indicavam que nada havia na mente da menininha. Menininha não, disse ele. Uma moça feita... Quando voltaram, ela tinha olhos abertos, mas sem brilho vital. Uma enfermeira inclinava a sua cama e ministrava aqueles comprimidos brancos e laranja. Depois, serviu-lhe calmamente o jantar, na boca como se ela fora um bebê, e ela voltava a dormir.
Nos dias subseqüentes, ela era sempre vista acompanhada de um enfermeiro ou de um voluntário a levá-la para passeios curtos nos corredores. Vendo aquilo, sua colega confessou à mãe da doente que ela acolitava os encontros de sua amiga, e naquele dia ela iria lá para namorar, já que sabia que não era permitido, porque o menino era católico romano e ela era adventista do sétimo dia. Mas isso não é verdade, disse a mãe. Nós nunca, explicitamente, falamos isso com ela. Não havia uma real proibição. Mas àquela hora, verdades boiavam mesmo, sem nenhum pudor. Então a mão da doente encostou-se no vidro... Era tarde demais para alguma coisa?
Era. O médico que diagnosticou o problema, fez exames ainda mais modernos, e trouxe chapas negras com fatias de cérebro mostrando manchas incomuns e coisas assim... Seria algo talvez congênito. Não levara pancadas, nunca tinha apanhado do pai, insistia a mãe. Eu também não bati. Como ninguém batia na doente, será que ela se batia? Sem muitas conclusões, e com um exame superficial do crânio da doente que estava ileso, o médico a condenou a viver como uma batata inglesa o resto de sua vida tomando um remédio para a cabeça não estourar de vez.
Foi para casa.
Então lá, reaprendendo a comer sopa de colher, a doente desiste de ir à escola para sempre, desiste de andar de bicicleta ou ir ao shopping namorar vitrines. Começa a usar fraldas novamente, por causa das fezes, urina e das regras... Assaduras mil depois, é levada à clínica de reabilitação, onde tentou algumas vezes colocar um cubo num buraco redondo. Sem muito sucesso nessa empreitada, abandonou os brinquedos lógicos e hoje expõe suas pinturas no mundo inteiro, que vê nela um novo Kandinsky parcialmente acéfalo.
Afinal, a doente é mais feliz do que seria se tivesse resolvido casar com aquele unzinho do dia do colapso...