CARLOS

Carlos me contou ontem que tinha ganhado um prêmio de loteria. “Que bom”, disse. “Quanto foi, já depositou na conta?”.

— É bicho camarada! Meu pai explicou como é que aposta, muitos anos atrás, então, passando por uma banca aqui, eu resolvi arriscar. Então eu fiz e ganhei dois mil, cara! Já dá para comprar um pouco do material para a exposição, faltam uns detalhes... Que bom, eu não ganho nada, nunca!

— Interessante, eu disse finalmente. Sabia que isso é contravenção? Não lhe preocupa?

— Claro que não, mané! Vou montar o meu portfolio hoje mesmo, vou fazer bonito numa exposição coletiva daqui a um mês. Eu teria de contrair um empréstimo para comprar material e montar para tal exposição em São Paulo. Quem sabe um prêmio... Andei pela zona rural, fotografei até os canaviais, de cima das montanhas...

E havia poesia nas intenções de Carlos, e na sua maneira de gesticular, e no fato de encontrar-me naquela esquina horrenda, na frente de uma horrorosa borracharia, e no fato de sonhar alto ou baixo, sei lá, na minha frente. E eu a desconstruir seu discurso, sendo impertinente e analista demais. Carlos é tão bom, sinto-me grato a Deus por seu amigo. E ele é tão dinâmico. Depois que o encontro, passo bem uma hora pensando sobre ele. Carlos tem olhos verdes. Minha maior frustração é ter olhos castanhos demais, além de ruins, insuficientes, fotofóbicos. Carlos devaneia nas suas fotos e eu me sinto invejoso porque não sou como Carlos. Ele é mais baixo que eu, que sou apenas médio, mas ele é mais bonito, está em forma, tem um grande talento e ganhou ontem no jogo do bicho! Carlos anda de bermuda, chinelos e camiseta-regata, com sua beleza à mostra e eu em roupas bem largas a esconderem as minhas formas horrorosas. Carlos estudou arte, fotografa bem e está aqui nesse buraco no interior porque o pai trabalha aqui. Eu não queria ser Carlos. Às vezes eu me reprimo por ser pouco afetuoso com ele, sem ser da maneira que deveria.

Ele gosta de Janis Joplin, e um dia perguntou-me, numa fila de banco, se eu conhecia “Piece Of My Heart”, da cantora. Talvez porque me visse com um CD na mão. “É a minha favorita”, disse eu. E batemos um papo legal. E ele falou de sua família, de sua namorada, eu falei de minha cadelinha, da minha família. Trocamos emails e ele almoçou lá em casa, para delírio das meninas. E conversamos sobre Freud, do qual ele não gosta de verdade. Apresentei a ele muitas músicas que eu gostava, creio que pensou que eu fosse um esquisito. Sempre achei relativos certos conceitos como bom, ruim; afinado, desafinado; certo, errado; e outros mais. Quando disse isso a ele, ele me disse: “O quê?” Pensei: Calma, vá devagar. Ele é homem. Nunca prestaria a devida atenção a isso...

— Passe lá em casa.

Esse foi sinal máximo de um pacto de amizade, eu deveria ficar lisonjeado depois disso.

— Tá, disse eu. Cada vez menos quero ver Carlos, menos quero encontrá-lo. Ele é aquilo que não sou no intelecto, aparência e modos. Temos apenas alguns pontos de contato. Então andar com alguém mais bonito que você, mais atraente e interessante, mais sortudo, oriundo de uma cidade mais desenvolvida; criativo; cheio de mulheres; chega! Já nem auto-estima tenho. Ah, esqueci-me de que não creio em auto-estima.

É chato vê-lo se esforçar por levantar algo pesado e mostrar sua musculatura. É chato vê-lo sorrir em mármore luzidio, olhar em setas fulminantes para mulheres, andar de papetes e jeans sem camiseta na rua, enquanto eu, eu somente feio, feio, feio, feio. Carlos é um pseudo-intelectual, com profissão e diploma universitário.

Penso que o amo como amaria a um irmão, mas posso competir com ele?

Ele exaure todo o oxigênio do ar respirável quando chega a algum lugar onde estou. Ele ilumina tudo a ponto de me ofuscar. Completamente.

E mais essa ainda? Ganhou no jogo do bicho! Demais. Uma pergunta sua me desperta desse torpor:

— Aonde você vai?

— Vou à biblioteca, depois tenho aula à tarde, e à noite. A gente se vê. Vai estar na Internet?

— Bem, ele diz. Espero, mas não gasto muito telefone, você sabe! (E eu penso: logo você acha alguém para bater papo, e adeus...) E aquela garota? Bem, se ela atender a um telefonema hoje, quem sabe, mas estou mais interessado em minhas fotos...

Carlos acena amarelamente enquanto eu engulo a seco o pejo, a frustração por ser a combinação perfeita de DNA que resultou em piada biológica de primeira. Adeus Carlos, tchau, Carlos, até mais Carlos, falou Carlos. Eu luto entre o sintagma e o paradigma, até que me viro balançando a mão para ele. De repente jogar-me embaixo daquele caminhão pareceu-me um pouco atraente para aquela manhã que só me dava mais cinco minutos até ao meio-dia.

Carlos fala como quem sabe ou não das suas qualidades e defeitos. Eu gosto dele, mas quando tudo o que ele quer é tomar cerveja e jogar bola eu digo: “Há companhia melhor que eu”. Estou falando sério, Carlos. É claro que não vou à Igreja hoje, mas ir para boteco para ficar a noite inteira ouvindo besteira e música sertaneja? Nunca! Anti-social, eu? Era o cara que inventou esse tipo de música... Nem morto, como? Deixa para lá. “Deve ser realmente muito bom para ele, penso”. Para ele e os outros porque não me apetece esse tipo de programa. Coisa que não faço nem por pessoas mais especiais...

Essa conversa, por telefone, aconteceu pelo menos três vezes e numa delas a minha mãe ouvia tudo, repreendendo-me severamente ao final. “Não, mamãe, não estou escorraçando ninguém, mas sei lá...”.

Bem, eu me mentalizo lá, a tomar guaraná com rodelas de laranja, ouvindo as suas piadas engraçadíssimas. Ele tomando a cerveja da moda, não sou eu quem gosta disso. Por que me comprometi a esse ponto, então? Imagino-nos lá, então o papo transita por vários assuntos e em todos eles a minha opinião é diferente, então alguém se irrita comigo, diz que isso não é papo para mesa de bar. Isso não é mente para mesa de bar, penso comigo.

Carlos de novo ao telefone, e eu:

— Diz que eu não estou, mamãe.

É o tempo que preciso para deixar a cama e desligar o celular. Eu gosto do Carlos, mas somos muito diferentes para sermos amigos do peito. Ontem ele me ligou dizendo que as fotos ficaram tão boas que vem aqui me mostrar. Ah! Houve um dia na minha vida que tudo o que quis eram amigos, pessoas a me visitar... Ah...

Meu senso estético destruíra a minha amizade com ele.

Mais um para me preocupar do dia do meu aniversário. Vou ter de sair correndo daqui, vou ter de ter uma estratégia para esse dia...

Alex Mendes
Enviado por Alex Mendes em 19/03/2010
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