O Pianista
Era como se não existisse mais nada no mundo. Era como se seus braços escapassem de seu corpo e bailassem sozinhos sobre a superfície alvinegra do piano à sua frente. E ele se entregou.
A música estrondosa encheu a sala vazia e quase o fez levitar da banqueta quando invadiu seus ouvidos. Com os olhos fechados, ele continuava acariciando as teclas do velho piano de uma forma cada vez mais intensa, quase como se sua vida, a partir de um certo momento, dependesse daquela música.
Mas se ele naquele momento conseguisse racionalizar alguma coisa, talvez pensasse: será mesmo que não depende? Será que sua música não era o combustivel que fazia a vida queimar dentro de seu peito de outra forma vazio?
Mas nenhum pensamento podia invadir aquele templo acéfalo naquele momento, nada podia contaminar a beleza intensa daquela música que nunca havia sido escrita nem nunca o seria. Naquela sala escurecida por grossas cortinas que escondiam o mundo criava-se e morria-se sem um papel nas mãos, e sem notas e bemois sendo escritos e registrados.
E foi então que a música se elevou a níveis quase insuportáveis. O pianista se contorcia como se enfrentasse os espasmos de um gozo há muito contido no peito de um adolescente. E ele explodiu.
Quem passasse na rua naquele momento quase poderia ouvir os gritos e gemidos que escapavam tanto do pianista como de seu companheiro centenário, de madeira de lei e teclas de marfim. Quase poderia ouvir, embora nenhum som escapasse pelas frestas das janelas tapadas. Quase.
Atingindo o ápice de sua criação, o pianista caiu esganiçado da banqueta e se estatelou no chão sujo, onde permaneceria por várias horas ainda, antes que tivesse forças para se levantar. Aquela música tinha sido intensa, pensava ele entre suor e lágrimas que escorriam de sua testa e olhos, misturando-se ao sangue que escapava de seus dedos esfacelados. Tinha sido das mais intensas de sua vida.
E o pianista quase sorriu quando sentiu o poder de sua criação escapando para o vazio do mundo lá fora. Era este o sentido, todo o sentido de criar: ver sua obra escapar por entre seus dedos e se desfazer em uma brisa de outono na rua vazia. Nada que criava era seu, ele pensava, pertencia ao mundo. Talvez fosse por isso mesmo que ele se recusava a escrever suas canções, só para vê-las perderem-se no ar à sua frente.
Tempos depois, talvez dias, talvez alguns minutos, o pianista se levantou, bateu o pó das dobras de sua calça e caminhou até a janela. Ali, sem mover a cortina, espiou alguns momentos por entre as frestas no tecido a rua lá fora.
A brisa de outrora tinha se tornado um vento intenso e frio, que prenunciava um inverno rigoroso, ao qual talvez ele também não sobrevivesse.
A testa do pianista ficou vermelha por causa do contato com a madeira velha do batente da janela e ele decidiu se levantar. Com a mão na borda da cortina, ele hesitou. Talvez hoje a abrisse, para ver de fato como estava o mundo lá fora.
Ou talvez um outro dia.
E com um sorriso aflorando em seus lábios caminhou de volta ao piano. Uma nova canção começava a nascer em seus dedos.
180310
Era como se não existisse mais nada no mundo. Era como se seus braços escapassem de seu corpo e bailassem sozinhos sobre a superfície alvinegra do piano à sua frente. E ele se entregou.
A música estrondosa encheu a sala vazia e quase o fez levitar da banqueta quando invadiu seus ouvidos. Com os olhos fechados, ele continuava acariciando as teclas do velho piano de uma forma cada vez mais intensa, quase como se sua vida, a partir de um certo momento, dependesse daquela música.
Mas se ele naquele momento conseguisse racionalizar alguma coisa, talvez pensasse: será mesmo que não depende? Será que sua música não era o combustivel que fazia a vida queimar dentro de seu peito de outra forma vazio?
Mas nenhum pensamento podia invadir aquele templo acéfalo naquele momento, nada podia contaminar a beleza intensa daquela música que nunca havia sido escrita nem nunca o seria. Naquela sala escurecida por grossas cortinas que escondiam o mundo criava-se e morria-se sem um papel nas mãos, e sem notas e bemois sendo escritos e registrados.
E foi então que a música se elevou a níveis quase insuportáveis. O pianista se contorcia como se enfrentasse os espasmos de um gozo há muito contido no peito de um adolescente. E ele explodiu.
Quem passasse na rua naquele momento quase poderia ouvir os gritos e gemidos que escapavam tanto do pianista como de seu companheiro centenário, de madeira de lei e teclas de marfim. Quase poderia ouvir, embora nenhum som escapasse pelas frestas das janelas tapadas. Quase.
Atingindo o ápice de sua criação, o pianista caiu esganiçado da banqueta e se estatelou no chão sujo, onde permaneceria por várias horas ainda, antes que tivesse forças para se levantar. Aquela música tinha sido intensa, pensava ele entre suor e lágrimas que escorriam de sua testa e olhos, misturando-se ao sangue que escapava de seus dedos esfacelados. Tinha sido das mais intensas de sua vida.
E o pianista quase sorriu quando sentiu o poder de sua criação escapando para o vazio do mundo lá fora. Era este o sentido, todo o sentido de criar: ver sua obra escapar por entre seus dedos e se desfazer em uma brisa de outono na rua vazia. Nada que criava era seu, ele pensava, pertencia ao mundo. Talvez fosse por isso mesmo que ele se recusava a escrever suas canções, só para vê-las perderem-se no ar à sua frente.
Tempos depois, talvez dias, talvez alguns minutos, o pianista se levantou, bateu o pó das dobras de sua calça e caminhou até a janela. Ali, sem mover a cortina, espiou alguns momentos por entre as frestas no tecido a rua lá fora.
A brisa de outrora tinha se tornado um vento intenso e frio, que prenunciava um inverno rigoroso, ao qual talvez ele também não sobrevivesse.
A testa do pianista ficou vermelha por causa do contato com a madeira velha do batente da janela e ele decidiu se levantar. Com a mão na borda da cortina, ele hesitou. Talvez hoje a abrisse, para ver de fato como estava o mundo lá fora.
Ou talvez um outro dia.
E com um sorriso aflorando em seus lábios caminhou de volta ao piano. Uma nova canção começava a nascer em seus dedos.
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