O Menino de Bronze
Foi na primavera. Decidimos que naquele ano iríamos visitar a Feira Nacional de Livros que acontece anualmente no Rio Grande do Sul. Já era o quarto ano da nossa turma e a viagem turística percorreria algumas cidades do sul do país.
Nosso grupo não era muito grande e esbanjávamos entrosamento. O roteiro que seguiríamos certamente estreitaria, entre nós, os laços de amizade que se fortaleceram gradativamente no decorrer dos anos de curso em comum.
Ao chegarmos a Erechim, fomos deixados no hotel. Estando cada qual de nós devidamente instalados em nossos respectivos quartos, o ônibus seguiu, com o guia para revisão, procedimento adotado pela companhia que havíamos contrato.
Todos estavam cansados, exaustos da longa viagem. Isso já era por volta de 08:30h da manhã. Combinamos de nos encontrarmos no saguão para o café mais ou menos 1 hora e meia mais tarde e, em seguida faríamos as primeiras explorações pelas imediações do hotel. A cidade era muito bonita, seria extremamente agradável caminhar por suas alamedas, praças e jardins, os quais, pela janela, enquanto o ônibus percorria as ruas, já tínhamos admirado.
O café foi servido. Uma longa mesa nos acolhia e entre risos nos deliciávamos com as geléias de frutas, iguarias fartamente produzidas na região. Os pães, doces e bolos, eram de se encher os olhos e os queijos, frutas e sucos também não ficavam para trás.
Era uma cena esfuziante, famintos, nos fartamos à vontade. Conversávamos e ríamos extrovertidamente. Relembrávamos de fatos acontecidos ao longo do curso. Triste apenas era pensar que dentro em breve cada um de nós seguiria um rumo diferente, cada um por si em busca do trabalho, embora planejássemos nos reencontrar uma vez por ano para relembrarmos e comemorarmos a conquistada união. Sempre fomos um grupo muito unido. A amizade sempre falou mais alto entre nos e era justamente esse entrosamento que nos destacava de outros grupos e fazia com que tudo que planejássemos se tornasse um sucesso.
Terminado o café, ainda permanecêramos ali sentados. Um dos garçons comunicou que o almoço seria servido a partir das 12h. O grupo começou a se dispersar. Enquanto uns atravessavam a rua no intuito de ganhar a praça em frente, outros ainda fotografavam algumas árvores no jardim do hotel.
Atravessamos ruas. Observamos construções antigas com arquitetura ricamente decorada. Cortamos praças e jardins. Tudo era maravilhoso. Nas árvores frondosas nos centros das praças, pássaros brincavam e entoavam sinfonias. O dia estava claro, um sol nada tímido se exibia exuberante no céu azul. Entre monumentos vários, bem ao centro de um jardim, estava o menino.
A estátua mostrava a figura de um jovem, quase criança. Um menino com não mais que 13 ou 14 anos - calculei. Os cabelos lisos esculpidos no bronze reluziam. Por um instante, fiquei estática. Minha pele se arrepiou ao olhar para ele. Minha imaginação ganhou espaço e me perguntei quem teria sido esse garoto. Quem seria essa criança monumentada.
A inscrição abaixo dos pés dizia: “Aldo – O herói menino”. Em seus olhos de bronze eu tentava identificar a cor que teria tido seu olhar de moleque sapeca. Fiquei tão profundamente absorta que não me dei por conta quando meus amigos se afastaram interessados em fotografar uma fonte um pouco adiante. Também não me dei por conta da aproximação de um certo homem.
_ Morreu - falou ele com voz séria, sem olhar em minha direção - tentando salvar a quarta pessoa.
Os olhos do homem estavam fixos no menino. Era um senhor aparentando alguma idade. Tinha os cabelos bem lisos e os olhos muito claros. A pele alva mostrava sinais do tempo e efeitos do sol forte. Usava uma boina marrom e vestia-se com muita simplicidade. Tinha lábios muito finos e sua aparência era magra e sofrida.
_ O senhor sabe quem era ele? - Perguntei ansiosa me virando em sua direção.
_ Retirou três dos amigos da água – disse – quando estava levando o quarto rapaz para fora da represa, uma menina que estava se afogando agarrou-se nele. Morreram os dois.
_ E como foi que aconteceu? - Insisti – Eles estavam brincando na água?
_ Estavam indo para a escola – disse ele – eram alunos da zona rural. Todos os dias eram transportados por um ônibus escolar.
O homem falava, mas não me olhava. Seus olhos não saiam da imagem da criança ali naquela estátua. Os pássaros cantavam e por entre os galhos das árvores, os raios de sol atingiam o solo e refletiam o brilho do menino.
_ Naquele dia – continuou ele - o ônibus passou atrasado, não muito tempo, uns 15 minutos, talvez um pouco menos. Ainda assim algumas crianças perderam horário.
Fez se silêncio entre nós. O homem baixou o olhar e fez um gesto como quem colhe uma lágrima antes que ela ganhe a face.
– Mas não o Aldo – falou com voz rouca.
– Quando chegaram à estradinha da barragem, o ônibus estava muito acelerado, a estrada era ruim, tinha muitos buracos, então o motorista perdeu o controle e voaram direto para dentro da represa. O condutor e algumas das crianças saíram pela janela, mas ele, Aldo...
Nesse instante a voz daquele homem foi entrecortada por lágrimas, apoiou o rosto dentre as mãos e soluçou feito menino. Meu único intuito foi tocar-lhe o braço e pedir que se acalmasse.
_ ... morreu, tentando salvar os amigos – continuou falando depois de um longo suspiro que o recompôs - ainda assim conseguiu ajudar três dos colegas. Ele sabia nadar muito bem, foi uma fatalidade – completou.
Eu fiquei ali imóvel. Sem conseguir dizer uma palavra. Meus olhos reviram a cena. Uma trágica cena onde as crianças haviam perdido prematuramente suas vidas. Olhei para o homem ali de pé ao meu lado e pela primeira vez ele voltou seus olhos em minha direção.
_ Venho aqui todos os dias – disse. É como se ao olhar a imagem e ler esta placa em homenagem a ele, pudesse ser amenizada em parte a dor de perder meu pequeno Aldo.
Interrompi – boquiaberta.
_ Seu Aldo senhor? – Perguntei – como assim seu Aldo?!
_ Era meu único filho – disse ele. Um ótimo menino, bom filho, devotado à família e aos amigos.
_ Sinto muito, senhor! – Foi a única frase que consegui balbuciar.
_ Ele gostava muito de pescar. De caminhar pelo pasto e recolher os animais à tarde. Ajudava-me com as hortaliças e com os parreirais depois da escola. Às vezes parece que eu o vejo, cavalgando pelo gramado, por entre as árvores.
Eu ouvia tudo em silêncio e com muita atenção. Estava emocionada com o que acabara de saber. Desde o primeiro momento a imagem daquele menino me instigou e tive curiosidade em saber a sua história. Apenas não imaginei que tivesse sido tão triste e ter acontecido de modo tão prematuro.
_ Nesse momento meus amigos retornaram. Já eram quase 13:00h e retornamos para o hotel. O homem permaneceu lá parado, imóvel diante do menino de bronze. Senti-me profundamente enternecida ao ver aquele pai contemplando a imagem metalizada de seu jovem filho, morto.
Vez ou outra eu voltava meu olhar pra trás e em minhas lembranças a expressão dos olhos do homem adentrava os olhos de metal da criança.
Em meus pensamentos, durante longa data, eu nitidamente via a imagem de um menino sorrindo e cavalgando seu cavalo branco. Sua face sempre ia de encontro ao vento pelo gramado verde. Em direção aos parreirais. Seus cabelos eram leves e seu olhar tão claro como na estátua, que brilhava silenciosamente conforme o sol lhe tocava.