Por um Tempo



Há oito anos se sentava ali todos os dias. Não procurava por respostas. Esperava. Às vezes o tempo retrocedia diante da formiga quase invisível que passava aos pés da coluna rija, amparo da rede. Outras vezes avançava diante do céu escuro e do vento, que repentinamente crescia espantando o besouro dourado, mais soldado que bicho, a marchar com solene altivez sobre as folhas aveludadamente vermelhas, da mussaenda. Outras vezes estancava como o dia. Ficava ali, vagando pelos arredores, serpenteando entre o calor e a inércia da vida.

Há oito anos guardara a mala numa gaveta qualquer, depois de desocupar um quarto inteiro de amontoadas quinquilharias. Era preciso que cada coisa ocupasse seu lugar para que não perdesse a serventia. Dividiu com cada uma o devido espaço, por merecimento e respeito à convivência de anos: algumas já tão antigas que delas já nem lembrava mais o quando. Não pelo valor, mas por reconhecimento.

Por circunstâncias, encontraram um jeito solitário, mas solidário, claro secretíssimo, de compartilhar os breves e os longos silêncios. Sabiam lá de que idioma tirar sinais e sons imprescindíveis às inevitáveis confissões. Às vezes era preciso esquecer as velhas palavras e deixar que outras linguagens estabelecessem novos significados e, assim entendendo, viviam em paz.

Há oito anos! Fora assim, sempre. De repente o tempo se aborrecia, cansava e a empurrava para algum lugar. Acordava com asas. Nunca entendeu e agora, se não entendia, não queria entender. Seguia o impulso. Sempre fora assim. Belo dia a crisálida se abria e a borboleta vinha à luz em pleno voo. Sem memórias. O chão virgem lá em baixo, acima o azul intenso e, só. Então se deixava ir e mais nada. Um dia pousou ali, e pronto. Oito anos.

As primeiras noites foram de expectativa e sustos. Os dias, reveladores. Os ruídos, nunca experimentados, aos poucos se confessavam e a vida se assoalhava em miúdas aparições desconhecidas, diante de seus olhos e dentro do peito onde batia, tantas vezes mais apressado, o coração quase infantil.

Quase não conseguia acreditar que tinha para si um quintal inteiro. Um quintal, inteiro, ao redor da casa tosca, abandonada por longo tempo. E ali naquele quintal, o dia claro desmanchando-se em novas formas de vida que adivinhava, possuída completamente, por uma sede rebelde, obstinada, selvagem, até, por tudo o que houvesse sob, dentro, entre e acima de luzes e cores. Sentia-se espicaçada por uma urgência incompreensível de flores e mel. Uma abelha à beira do éden prenunciado.

Oito anos. Naquela morna tarde, uma folha desprendeu-se do coqueiro. Assim, ao estalar de dedos. Do nada. Aparentemente sem motivo. No primeiro momento era só uma velha e morta folha, que caíra. Mas, de mais olhar, sentiu-se terrivelmente atraída por aquele corpo estirado sobre a grama verde.

Aquela folha fora beijada pelo sol, banhada pela chuva e acariciada pelo vento. Mas, ainda assim, nem a água, nem o calor, nem o frescor foram capazes de mantê-la lá em cima, presa ao tronco que lhe servia a seiva. Naquele exato instante, a folha caíra. Nem mais cedo, nem mais tarde. A diferença ficava por conta da cor. O verde esmaecera. E o amarelo pálido secou fechando-se no marrom escuro. Estaria morta?

Sentada, ali, entendeu: era aquele, o momento. O instante único, intransferível, improrrogável. O momento espontâneo, de ninguém, que se abre num repente, sem artifícios, sem rosto, sem nome. Não. Aquela folha não era morta. Apenas, cumprira-se enquanto folha, até seu último segundo de poder estar folha. Embora seca, era folha, ainda que decomposta, seria folha, para sempre. Como aquele seu dia e aquele seu voo. Como ela.

De coração esmaecido, laranja, talvez, riu um primeiro riso seu, legítimo, voluntário, cheio de um pulsar tão úmido, que acabou sobrando alguma água para os olhos serenos, mas um tanto tristonhos. Deixou viajar aquele olhar por cada grão, pelos pequeníssimos labirintos, pelos mais estreitos canais que se enredavam, tecendo a natureza sobre dulcíssimo leito. A vida era inimaginável! E tudo havia ali, a seu dispor. Não sabia como, mas sabia que.

Rompeu-se mais uma vez e sentia o líquido viscoso da eternidade lhe tomar o corpo. Já não importava o quanto de tempo se sentava ali, todos os dias.

Os verdes vertiam agora, em todas as estações, em nuanças múltiplas. Os azuis apontavam dourados e à noite, em marinhos cicios, vibravam ramas e raízes, asas e vozes. Mas, outros quintais ali, também pulsavam, ainda sementes. Ela já não esperava: vivia. Definitivamente.


Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 12/03/2010
Código do texto: T2135359
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