O ÍNDIO
Esta foi mais uma viagem do Projeto Rondon há 30 anos. Mato Grosso era ainda um só Estado e Goiás não havia perdido território para Tocantins.
A viagem começou por ônibus até Brasília onde foram dadas as orientações gerais, dois dias depois o pessoal rumou para seu local de trabalho, uns foram para Mato Grosso e outros ficaram em Goiás. O ônibus foi o meio de transporte para algumas localidades enquanto que para outras foram usados caminhões.
Minha equipe foi destinada a São Miguel do Araguaia passando antes por Goiânia, Uruaçu e depois Porangatu. São Miguel do Araguaia é o ponto de acesso à Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo. O trajeto até Goiânia foi feito por ônibus e depois por caminhão.
De Uruaçu tenho pouquíssima lembrança, a parada foi rápida para desembarque de parte da equipe que atuaria por lá. Eu me lembro apenas da estrada longa e poeirenta, de uma poeira vermelha que tingiu minha camiseta branca do uniforme.
O trajeto até Porangatu foi divertido não apenas por conta do aspecto dos estudantes empoeirados e tintos da poeira vermelha, mas também porque um dos colegas se transformou em palhaço da viagem contando piadas e fazendo imitações.
Em Porangatu todos clamavam por um bom banho por causa do calor e da poeira colada até os ossos. Tomei um gostoso banho frio num chuveiro montado numa lata como reservatório, uma ducha acoplada e um cordão para abrir a saída da água. Este era o modelito de quarto de banho em uso no lugar e instalado do lado de fora da casa e anexo ao compartimento da privada, que era, na verdade, um buraco cavado no chão sob uma armação de madeira funcionando como assento.
Após o refrescante banho, vesti um short branco e uma camisa nova do uniforme e quis conhecer o lugar. Obtive um cavalo para montar e sai embestada pela rua para pasmo de colegas e alguns curiosos aglomerados na frente da casa onde a equipe se instalou.
Ao retornar levei uma reprimenda do chefe da equipe por estar usando um short que era um motivo de escândalo na cidade, posto não ser usual entre as moças do lugar esse tipo de roupa. Muito a contragosto, troquei o short que eu mesma havia costurado por uma calça de brim, para desgosto dos rapazolas que bem curtiram minhas pernas brancas.
Dia seguinte rumamos para São Miguel.
A equipe foi instalada numa espécie de pensão, as moças ocupando um quarto e os rapazes outro. As refeições eram feitas na cozinha da casa funcionando também como um refeitório. Não havia luz elétrica. O banho era frio. Nas noites quentes e estreladas, as pessoas se reuniam em torno da equipe para ouvir preleções ou contar seus ‘causos’.
A comida era muito simples preparada com frango, feijão e arroz e um pirão de farinha. Havia pouca verdura e nenhuma fruta. Com a atuação da equipe os moradores foram se tornando menos desconfiados e começaram a levar presentes como peixes, porco e frutas do lugar. Eu adorei um prato de rãs, já limpas, que fritei e ofereci aos colegas mentindo serem pombos. Uma das meninas, quando soube ter comido rã vomitou até durante a madrugada.
Foi prometida uma viagem até a Ilha do Bananal que ficou só na promessa. Disseram que com a chuva a passagem para lá ficara interrompida, mas alguns contavam outras histórias tais como a de que os índios Carajás, habitantes da ilha, estavam descontentes com o Governo Federal por causa da criação do Parque Nacional do Araguaia e a redução do território indígena, ou a história de que os índios Xavantes estavam em guerra com os índios Carajás.
Todavia foram feitos muitos outros passeios pela belíssima região do Araguaia.
Tive oportunidade de conhecer um índio de carne e osso, ou melhor, mais osso do que carne, tal o estado de miséria em que vivia com sua família indígena na periferia de São Miguel que foi visitada pela equipe do Projeto.
O homem tinha dois círculos tatuados nas faces feitos na puberdade, em resultado da aplicação do ‘omarura’, mistura da tinta do jenipapo com a fuligem do carvão aplicada sobre a face sangrada pelo dente do peixe-cachorra. Estava tuberculoso.
Na choça em que vivia a família havia outro homem deitado sobre palhas no chão e com muita febre. A mulher ralava espigas de milho verde para preparar uma refeição. As crianças pequenas escondiam-se atrás da mulher. O índio tatuado ofereceu colares em troca de dinheiro. Para mim ele ofereceu um lindo colar de sementes dizendo ser um presente que eu não precisava pagar. Tentei esconder minhas lágrimas e abracei o velho índio.
Agora passados trinta anos, eu viajo através do Google para esses lugares nos quais estive como participante do Projeto Rondon.
Como tudo mudou!