Ele tomou o álbum de retratos nas mãos assaltado por um espasmo que lhe custou arrepios por todo o corpo. Passou os dedos pelas bordas douradas que ornavam a capa grossa e dura, com hesitação. Por instantes teve a sensação de que poderia transpor aquele vermelho envelhecido e arrancar dali um punhado de veias e sangue.
As sombras das árvores costumavam enredar mistérios e fantasmas pela noite. Ele, menino, vigiava o escuro de olhos fechados, coração aos pulos e ouvidos atentos, até que o brilho do dia invadisse as frestas da janela e escorresse pelas paredes altas da casa. Vez em quando, ainda noite, alongava o olhar, de um olho só, até a porta do quarto procurando distinguir alguma ranhura, um indício, pequeno que fosse, de que ela continuava ali, no mesmo lugar, apesar do negrume que dissolvia todas as formas se arrastando para o sem fim. Os sons de pios e o grasnar dos patos improvisavam uma manhã movimentada e colorida. Ouvia a avó lá fora a debulhar o milho e chamar as galinhas. Um sono preguiçoso ameaçava se abrigar sob os lençóis ocupando o lugar do medo, mas o cheiro do café vinha borboleta, no colo da brisa ligeira, flanando pelo quarto inteiro. Mais forte que a moleza era a visão da manteiga derretida no pão quentinho. As horas eram compridas e nem se sentia. A boca roxa de jamelão, ora azeda ora doce de tamarindo e jabuticaba, a dor nas pernas de tanto cavalo, tudo cabia num dia só e ainda sobrava tempo para ficar de mãos e pés enrugados pela água gelada do rio. A casa ficava maior e mais cheia com a luz dos lampiões. As sombras subiam e desciam, iam e vinham pelas paredes, pelo teto, caminhando por todos os lados. O flamboaiã estirava as imensas raízes à espera da lua cheia que migrava pro céu azul-marinho depois do pôr-do-sol. Era a hora da brincadeira.
Passou os dedos pela fotografia amarela e sentiu a distância mover-se no tempo. Um cupim tivera a ousadia de aventurar-se por um caminho através do paletó de linho branco do avô. Talvez o mesmo que desapareceu com o pé da cadeira onde se sentava sua avó. A textura tênue do passado podia ser rasgada ao mais leve toque. Foi só um pulo. A vida era aquilo ali, um abreviado segundo entre um olhar e outro.
Agora, era um homem, dentro do corpo de um homem. De noites de homem, de feitos de homem. Agora, também o passado era o de um homem: casa, mulheres, filhos, divórcio.
O crepúsculo banhava os pastos lá fora. Procurou por alguma coisa, um obstáculo, que o impedisse de ver além do mais imediato. O cotidiano disfarçava os vãos e a memória de qualquer homem. Mas, não havia ali nenhum empecilho, nada que o impedisse de abstrair-se da dura e impassível masculinidade. Então, chorou. Chorou de olhos doces, de olhos límpidos, de olhos inocentes. Chorou o choro de um homem exausto de seu próprio corpo.
Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 12/03/2010
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