Trigêmeos
É numa manhã de um domingo ensolarado que ela é levada as pressas ao hospital, durante toda a gestação foi alertada que era um caso delicado e arriscado, e mesmo assim ela não perdeu as esperanças de que veria seus filhos nascerem. Do lado de fora, tendo escolhido não assistir o parto, o pai ansioso aguarda por notícias. Eis então que um dos médicos responsáveis pelos seus filhos gêmeos aparece calmamente na sala de espera.
- E então doutor? Como eles estão? E minha esposa?
As palavras quando ditas numa entonação e ordem adequada podem tanto acalmar quanto esquartejar o espírito humano, o médico tinha a intenção de não desesperar o pobre pai, mas numa situação igual a esta não importa a ordem, nunca, nenhuma palavra irá acariciar alguém abençoado com tamanha desgraça.
-Seus filhos estão ótimos! São como os exames já nos declaravam, são saudáveis, mas o senhor precisará ser forte, pois infelizmente sua esposa não resistiu.
A última vontade da mãe não foi atendida, ela nem pôde ver os filhos, e mesmo sem ainda entender as coisas eles choram pela perda. A sogra do pobre viúvo, foi a única pessoa a quem ele podia sinceramente abraçar e derramar suas lágrimas, ela por sua vez, decidiu ajudá-lo a cuidar das duas crianças, já que ele necessitava da ajuda de alguém pra ficar com as crianças enquanto ele trabalhava.
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Cincos árduos anos se passaram desde a perda da mãe, Otto e Otis crescem e brincam sem problemas algum, assim como qualquer outra criança, desde cedo foram acostumados a ficar na casa de vizinhos e em creches, já que não era sempre que a avó podia cuidar dos dois. Sempre quando separados choravam, e quase nunca eram mantidos um longe do outro. Tinham olhos de um verde bem claro e cabelos lisos negros, assim como os da falecida mãe. A pele era bem clara e os dois eram daqueles gêmeos idênticos, às vezes nem mesmo o pai sabia quem era quem.
O viúvo percebia que aos poucos, cada vez mais ele se distanciava dos filhos, pois carregava a responsabilidade de sustentar a casa sozinho, e mal sobrava tempo pra passar com suas crianças. Ele se sentia culpado por não se lembrar das coisas que seu filhos gostavam, não sabia como agradá-las e conseqüentemente se afastava mais, pra tristeza dos três. Pra tentar amenizar qualquer situação em que necessitassem de carinho ou algo para se distrair ele compra um cachorro, ainda filhote com o qual presenteia os dois. É claro que eles gostaram, e o batizaram de “Dom”. Quando ficavam na creche, raramente falavam com as outras crianças, e foi depois de alguns meses que ganharam seu cachorro que também ganharam um novo amigo, porém esse, era amigo só deles, pois só os dois viam, era um amigo imaginário que tinha o nome de “Drugi” ao menos era isso que os dois sempre diziam quando havia alguma travessura feita, era sempre culpa dele, mesmo quando as bagunças pareciam terem sido feitas pelos dois com ajuda de outra criança, diziam sempre que não tinham sido eles, tinha sido “Drugi”. A presença desse terceiro foi sempre tolerada pelo pai, ele achava extremamente normal, eles tentarem preencher a ausência do pai ou até a falta de uma mãe, e encarava um amigo imaginário como uma válvula de escape pros dois.
Ao passar dos meses as duas serenas crianças pareciam diferentes, pareciam mais “atentadas” fazendo apenas travessuras que desagradavam todos os outros onde ficavam, seja na creche ou na casa de vizinhos e aos poucos foram perdendo amigos e lugares onde eram bem aceitos, uma coisa ou outra de errado, todas as crianças algum dia já fizeram, porém, eles pareciam não se satisfazer enquanto não vissem as dolorosas lágrimas de outras crianças.
Quando começaram a estudar na primeira série o pai era freqüentemente chamado na escola, para conversar sobre o comportamento inadequado dos filhos, eles perguntavam se havia algum problema em casa, com a mãe, e ele triste (mesmo ao passar dos anos ele se recusava a se conformar que logo os dois, teriam sido a causa da morte de sua amada) respondia que eles não tinham mãe e que ela havia morrido no parto. Várias maneiras de acalmar os dois foram sugeridas, e até em “remédios” foram falados, na intenção de resolver o problema do amigo imaginário já que os dois sempre botavam a culpa de tudo nele, mas o pai recusou aceitar a droga, ele dizia que isso mataria seus filhos aos poucos, e que ele arranjaria um método próprio pra torná-los iguais as demais crianças.
Aos poucos, o pai foi castigando os dois, impedindo que os dois saíssem de casa para brincar com os amigos e os privava de alguns brinquedos e o que lhes restava era apenas o cãozinho, amarelinho e de rabo felpudo, um vira-lata muito esperto.
Eis que um dia o pai chega do serviço e encontra os dois meninos chorando, e já dizendo desesperados que não tinham sido eles, e que não os culpasse. Sem entender nada, até porque eles mal conseguiam falar, tantos eram seus soluços em meio às lágrimas. O pai vasculha a sala, a cozinha e o próprio quarto e nada, é quando ele vai até o quarto dos dois que ele se espanta, não no quarto, mas através da janela ele podia ver, no varal, pendurado pela coleira o pobre Dom, o mesmo Dom que ele havia presenteado seus filhos, estava enforcado e morto em meio às pequenas peças coloridas de roupas repetidas, de início ele teve pena, mas logo essa foi substituída pela cegueira, tapas marcaram os corpos dos dois que sabiam de quem tinha sido a verdadeira culpa. E foi a partir dessa época que eles perderam algo muito além de um simples filhote de cachorro.
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Meses e anos se passaram e os dois pareciam ter piorado em relação ao comportamento doentio e longe de infantil que eles ainda mantinham, o que piorou também foram as reações que seu pai se habituou, constantemente eram as surras, e palavras como “filho” e “família” foram substituídas por “culpados” e “desgraça”. A família era uma instituição falida sob o teto daquela casa, órfãos de mãe, tinham raiva do pai e nem se lembravam de outros parentes, as outras crianças serviriam apenas de bonecos com os quais eram feitas mal-criações e onde viam a figura do pai, mais fraco, onde tinham força o suficiente para vingar-se. E com atitudes iguais a esta o pai era no-vamente chamado na escola, onde sentia vergonha de estar lá por motivos tão banais.
Certa vez foi recomendado ao pai que os levassem a um profissional específico, a um psicólogo ou algo parecido, pois eles ainda tinham em mente o amigo imaginário de outrora, Drugi ainda andava com eles e assim como os dois não se separavam eles diziam não ele não se separaria também, achando absurdo que somente os dois o percebiam. Pros dois era impossível que ninguém mais o visse, ele estava lá, no recreio, durante as aulas em casa e em qualquer lugar que fosse e o tratavam como se fosse real, pois pra eles, ele era realmente um terceiro irmão.
Aniversário após aniversário eles comemoravam juntos somente os dois, pois depois de um determinado tempo o pai não queria comemorar o dia em que perdera sua tão amada esposa, já não existia mais um pensamento forçado que havia a compensação de ser abençoado em dobro com os filhos, agora ele já assumia que preferiria que ela tivesse sobrevivido, o que amargava mais ainda os corações dos filhos. Raramente o pai os via, agora era do trabalho pro bar e do bar pra casa dos crápulas, pois assim era chamada aquela casa que antes tinha um jardim verde com um cachorro no quintal. Os vizinhos não os olhavam com nenhum pingo de aprovação e as atitudes de todos eram repudiadas, o pai bêbado e agora ausente, e os filhos delinqüentes e agora criminosos.
Quinze anos foram o suficiente pra que eles se iniciassem em atividades piores do que travessuras de criança, envolvidos com drogas, roubo e outros crimes agora eles se sentiam mais livres do que nunca, e ainda formavam um trio. Com dezessete foram pegos pela polícia pela primeira vez, pro pai até que foi tarde, até que demorou pra serem pegos e nem o menor sentimento de angústia por ter os filhos presos ele sentiu, por falta de provas para os acusarem de tráfico, foram soltos, tendo passado apenas umanoite na cadeia, e presos estavam somente os dois um numa cela e outro em outra longe, e em muitos anos essa foi a primeira vez que ninguém viu Drugi.
Houve uma grande discussão ao chegarem em casa, pelo lado do pai que sentia um misto de raiva e vergonha por eles estarem num lugar daqueles e daquela maneira, pelo lado deles sentiam um repúdio colérico por não receberem ao menos uma visita, o que era inaceitável para um pai, eles diziam “pai”, numa ironia sem tamanho, o que acabava por deixar o velho homem com mais raiva, a discussão durou tempo, e objetos como pratos, copos e outros foram arremessados e quebrados enquanto discutiam, um vizinho berra que iria chamar a polícia e este por sua vez ouve três grandes “Tome conta de SUA família”. O pai foi a fundo nas lembranças dizendo que deveria ter os abandonado a um orfanato quando percebeu logo quando ainda criança que eles não eram normais, que eles não tinham compaixão nem ao menos por um pobre animal, um filhote que serviu de brinquedo na forca dos dois. Estes em resposta dizem que não havia sido eles e que mais uma vez a culpa era de Drugi. Cansado de tanta baboseira e infantilidade, assim por ele chamado, pois acreditava que alguém não capaz de assumir tais ações só poderiam ser chamados de crianças e irresponsáveis, ele avança em Otis que por sua vez nada faz a não fechar os olhos e esperar que tudo acabe depressa. Otto não pensa da mesma maneira e vai pra cima do pai pra separá-lo de seu irmão.
- Pela última vez, ele não existe!!! A culpa é de vocês e de mais ninguém, não podem colocar a culpa em algo inexistente.
Pela primeira vez depois de muito tempo, Otis chora e sente a raiva que o pai tem pelos dois, raiva de terem “matado” a mãe, ele chora pois sabe de quem é a verdadeira culpa, Otto porém, sente as veias saltarem a testa, tamanha é sua raiva, sua fronte ferve, mas não fisicamente, vozes, gritos de dor e angústia podem ser percebidos no fumegante olhar a penetrar nos olhos de seu pai, não demora muito pra que Otis, com os olhos também vermelhos, mas estes por pena, fixe também nos olhos do pai, talvez nunca antes tivessem feito isso, os dois olhos do velho, vendo o olhar e sentindo uma mínima fração de uma infância perdida em suas duas crias, frente a frente. O triângulo estava formado na sala e o silêncio tornou-se senhor do lugar por instantes. Eles sentem o silêncio e se arrependem, os três, por se encontrarem em tão desgraçada situação. Como toda tormenta é precedida por um silêncio mórbido, esta decide começar, o silêncio é quebrado por um suspiro, um quarto suspiro que surpreende o pai, no chão entre os dois filhos, o velho vê uma poça vermelha se formar, sujando o assoalho de madeira, a poça aumenta e agora ele pode ver os pingos, vem de cima, porém não há nada no teto, eis que ele percebe algo de uma forma retangular se formar, algo metálico, sujo de sangue ainda pingando, o retângulo se solidifica e ganha um cabo de madeira velha, que se assemelha a um galho grosso e sujo, agora pode se ver claramente um machado flutuando entre os dois. Tamanho é o desespero do pai que ele sente cada pulsar em seu peito, e sente o sangue correr freneticamente por suas veias como se tivesse acabado de correr por quilômetros sem parar. E a cada pulsar em seu peito ele vê, com seus olhos descrentes surgir um terceiro homem, idêntico aos filhos, num macacão escuro, sem camiseta e careca, o queixo deste quase se encosta no peito, mas mesmo com sua cabeça abaixada a tal ponto ainda consegue fixar os olhos nos do velho.
Agora completamente formado e aparente “Drugi” caminha em direção ao pai dos gêmeos, e enquanto cada passo diminui a distância entre os dois o velho percebe que esse tempo todo ele estava enganado e que a distância entre os dois nunca foi grande, ele sempre esteve ali, bem ali onde seus filhos diziam estar, mas como? Como poderia? Completamente fora de si, tentando encontrar alguma resposta de como aquilo poderia fazer algum sentido ele nem percebe que a menos de um palmo está aquele que nunca acreditou existir, sua alma é retirada do mar de dúvidas onde se encontrava subitamente no primeiro golpe, bem em cheio no meio do peito, a força não foi suficiente para quebrar os ossos e atingir o coração, porém, teve força necessária para arrancar-lhe o fôlego e abrir uma fenda enorme que agora tingia suas vestes da cor dos olhos dos filhos, enfurecidos e melancólicos, entretanto, obviamente num tom mais vivo, muito mais vivo mas que agora morria aos poucos. Eis então que desce em descomunal velocidade o segundo, o terceiro, quarto e o quinto golpe, e a cada laceração adquirida em seu corpo cansado, uma lembrança o assombrava, mostrando que ele sempre esteve errado, e que a culpa nunca foi realmente das crianças, isso explica e responde o velho, porém mesmo assim ele morre em meio uma poça de dúvidas tão grande quanto a que mancha o solo de sua casa.
Agora estirado no chão, descansa o velho, nem tão velho assim, mas era este o jargão utilizado por aqueles que às vezes se recusavam de o chamar de pai. Incrivelmente eles sentem um certo alívio, como se tivessem tirado uma gravata apertada que estava lá o dia todo, sentiam-se leves e ainda havia uma partícula de tristeza, mostrando que ainda tinham um lado humano. Ainda de pé e de frente para o cadáver, eles são surpreendidos, a polícia, o maldito vizinho chamou mesmo a polícia, que agora os algemava e os carregavam para fora, para o carro, desta vez, aparentemente eles eram os culpados e não havia ninguém que provasse o contrário, eles inutilmente diziam quem era o culpado e novamente ninguém lhes dava ouvidos, novamente ninguém o via. Os policiais por sua vez disseram que estavam sob o efeito de psicoativos, alucinógenos e que eles tinham feito aquilo e que pagariam caro por isso.
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A contagem dos anos perdidos em meio as salas acolchoadas e as sessões de terapia já era quase igual a idade que tinham quando entraram no asilo dos exilados, assim chamado por que ficava meio distanciado do centro da cidade, onde ficava o pólo da civilização cinza e fosca. Foram indicados ao asilo, pois não poderiam ser culpados diretamente pelo assassinato do pai, uma vez que não foram encontradas armas, digitais ou qualquer outro segredo escondido que dissesse que haviam sido os dois o atores de tal feitio, porém como testemunha o mesmo vizinho que chamou a polícia disse ter ouvido várias vezes o pai gritar e mandar o “filho” parar e não tendo encontrado o verdadeiro assassino descrito pelos gêmeos, foram condenados. De início ficaram algumas semanas na cadeia, até que após muitos encontros com a psicóloga foi recomendado que não devessem ficar numa prisão comum, já que diziam e acreditavam existir tal figura ilusória fruto do inconsciente coletivo e esquizofrênico. Raramente eles se encontravam, e quando faziam era sempre reuniões em ímpares, nunca dois estavam juntos, a palavra só, significava mesmo só, e ao se encontrarem era sempre em três. Era como um triângulo, se você tivesse uma linha reta não seria nada, seria algo disforme e sem nexo, e caso juntasse duas ainda faltaria uma pra completar. Um dos raros momentos em que se encontravam era com a psicóloga, Otto e Otis entravam na sala e a doutora sempre perguntava por que ela não via o terceiro, alegando mais uma vez a não existência real de seu irmão, ela os encurralava e tentava provar o contrário do que eles acreditavam, em resposta eles diziam que ela tinha sorte, pois ele não queria mais arranjar encrenca para os dois e que os aguardava no lado de fora da sala, pois era melhor que ficasse lá e não “apresentasse” o Doutor Machado a ela. Muitas e muitas sessões foram em vão, e drogas pesadas, as mesmas drogas que certa vez foram recomendadas ao pai, hoje eram aplicadas aos dois varias vezes ao dia, comprimidos e injeções lhes faziam companhia no quarto branco de almofadas nas paredes. O comportamento dos dois não era de início tão agressivo, porém o simples fato de todos não enxergarem aquilo que você e seu irmão dizem com tanta clareza, já é o suficiente para se enraivecer e lutar contra as agulhas. Corroendo dentro de cada um dos dois haviam a melancolia, que os faziam de desgraçados e alheios ao resto da humanidade que agora era considerada como ratos de paletós que pagavam caro ao governo pra que os dois tivessem tanta segurança e diversão com seu banquete de “remédios”. Também sentiam um amargo ódio dos ratos por não acordarem pra sair da corrida, por terem sempre pressa pro trabalho, deixando de lado a família e coisas divertidas, preocupando-se com promoções de emprego e liquidações de calcinhas. Ninguém mais importava a eles, e longe de humanos eles se consideravam, em seus pensamentos eram como deuses, e se davam o direito de escolher quem merecia terminar como o pai.
Certa vez Otis acordou com chutes e socos, e assustado com tal tratamento pôs-se de pé rapidamente, ele estava solto, ainda em sua sala “especial” porém sem a “camisa de mangas compridas” por cima de seu uniforme de “mentalmente perturbado”. Ele não via ninguém, mas desconfiava quem tinha o acordado, calmamente ele vai até a porta que meio entreaberta deixa a artificial luz invadir o quarto e desenhar uma linha quase ofuscante no chão branco. Com espaço para apenas um olho na fresta, ele espia e consegue ver que quase no fim daquele corredor Otto sair de uma porta, obviamente acompanhado por Drugi, que faz sinal pra ele sair depressa. Obedecendo Drugi, ele abre vagarosamente a porta e sai ainda confuso, sem saber se estava mesmo livre de camisa de força ou guardas, ainda dentro do asilo. Drugi xinga os dois e os culpa por terem dado muita importância para as doses de egoísmo injetável esquecendo assim de sua existência. Enquanto os três correm pelo corredor, ele explica que conseguiu as chaves depois de ter pedido ao guarda. Nessa hora os dois sentem um pingo de esperança em pensar que mais alguém viu Drugi, porém neste mesmo momento, Drugi diz que esqueceu algo com o mesmo guarda que lhe deu as chaves e eles fazem uma curva pra buscar o que foi esquecido, ao passarem por uma sala parecida com um escritório eles encontram o que havia sido deixado para trás, o machado, que estava cuidadosamente cravado a três dedos abaixo da testa do homem, bem no meio dos dois olhos, as esperanças de que alguém pudesse enfim compreender o amigo dos dois se mistura ao sangue do guarda que se espalha pelo chão e encontra um pequeno ralo que o traga ferozmente. Eles vasculham as chaves e encontram a saída pra mais dois corredores, quando se co-meçam a se perguntar onde estão os outros guardas, mais cadáveres parecem surgir descansando em bancos e escondidos atrás de portas, até que as perguntas param de ser feitas ao encontrar a última porta, aquela que serviria de portal para a liberdade, a fenda que lhes proporcionaria a ida aos campos de centeio, a porta de entrada, mas que era vista por eles como a porta de saída. Sem pensar Otto se desespera e corre feito louco para atravessar o grande salão e sair logo desse inferno de exílio, Otis por sua vez grita em reação pedindo que o irmão o espere, chamando assim a atenção de alguns funcionários do local, enfermeiros gritam e chamam os guardas pelo rádio, mas já é tarde, Otto passa pela porta e já está do lado de fora e enquanto ele se delicia com o ar da falsa liberdade fora do prédio mas ainda dentro do pátio, Otis o empurra e diz pra correrem senão serão pegos de novo. Drugi aponta uma mulher que parece acabar de estacionar o carro, provavelmente de ter vindo visitar alguém, os três correm em direção o carro e o alcançam com a mulher ainda dentro dele, um a arrasta pra fora do veículo, outro a empurra pro banco de trás e o terceiro bate com a parte que não é a lâmina do machado na cabeça da pobre mulher que desmaia e permanece inerte atrás com Drugi e sua arma. Otto dirige e Otis está no banco do carona, sem nem parar pra pensar num destino ele acelera ainda já com o cinto em direção as grades do portão, vigilantes do alto de uma torre atiram, e um acerta o pára-brisa, varando o porta-luvas e acertando a perna de Otis que agora sangra em meio aos berros, cinqüenta metros de pátio nunca foram tão extensos quanto o que atravessavam agora, acelerando mais ainda Otto derruba o portão com uma batida que faz o carro dar uma pequena parada, mas não suficiente para que os pegassem, arrancando fortemente, eles agora berram num imaginário brinde a liberdade ao som de pneus que cantam e tiros que parecem desviar de seu novo corcel em fuga.
Eles ouvem a sirene indicando que há internos em fuga, porém julgam ser tarde para alguém os alcançar e continuam sem preocupações avançando para a parte da cidade que não dorme, o centro. É possível enxergar ao longe os prédios que parecem alcan-çar o objetivo dos construtores da antiga torre de Babel, são tão altos que alguns tem suas pontas mescladas ao cinza da atmosfera local de poluição inerte num céu que há muito já foi azul. Entre uma música e outra de uma rádio qualquer se inicia Free bird e eles encaram como um sinal de que conseguiram com sucesso o objetivo não planejado por eles, olhando para trás Otis sorri ao ver Drugi acompanhando a música movendo os lábios sem deixar que saísse som, ele sente-se tão aliviado com tal cena, ou pela adrenalina que corre em seu corpo que quase já não sente o tiro pouco abaixo do joelho que levara minutos antes, ainda olhando para trás ele sente nojo ao se lembrar que está tão perto de um animal considerado tão sujo e imundo descansando com um ferimento na cabeça. A sensação confortável e alegre que tomava conta de seu ser dá lugar a raiva e angústia ao perceber, ainda olhando para trás que dois carros de polícia os perseguem e que estão chegando perto numa velocidade inacreditável. Virando para frente ele comunica o irmão que ludibriado pela música nem percebe os perseguidores, pisando com uma força que parecia fazer com que o pé varasse o assoalho do carro não fosse o pedal, Otto não pretende se entregar tão fácil novamente e eles avançam em direção os titãs de concreto.
Seguindo pelo asfalto, duas viaturas cortam o vento tão rápido quanto o carro com os irmãos, porém isso ainda não é o suficiente para detê-los, a dona do carro ainda permanece desacordada ao lado de Drugi. A chama do desejo de um dia andar pelas ruas de novo sem qualquer tipo de preocupação ainda queimava viva dentro dos dois, porém, já não tinha a mesma esperança para fortalecê-la, e eles agora miravam penetrar na cidade com o fim de tentar despistar os perseguidores sem se preocupar em ter de fazer curvas em um espaço tão pequeno quanto as ruas entupidas. Sem placas de boas vindas ou coroa de louro pela chegada eles adentram no centro poucos segundos antes dos policiais, o ar está abafado pois há pouco choveu o suficiente para manter o ar abafado e somente, uma chuva fina e escassa mas que por insistência salpicava o ambiente com algo vivo dando um aspecto artificial de natureza ao local cor de chumbo. Impaciente dentro do carro, Otto tenta sem muito sucesso despistar a polícia entre uma curva fechada e outra, sem qualquer cuidado pelos transeuntes eles sobem nas calçadas, cortam por entre carros e caminhões e atravessam no vermelho, e o vermelho que os indicava que deviam parar era o mesmo vermelho que os lembrava por que tiveram sua liberdade privada, o vermelho que se esvaia do peito de seu falecido pai. Otis grita, a cada curva e aponta alguns caminhos para Otto que irritado respondia seu irmão com mais gritos e xingamentos, dando início a primeira briga da vida dos dois entre si, sem dar muita atenção para a discussão eles decidem que existe algo mais importante para fazer agora, fugir. Entre a sirene de polícia e o barulho da metrópole, um berro se sobressai, um berro insano e desesperador de Otis, porém não era pelo ferimento que carregava em sua perna, nunca em toda a sua vida passou se quer a sombra de um pensamento que lhe provasse ser louco, porém com tal visão ele sente um pequeno desconforto por achar que todos lhe diziam a verdade. Perseguindo o carro, entre o deles e os da polícia estava uma criatura alada que os seguiam com a voracidade de um míssil, ele avisa os outros dois no carro que agora desacreditam tudo já vivido e caem num corrosivo desespero demente. Agora além de fugir da polícia, eles tem que despistar algo desconhecido, a criatura voa como um anjo, mas os condena com um olhar tão diabólico quanto suas asas enrugadas de morcego. Por um momento eles desviam os olhares da criatura e rumam a frente, procurando inutilmente um caminho, Drugi grita que a criatura sumiu, pelo retrovisor Otto não o vê, pondo a cabeça pra fora do carro Otis tenta o procurar, e Drugi pergunta sem parar onde foi para o maldito ser. Desistindo de procurá-lo, Otis volta a cabeça dentro do carro e permanece inquieto. Em meio aquele cenário de cores mortas, o motorista percebe algo voando em direção a eles, vindo do alto bem a frente, agora ele tem a impressão de ver o Superman com sua capa escarlate tremendo ao vento, bem mais perto ele percebe que não é bem o Superman, muito menos o seu herói, a criatura alada que descia de asas fechadas, agora as abre pairando pouco a frente do carro ainda em movimento, a capa vermelha, não passava de uma bandeira de um cigarro forte, que agora estendida a sua frente já o permitia ter noção de onde iria parar, assim como faz um toureiro, o homem do céus estende e joga por cima do pára-brisa. Covarde, imundo e bastardo, são os nomes do alado, por batismo dos três passageiros cegos, tentando manter o volante reto e contando com a sorte, Otto não desiste, ele não para de acelerar e muito menos pensa em freio. Eles teriam sido jogados pra fora do carro não fossem pelos seus cintos de segurança, tudo aquilo que já foi rejeitado e jogado ao lixo, se encontra agora sobre o capô amassado do destruído carro vermelho, tamanha foi a força de impacto contra o caminhão de lixo que Drugi desmaiou, e mesmo com cinto e abençoados pelos airbags os passageiros da frente, seus irmãos o acompanharam nesse sono forçado.
Num susto Otto acorda com uma incrível dor de cabeça, de olhos semicerrados ele deseja que isso seja só uma ressaca, e que o ocorrido passado tenha sido um fruto de sua mente bêbada e sonolenta, porém ele toma consciência dos fatos quando é chamado a sair do carro por um dos policiais, que agora aponta uma arma em sua direção, olhando para o lado ele não vê o irmão, e no banco de trás estão somente as manchas de sangue da dona do carro, novamente um convite a sair do carro lhe é feito, e dessa vez ele decide sair confiando no caloroso “Saia agora” que o seu caçador diz. Do lado de fora do carro ele vê Otis que aponta com o queixo o herói do dia, eles xingam e amaldiçoam o homem que parece voar calmamente como se fosse tão leve quanto a fumaça que se dissipa no ar. Eles desejam a morte, mas não desejam voltar ao exílio. É então que o “anjo” voa ao som de aplausos e gritos de uma multidão apressada que estava a volta, sumindo por de trás dos altos edifícios, os deixando com os policiais que os algemam. A carona chega logo e ali mesmo em meio ao lixo espalhado, depois de lutarem contra enfermeiros com cotoveladas e até mordidas, eles são sedados e colocados na ambulân-cia com suas camisas de força. O carro da senhora é guinchado dali enquanto ela vai até um hospital cuidar de seus ferimentos que são leves, o lixo é logo recolhido e colocado de volta no caminhão, e as pessoas agora abrem seus guarda-chuvas, pois a fina e cons-tante chuva volta a cair parecendo se despedir dos dois irmãos que não voltarão a vê-la tão cedo.
Antes de ir para seu quarto especial e particular, Otis teve seu ferimento tratado num hospital longe de seu irmão. Preso sem ao menos saber em que quarto se encontra agora, Otto reflete sobre o ocorrido e enfim aceita estar louco, ele acredita não ter exis-tido bandeira alguma, ele acha que o que o tornou cego outrora foi o sangue derramado de seu pai, ele começa aceitar que Drugi realmente não existe, e não consegue pensar em outra coisa a não ser abraçar o irmão ferido e discutir com ele sobre a falsa lucidez que viviam. Algumas semanas se passaram e ele não encontra o irmão na hora do almoço, não o vê no pátio de exercícios na hora do banho de sol, não o vê através da pequena janela indo pra mais uma sessão com a psicóloga, e agora começa a acreditar que o irmão adquiriu uma infecção devido aos não cuidados imediatos e morreu, ele se culpa por ter falado com seu irmão pela última vez aos berros, numa única briga durante sua vida toda, sobre qual caminho tomar, uma vez que independente do escolhido ele sabia que iria parar ali de novo.
Otis não sofreu infecção alguma e está bem, porém também não sabe onde está seu irmão e começa a aceitar que ele deve ter fugido com Drugi, ele se sente abandona-do, em vista que seria difícil de arrastar pra fora do hospício um homem de muletas, ele aceita que sua vida será gasta com lembranças de uma única pessoa que realmente im-portava pra ele e no fim o deixou e às vezes lembra do homem alado com certa curiosi-dade do que aquilo realmente era, nos dias mais solitários em sua sala acolchoada ele chama pelos outros dois, porém mal sabe ele a verdade sobre seus irmãos.
Foi recomendado que os dois fossem separados e que em hipótese alguma se encontrassem ou soubessem sobre o paradeiro do outro. Todos os dias era de extremo cuidado que os dois não se vissem e que suas atividades como alimentar-se, ou praticar seus exercícios ao sol fossem intercaladas de maneira que os dois as fizessem porém nunca juntos. Porém tinha um homem que sempre os via, ele sabia a verdade sobre cada um, sabia o número de seus quartos e os horários de suas saídas, porém não sabia com quem ficar, não tinha a consciência de escolha própria, era impossível escolher entre um deles, por mais que fossem parecidos, cada um lhe agradava de uma maneira única e diferente, aos poucos ele era esquecido e ia desaparecendo da mente de Otto e Otis, então sem saber com quem ficar, por não poder escolher ser um número par, Drugi final-mente deixou de existir pelo sopro macio do esquecimento, de mentes que agora sim, perderam seus rumos.