Conto lilás e amarelo

A criatura insuportavelmente curiosa em que me transformo de vez em quando surgiu aos poucos, daquela vez: primeiro percebeu o fixo olhar da moça sobre o jasmineiro rente à calçada, em seguida ouviu - mais que viu - os olhos fechando-se com força, uma lágrima enchendo cada olho e explodindo contra a pálpebra cerrada, rompendo-a e rolando face abaixo feito carrinho de rolimã, causando um estrago tão suave e molhado que nem parecia dor de amor - porque dor de amor de verdade é seca e dura, é terra onde o que brota, morre.

(Confesso: sou aficionada por estórias de amor, e quanto mais tristes, melhor! Aproveito para chorar, visto não verter mais uma lágrima por minhas entediantes comédias românticas em que saio à francesa - ou quem eu amo sai à francesa, dando tudo na mesma, ao final. Mas eu falava de uma criatura triste e outra curiosa, sofrimentos que só sabe quem passa, e de uma estória, contada a mim numa sala de espera de médico; então, de volta ao anzol.)

O arbusto começava a florar em amarelo palidíssimo, quando se conheceram. Ele dizia ser amarela sua cor preferida, ela achava jasmins muito delicados e via nisso um sinal, entre outras afinidades: o mesmo signo do zodíaco, o gosto por blues, avós já falecidos, tios que bolinavam empregadas, um irmão dela, desempregado, o irmão dele, idem, e a timidez mútua, exasperante, maior nele que nela (ela pensava).

Cruzavam-se toda semana perto do jasmineiro, em ida e volta do trabalho (outro sinal). No começo ela mal o notou, pequeno e meio pálido como as flores; então ele a cumprimentou e o simples 'bom dia' na sexta feira iluminou o final de semana. Na segunda-feira acordou mais cedo e caprichou na maquiagem; a mãe reclamou que ela parecia uma boneca de pano, aquela linha vermelha na boca e os olhos de retrós preto de rímel. Amuada, limpou tudo e não passou nem protetor solar; saiu atrasada e o perdeu antes dos jasmins.

Mas, na volta... ah, a volta! Às favas, a timidez! Ela o cumprimentou (Oi, boa tarde!) e notou o passo diminuído. E continuaram assim até a quinta-feira, quando ele finalmente parou e se apresentou (o nome é desimportante, pois a estória não existe por causa de nomes), ela falou o dela, ele achou bonito (outro sinal) e a convidou para assistir o por do sol na pracinha perto da farmácia. Ela aceitou, mas não podia demorar muito, "Só o por do sol, mesmo..."; ele replicou não haver problema, desde que ela prometesse encontrá-lo na semana seguinte, para um barzinho e coisa e tal.

A praça era estranha, parecia mesmo feita somente para apreciação do ocaso: um descampado cheio de declives, os bancos de madeira e alvenaria sucedendo-se como degraus desconjuntados. Eles sentaram-se distantes de outros casais, no segundo banco vazio e feio; o sol foi desmaiando sem querer, só porque tinha que acordar em outro lugar, e as cores laranja, rosa, vermelho e roxo explodiam e se misturavam nos olhos dele, de um raro tom azul, olhos que ela não tinha muita coragem de fitar (mais outro sinal). Mas trocaram ideias e telefones e combinaram o encontro na sexta-feira, às dez.

E começaram.

Foram quase se conhecendo; quanto mais dele ela tinha, mais queria, até o dia em que ele disse que iria embora da Cidade, do Estado (ôpa, a carretilha soltou a linha rápido demais - não é estória de pescador, então recolho o fio invisível e reconto como me contaram).

Foi assim: a primeira vez em que se amaram pareceu um encontro de eternos desconhecidos. Ela não dormiu - não pôde, não! - somente deixou-se ficar olhando-o ressonar sem acreditar direito no que acontecera: a perfeição, o enlevo, a intuição que tivera quanto a eles... E sentiu vergonha quando ele acordou, mas um sorriso calmo a aconchegou, e começaram tudo de novo...

Daí em diante a memória ficou confusa, a não ser sobre o que aconteceu quatro dias depois, quando ela, cansada de esperar por outro encontro casual e amarelo, lhe telefonou. Mas ninguém atendeu e a ânsia foi aumentando, até o momento em que vomitou o almoço, o cheiro acre de bile suplantando a memória do aroma doce dos jasmins.

Ele reapareceu e relatou uma forte conjuntivite. E continuaram se encontrando, às vezes às sextas-feiras, às vezes ao acaso, como se bastassem os acasos. Pela manhã, "bom dia!"; à tarde, "se não chover, veremos o pôr-do-sol...”. Ela ia... Ele estendia a mão e ela ia. Um dia ela se recusou; ele a olhou surpreso e meio magoado, "tudo bem, a gente se vê depois", e fez o caminho de sempre.

No dia seguinte ela adoeceu, dor e febre virando apendicite aguda; um mês foi o tempo sem jasmins. Ele a viu de novo ("bom dia"), continuou andando; o olhar dela, esquálido e desesperado, seguiu-o por muitas esquinas, e desconhecidas.

De tarde ela o esperou e pediu um encontro para a sexta-feira. Durante quase cem horas mal comeu ou dormiu, e foi vê-lo vestida numa blusinha sem decote, nada de minissaia ou salto alto ("Adoro suas pernas!", ele dizia), nada de perfume, nem olhos de sereia, tampouco boca marcada...

Ele a recebeu entusiasmado, contou as novidades do trabalho, ofereceu uma bebida, ofereceu-se. Ela falou que doía o que sentia; ele ficou mudo. Ela pediu que se tornassem apenas amigos, ele perguntou "Como?". Ela o disse, ele prometeu que assim seria.

Recomeçaram, e eram amigos indo ver o por do sol de vez em quando...

Meses depois, num dia igual a tantos outros, quando ela o fitava e lembrava-se de tudo, pensando no que poderia ter sido (e ela bem pediu transferência do emprego, sem sucesso), ele disse que iria embora: reencontrara A Moça, irmã mais nova de um amigo de infância, e, conseguira "num golpe de sorte", mudar para a filial do trabalho próxima de onde ela morava.

Ela o felicitou e foi convidada para o 'bota fora'. Ela não ia - não ia, não! - mas foi... E despediu-se dele apropriadamente; não mais o viu e cuidou para que ele não a visse, também.

A moça que me contou essa estória aguardava o pediatra com uma nenê loirinha no colo, os olhos lilases e vivos e aprendendo o mundo...

A árvore desflorida, um determinado banco na praça, a roupa recatada que nunca mais vestiu, as memórias das quais se despe com esperança ou medo de não lembrar; os sinais, tudo, enfim, partes do rito de querer não-querer, altares onde queima a vela que exala cheiro de perda e jasmins...

Tempos depois me disseram de sua morte. Meningite. Disseram também que a criança (Yasmin) é alegre e nada tímida, bem diferente da mãe. Do pai ninguém sabe.

"Talvez a mãe...", imaginam, "mas nada é certeza nesse mundo.”

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 07/03/2010
Reeditado em 05/01/2023
Código do texto: T2125782
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