Para Além da Dor

Não haviam mais espelhos em sua casa. Em todas as janelas, cortinas. Ele não se atrevia a olhar para qualquer peça de vidro, para qualquer superfície refletora.

Pois sempre via ela.

Já não dormia mais. Passava dias acordado, consumindo todo tipo de substancia que o mantivesse acordado. Mantinha o som e a TV ligados, as luzes acesas, o celular despertando de uma em uma hora.

Pois só sonhava com ela.

Andreas agora era apenas os restos do investigador civil que fora um dia.

Brasileiro, ele gostava de responder quando perguntavam “do que” era descendente. E filho da cidade que nunca dorme.

Decidiu ser policial porque aos doze anos de idade ouviu sua avó ser morta. Ouviu porque ela o havia trancado na despensa, junto de sua irmã menor, quando percebeu que alguém entrará em sua casa. Eles estavam lá, para passar o fim de semana, enquanto os pais viajavam juntos.

Naquele dia, apertará tão forte a boca da irmã, que deixara seu rosto roxo. Eles não podiam ouvi-los. E Marie não parava de chorar.

Andreas não era mais um menino agora, mas não sabia que decisão tomar. Ficara parado num intervalo do tempo, estava inerte e acorrentado em um momento que havia marcado sua vida a mais de um ano atrás.

E tinha medo de se mover, porque sabia que caminho tomaria quando olhasse pra frente e se colocasse a caminhar. A correr na verdade. Havia perdido muito tempo já.

Aos doze anos de idade, Andreas brigará com Deus, e decidiu que ele nunca existiu. A morte de Ângela não suavizou essa idéia em seu coração. Só deixou a marca ainda mais indelével. Logo ela, que depositava tanta fé em uma força superior.

Encontraram-na afogada em uma banheira, completamente mutilada. Havia dedos e carne espalhados pelos ladrilhos, sangue por toda a casa. Andreas chegou à casa da namorada, depois de haverem chamado-o pelo rádio, enlouquecido. Por um momento, ele teve certeza de que aquele cadáver não era o de sua noiva, mas era apenas sua mente tentando resvalar para fora da realidade.

Sua identidade foi confirmada apenas pelos arquivos da arcada dentaria, pois não havia fiapo de semelhança entre o rosto dos retratos e a coisa desfigurada que encontraram no fundo da banheira - Mario, o policial que a encontrou, viu apenas um rascunho de perna pendendo para o lado de fora . A água era vermelha, completamente turva. O pobre Mario teve esperanças de que ali houvesse apenas um membro e não um corpo inteiro.

Não que estivesse inteiro. Mas boa parte do ser que fora Ângela estava ali.

Quando se afastou do pesadelo de carne revirada que havia sido deixado no banheiro de sua noiva, Andreas olhou para o chão. Ali ele encontrou um crucifixo sujo de vermelho. Sua Ângela o havia usado por quase toda a vida, sem tirar quase nunca. Um presente da madrinha que ela tanto amará e que morrerá anos antes de se conhecerem.

O laudo apontara morte por afogamento, e encontraram vestígio de sêmen nas roupas que ela deveria ter usado mais cedo. O legista alegara que havia tanto estrago causado por “objeto agudo e afiado” dentro dela, que não podiam ter certeza se a haviam estuprado ou não.

Toda a força da violência voltada contra alguém que espantava as formigas da pia, antes de abrir a torneira de manhã para escovar os dentes.

Seus colegas tinham um milhão de suspeitas. Sobre quem poderia ter sido. Porque haviam feito. Já Andreas olhava em todas as direções sem conseguir encontrar um fiapo, uma única pista, um único indício. Poderia ter sido qualquer um. Em seus sonhos era um demônio enorme que havia vindo divertir-se com Ângela. Chifres, pés de bode, uma figura caricata que cortava a mulher que ele amava, devagar, experimentando medo e dor em cada pedacinho.

E Andreas se culpava. Porque não havia sido namorado - ou noivo - exemplar. Porque a deixava às vezes andar sozinha na rua. Porque brigara com ela por coisas fúteis. Porque deixara seu distintivo à vista em algumas visitas que fizera a ela.

Nas primeiras semanas seu maior desafio fora não sair executando cada homem que julgava culpado. Hoje seu maior obstáculo era sua própria imobilidade, o grilhão que o prendia àquele dia.

O fantasma da dor de Ângela o possuía. E agora ele a via, ao seu lado, refletida.

E ela estava sempre sorrindo.

Naqueles tempos, arrastava-se para o trabalho, tentando não pensar nela. Atirava sem pensar, imaginando que estava ferindo alguém que podia ter ferido ela.

Matava pensando que de alguma forma, estaria vingando a morte dela. Dela ou de alguma outra Ângela, das muitas que morriam todos os dias.

Jadir, seu amigo, o cara que estava sempre com ele quando ia para rua a trabalho, começava a se preocupar. Era Brasileiro também, mas seu sangue o lembrava que seu avô viera do Líbano e tanto ele quanto seu pai haviam gravado o nome de Alah desde cedo no coração de Jadir. Todos os dias, quando executava suas preces – pedindo perdão a Alah por fazê-lo de modo apressado vez ou outra – Jadir orava por seu amigo. “Ponha luz no coração dele, eu não consigo”. Ninguém conseguia.

Na delegacia diziam que ele estava possuído por um espírito mal, mas Jadir sabia que era o espírito de Ângela. Que Ângela não o deixava descansar, que seus apelos não eram por vingança. “Ela sorri para mim”. O Amor dela era uma maldição, e o amigo de Andreas sabia que vingança alguma poderia desfazer aquele encanto.

O superior de ambos, o Delegado Passos havia deixado claro que afastaria Andreas se ele não melhorasse. Não havia dito isso ao próprio claro - ao menos não com essas palavras.

- Ele não quer ir ao psiquiatra. – Dizia a Jadir – Eu não estou dizendo que ele esta louco, mas ele precisa de ajuda.

- Eu sei senhor.

- Porque se não ele vai ficar louco! – Gesticulava Passos, sob os vigilantes olhos de Jadir, que notará que as bochechas do delegado ficavam rubras toda vez que ficava exaltado.

- Louco! – repetia.

E seguindo as predições de Passos, Andreas acompanhou a irmã, depois de meses de insistência a uma dessas casas espíritas para tomar um passe.

- Eu acho que é obsessão. – Falava Marie.

E estava tão cansado, que naquela noite se permitiu dormir. Dormir e sonhar com ela, com o corpo em frangalhos, com o arremedo de uma boca que sorria ao ser retirado de dentro da água rubra pelos legistas.

Acordou mal tendo dormido, lembrando que o corpo dela era como uma colcha de retalhos quando foi liberado para o enterro.

Naquela madrugada, ele sentou-se a mesa, onde havia algumas dúzias de fotos dela. Ele as havia retirado dos porta-retratos, dos cadernos, da carteira, de qualquer lugar. Queria tê-las jogado fora, mas não encontrou coragem - agora ficavam todas ali, na sala, as vistas, espalhadas, e ele as olhava com tristeza, pensando no desleixo com que havia deixado as imagens de Ângela. Virou uma delas, a que carregava na carteira de costas, e escreveu no verso – morta. E ficou olhando aquilo. Ele sabia, acreditava no que havia acontecido. Ainda assim, às vezes, pela manhã, quando estava muito cansado, esquecia a dor que o dragará para aquele inferno. Esquecia que ela não estaria mais com ele. Pensava escutar o barulho de chaves na porta e esperava ela entrar. Poderia esperar pra sempre. Isso seria mais misericordioso do que aquela inércia dolorida.

Leu de novo. Morta.

- Se Você esta ai, em algum lugar... Eu preciso sair daqui.

Para qualquer lugar.

Lembrou-se da avó. Ela também não tinha rosto depois do ocorrido. Dois tiros na cara e o caixão dela assim como o de Ângela haviam sido lacrados.

- É um passo. – Disse Jadir, depois de escutar sobre a insólita noite que Andreas teve. “Ele ao menos fala comigo agora” pensava, enquanto o amigo narrava desde sua visita ao centro religioso da irmã, passando pelo pesadelo até o pedido feito ao além.

Andreas estendeu a carteira para o amigo. Dentro dela Jadir encontrou a foto. Não teve estomago para olhar o verso.

Mas aquele era um passo.

E apenas o primeiro.