Produção do Tempo - Décimo Dia
Observo do alto da janela aqueles que passam. Anónimos ao meu olhar. Aqueles que passam. Observo aqueles que um dia passaram a outro olhar. Os que já não passam. Os que deixaram de ser vistos. Como Pessoa dizia sobre a morte. A ausência. A suspeita de tudo o que podia ser. A suspeita de imaginar aqueles que não passam. A suspeita do que não está, o vazio do que a vida seria se tivesse havido outra vida possível. A ausência dos que falam, a felicidade de um rosto anónimo sob o vácuo de um dia. Do não dito na breve permanência de um fluxo contínuo. E a minha memória ou o sonho que houve teriam outros que passam, outros indistintos pela brevidade do que vai.
A avenida é o outro lado, aquela estrada ao fim da tarde, uma sombra coada pela chuva ou – quem sabe? – a névoa diluindo qualquer destino de um propósito sem sentido. A primeira luz da noite, a última margem habitada por personagens de uma história inventada. Nem sei o que narro, o que pudesse descrever do alto da janela que valesse apenas um rumor ou uma voz audível ao futuro. Tudo o mais é a indisposição gástrica de pensar, a simples subtileza. Abro as cortinas e ouço a minha voz do outro lado, abro as cortinas e reflicto também eu sobre as imagens, esta imagem reflectida num cenário real de avenidas sem fim. Mais longe, onde tudo pode ser invenção, talvez as áleas verdes de um bosque, talvez o que não existe, só o silêncio.
Talvez o quotidiano tão autêntico como a respiração. A felicidade dos que são felizes e infelizes. Do alto da janela o mundo se manifesta, objecto de uma depurada observação. Assim num olhar de deus nascido de todas as ilusões. À noite, prolonga-se a noite pela marginal até ao infinito e fico com as palavras que trago nos bolsos. Desafiar as palavras, provocá-las, cada impressão me desperta mais do que posso sonhar. As áleas verdes de um bosque, os navios que parecem sempre os mesmos declinados no horizonte ou na solidão. Penso as viagens que nunca fiz. O que poderia ter sido, o pátio da minha infância, agora tão presente este muro caiado, uma linha onde subi para saber do céu mais fundo e afligir com a inocência a minha mãe. Tudo passa anónimo e até a emoção se defende da emoção. Do alto da janela nada sei dos que passam, também sou a personagem enevoada na imaginação da noite.