Tenda do destino
Toda semana ele chegava, adentrava o ramal férreo, resfolegando pelo esforço de empuxo de dezenas de vagões, lançando no ar fumaça de óleo queimado nos seus imensos motores, ajustava-se à plataforma de desembarque que já estava ocupada por dezenas de estivadores que, como um formigueiro, iniciavam o descarregamento de milhares de sacos de milho, alfafa, feijão e outros produtos agrícolas destinados ao estoque regulador do governo.
O armazém, quando vazio, assemelhava-se aos porões dos grandes cargueiros do porto e servia de campo de futebol aos trabalhadores, mas, quando o trem chegava o espaço das muitas quadras era preenchido por imensos blocos que se formavam pela descarga da sacaria, feita com alegria e cantoria do grupo de estivadores, felizes por terem garantido o sustento trazido pela imensa serpente de ferro da “Sorocabana”.
Alguns dias de pesada labuta e a empreitada terminava. Após estar vazia e limpa a composição deixava a plataforma sob o olhar agradecido daquela gente de duro cerne, que se enfileirava frente ao gabinete do encarregado, prontos a receber finalmente o pagamento nem sempre justo do suor derramado. Pouco dinheiro que provocava largo e rasgado sorriso nos rostos marcados pela vida dura daqueles homens.
No banho reconfortante as forças se refaziam e todos se preparavam para a comemoração do fim do serviço, próximo dali, com as meninas do “Suzette’s”, explorado por uma francesa de cabelos avermelhados que quando via o cargueiro chegando sabia que logo teria bom movimento e mesa farta.
Mas não era o que Genivaldo pensava enquanto a água fria caia sobre os ferimentos provocados nos ombros fortes pelos fardos de alfafa que suas largas costas sustentaram naqueles dias. Queria sim era voltar e abraçar feliz a sua Maria Rita, lhe dar um presente e depois reinar absoluto na sua fortaleza, naquele barraco da vila Candeeiro, próximo ao depósito de lixo da cidade.
Vestiu então sua calça branca, camisa xadrez de algodão, alpercatas de couro cru e um chapéu de feltro e assim seguiu rumo à cidade. Pensava em passar no bazar do Fuad, turco simpático que lhe contava histórias de mesquitas e de minaretes, de riqueza do povo árabe que fazia Genivaldo sonhar! Toda sua roupa e a de Maria Rita eram compradas das mãos do turco, mercador das ilusões que povoavam a mente do ingênuo estivador.
Fuad era responsável pelos sonhos de Genivaldo que quando bebia perdia um pouco o rumo e se deixava levar por devaneios, frutos das conversas tidas com ele. Imaginava-se construindo minaretes nas mesquitas de Alá , depois descansando à sombra deles, com Maria Rita ao seu lado, coberta por finos tecidos, adornada por braceletes , brincos, colares de beleza sem igual, sim, a sua princesa Ritinha nos jardins do Misericordioso!...
Fuad gostava de conversar com Genivaldo, passava horas contando histórias das mil e uma noites e de tristes noites nas guerras sem fim do mundo árabe, enquanto bebericavam boa caninha dos corotes que Fuad conservava nos fundos do bazar. Pensando no presente de Ritinha Genivaldo comprou de Fuad um corte de chita e seguiu pra casa imaginando o vestido novo que sairia daquele tecido, a realçar a beleza natural da sua amada. Levou também frutas frescas, presente do turco.
Ritinha, mulata de sorriso matreiro, largas ancas de parideira embora filhos não tivesse, um tanto destrambelhada e afeita aos prazeres da carne como nenhuma outra, inconsciente e inconseqüente de suas atitudes, sabia ser a paixão incontrolável de Genivaldo e o desejo incontido de outros moradores do cortiço, como o pai-de-santo Tobi de Iansã, mulato atirado que, embora de certa idade, não escondia o desejo de se embolar com Ritinha no chão das camarinhas do terreiro que levava o nome de sua “mãe de cabeça”, sabia do desejo materno revelado pela yaô, mas, temia Genivaldo na mesma intensidade do desejo por Ritinha que por sua vez acreditava em Tobi como condutor de seu espírito e o respeitava tanto quanto o amor que sentia por seu negro estivador, sonhador de minaretes e braceletes...
Assim vivia Genivaldo, negro querido, um Santantoninho da sua rua, retinto na cor herdada de seus ancestrais, forte como um tronco de jequitibá e de coração que parecia feito de flores dos campos da sua terra.
Porém, por capricho dos deuses a paz lhe foi roubada, arrancado que foi do campo dos sonhos. Tendo saído do bazar de Fuad, Genivaldo resolveu comprar mais uma porção de aguardente que tomaria em casa enquanto aguardasse o guisado de coelho que Ritinha fazia como ninguém, bicho que eles criavam em viveiros no pequeno quintal do barraco. A bebida foi colocada em garrafa de refrigerante e envolta em saquinho de pão que ele colocou sob a axila, posto que suas mãos estivessem ocupadas pelo presente de Ritinha e pelas frutas que o turco lhe havia dado.
Entrou no barraco, colocou as coisas que trouxe na mesa ao lado do fogão à lenha que estava estranhamente apagado, a luz do ambiente provinha de um lampião postado acima da porta do quintal, já fraca por estar no fim o combustível.
Atravessou o pequeno ambiente e foi desaguar o excesso de cachaça e cerveja que já havia tomado, num sanitário improvisado no quintal, como era em todos os barracos da vila. Na volta contou os coelhos e viu que Ritinha não matara nenhum. Um tanto alto pela bebida pensou em se deitar um pouco enquanto sua mulata não voltasse, não a vira quando entrou em casa. Maria Rita era mesmo avoada, um tanto lerda das idéias, pensou ele, esqueceu o lampião aceso, o guisado de coelho, até a porta do barraco não trancou, mas, com um sorriso perdoou.
Entrou e viu então uma sombra que balançava lentamente na parede de tábua, firmou a vista prejudicada pelo álcool, procurou entender a visão, olhou em volta e estarrecido viu o corpo divinamente belo de sua Ritinha que balançava no canto, pendurado na viga mestra do telhado.
Horror maior não vira, nem mesmo quando seu pai fora colhido da seara, numa tocaia injusta montada por soldados da volante nas sendas das plantações de cacau onde vivera. Genivaldo lançou então um grito de agonia e dor que foi ouvido em toda vila, encobrindo até o som grave dos atabaques e dos pontos cantados, que naquela noite de lua cheia parecia que de alguma forma entoavam um “réquiem” à mais bela yaô da terra e do terreiro do pai Tobi de Iansã...
Vieram vizinhos, mulheres choravam, amigos se ofereceram. Então Genivaldo fechou a porta do barraco para que ninguém visse a nudez de Ritinha, desesperado cortou a corda de sisal que violara seu pescoço e ceifara-lhe a vida, colocou-a sobre a cama e cobriu-lhe com o corte de tecido de chita comprado de Fuad, último agrado ao seu grande amor, beijava-lhe a face e lamentava tamanha desgraça. Depois abriu a porta e aceitou ajuda posto que estivesse fraco como criança.
A notícia chegou ao terreiro, os trabalhos foram interrompidos e todos rumaram para a casa de Genivaldo. De fora Tobi observou, sem querer entrar, em seguida desceu a rua lentamente, pensativo, entendendo a atitude tomada por Ritinha. No fundo imaginava a razão, não precisava consultar búzios ou fazer adivinhações para tirar conclusões. Era louco por Ritinha e sabia como conduzi-la ao seu bel prazer nas camarinhas do terreiro. Soturnos pensamentos o dominavam...
E o destino de Genivaldo também foi selado neste dia.
O Campo Santo não permitia que suicidas fossem sepultados entre cristãos, nem mesmo o padre encomendou o corpo, na verdade o cemitério também tinha o lado da classe de “gente bem” com direito a túmulos e cruzes cristãs, mausoléus, estátuas de anjos, e outro lado destinado à “quinta classe”, esta dos desvalidos, deserdados, sepultados em campo aberto apinhado de covas rasas. Assim baixou à terra o corpo de Maria Rita, bem na divisa social do campo santo, atrás do mausoléu do Comendador Ferreira, fundador da cidade. Cova que Genivaldo mesmo abriu tendo os olhos secos de tanto pranto derramado.
Nem sequer trocara a sua calça branca que se tingiu do limo da terra. Os conhecidos deixaram-no só, a fitar a última parada de Ritinha
Terminara o dia e a paz de Genivaldo.
Serviço naquelas bandas, de estivador ou de pedreiro, pouco tinha e isso magoava ainda mais o negro que sem atividade remoia e ruminava ainda mais a ausência e a trágica morte de Maria Rita e só se consolava um pouco com as lições de vida e experiência do turco Fuad, que já começava a ouvir estórias sobre Ritinha, da boca das faladeiras meninas de Suzette que também compravam as novidades do bazar, trazidas da capital.
Diziam os homens freqüentadores do lupanar que Genivaldo sem saber tinha crescidas e douradas guampas a ornarem-lhe a testa, povo maldoso, de malvada índole. O negro, puro de coração, alma de criança, só fazia lembrar de sua amada e todos os dias seguia rumo ao Campo Santo, não sem antes se abastecer no corote de Fuad que lhe cedia um pouco mais pra levar. No fim da tarde voltava cambaleante e choroso, após horas de visita à campa de Ritinha.
Desconfiado de tanto falatório, Tobi de Iansã, o pai de santo, se acercava de Fuad no intuito de especular a ignorância do negro, pois sabia da afinidade entre eles e estava preocupado.
Tobi sabia a razão do suicídio de Rita, mas, temia que o falatório terminasse por envolver o terreiro e ele próprio no fatídico desenlace de seu incontido e insaciável desejo pela mulata que ele conduzia como se fosse uma marionete nos trabalhos do terreiro, muitas vezes só os dois e por testemunhas as entidades que se acreditava habitarem lá.
Maria Rita sabia que Genivaldo não gostava da movimentação do terreiro, católico fervoroso que era, mas não se importava com que sua mulata freqüentasse, faria qualquer coisa por ela, até vista grossa, desta forma Ritinha jamais comentara qualquer atividade do terreiro, julgava tudo normal e parte necessária aos rituais, iludida que fora pelo seu mestre espírita que podia então se deleitar em sua malvada astúcia. Até acontecer o pior.
Sabidamente Genivaldo era estéril e Ritinha percebeu o atraso em suas regras. Pensou em milagre pela ação dos Orixás e feliz comentou com Tobi que imediatamente tramou a morte da sua yaô. Dia a dia foi colocando o temor em seu coração convencendo-a a tirar a “cria de Exú” que crescia em seu ventre. Ritinha acreditava no poder de Tobi e fez exatamente como ele lhe mandou, expulsar o demônio pela morte e ressurgir pelas mãos de Iansã, livre para o amor de Genivaldo.
Tobi conseguiu se livrar deste problema, mas, teria que convencer muita gente a se calar tal o falatório que grassava, ou então tramar a morte de Genivaldo também.
Talvez não precisasse. O estivador estava definhando dia a dia e já não falava coisa com coisa, tal era o nível de insanidade que o acometia por conta da ausência de Ritinha.
O tempo, foi passando, relegando fatos ao esquecimento. Genivaldo continuava todo dia visitando a campa de Maria Rita, conversando com Fuad que alimentava pesaroso o corpo e a mente do amigo.
Genivaldo tornou fixo seus devaneios sobre mesquitas e ricos braceletes encobertos pelas vestes de Ritinha, costume de muçulmanas contado pelo turco. Tobi fechou-se no terreiro e tramava com os espíritos a queda total de Genivaldo, tal era o medo e o remorso que o corroia.
Fuad levantou-se como sempre fazia, no nascer do sol, alimentou os passarinhos e preparou a garrafa de aguardente que certamente Genivaldo buscaria antes de ir à visita diária da campa de Ritinha. Depois abriu o bazar e esperou fregueses que viriam buscar as novidades, principalmente lingeries trazidas para o “Suzettes”.
Viu no jardim a figura triste de pai Tobi que havia se decidido sobre o destino de Genivaldo. Mas, neste dia ele não veio, três dias seguidos não apareceu.
Tobi também deixou de esperá-lo, mas circulava já com um sorriso malévolo de quem superou o perigo. Não se trancava mais no terreiro. Os atabaques voltaram a rufar na noite da vila Candeeiro.
Não era costume visitar cemitérios, só se houvesse um sepultamento, do contrário ficava abandonado, habitado pelas almas dos mortos e pelos calangos que se banhavam de sol sobre os túmulos.
Genivaldo estava bem fraco, de corpo e de mente, nem de longe lembrava aquele negro luzidio que reinava na fortaleza do Candeeiro, brincava com Maria Rita, fazia dela rainha árabe e a possuía nos lençóis puídos da velha cama do barraco. Deitado ao lado da sepultura da sua mulata, com o chapéu de feltro a proteger sua carapinha, conversava assuntos sem fim e sonhava com as estórias de Fuad, construindo em sonho mesquitas e minaretes.
Adormeceu pelo efeito devastador da bebida que consumira sem alimentar-se direito, quase nada, desde a partida de Maria Rita. O sol já se punha no horizonte e Genivaldo dormia profundamente ao lado da campa, sonhava estar à sombra de minaretes com sua Ritinha e então ouviu sua voz, sentiu sua mão que o conduzia e a seguiu.
Foi assim que pai Tobi o encontrou. Com um enigmático sorriso, êle observava o corpo sem vida de Genivaldo que jazia sobre a campa da yaô, ao invés de sombras de minaretes o frio contorno do mausoléu do comendador Ferreira. Morreu de cachaça, como previra. Então deu as costas ao defunto e partiu sem dizer a ninguém o que encontrara.
Foi assim também que Fuad o encontrou, depois de incessante busca ao amigo.
Fuad sentia grande pesar pela morte daquela criatura que neste mundo só fez amar, e lembrava-se dele nas orações da mesquita,
Algum tempo se passou.
O turco olhava pela janela de sua casa, sobre o bazar e via o tempo fechando, grossas gotas de chuva a surrar os vidros de sua janela. Relâmpagos riscavam o céu com grande violência. Lá no terreiro da vila Candeeiro, pai Tobi se ajoelhava no chão barrento entre as árvores e pedia, gritando, perdão à orixá, mas só via a figura imponente de Iansã com sua espada enviando raios à terra.
Todos souberam então. Revelou-se a estória de Maria Rita e Genivaldo. Até cordel se fez. Suzette e suas meninas deixaram a cidade. O trem de ferro deixou de descarregar do seu ventre o sustento dos estivadores, o armazém se fechou e todo dia Fuad recitava versos do Alcorão em memória do amigo.
Tobi desapareceu, a chuva parecia que se concentrara sobre o terreiro, os raios castigaram sem tréguas. A enxurrada levou o que restou, um molambo nojento que desceu na enxurrada e se foi nas águas do riacho que corta a vila Candeeiro...