A SEGUNDA FACE
Agora que o tempo fechou sobre mim sua cinzenta porta, me enterrando em definitivo a possibilidade de retorno, posso transformar em consolo meus sentimentos. Penso que exagerei na tolice de me permitir ao amor daquela forma. Penso que não medi nenhuma conseqüência, embora conhecendo por experiência própria a lei do castigo.
Confesso, senhores e senhoras, com a ponta da caneta enterrada no que me resta de coração. Explico-o: o coração ainda permanece inteiro. Sua função é que jamais foi a mesma desde o último outono da minha vida. Não desejei para mim nenhum castelo pomposo, seja na Escócia ou no distante Azerbaijão. Mas também, nunca me senti merecedora de um eterno banquete miserável. Fui obrigada a tragar pouco a pouco um cálice, que elevou meu corpo à altura insustentável e impenetrável da existência, e retirou de minha alma a possibilidade de salvação.
Inicialmente, não me fascinei pelo homem. Fui eletrocutada pelas palavras do simples padre. Antes de Marcos, havia na minha mente um foco eterno entre um padre e um homem. Impossível seria alguém exercer as duas funções ao mesmo tempo. Senti-me confortável com a minha sacola e meu bloco de anotações em sua frente. Conseguia captar dele apenas o som de suas palavras. Ao menor sinal de eco, meus ouvidos já se distraiam com algum rock profano e qualquer tola teoria existencial.
Penso agora, ó ingratos, que a função de escritora e mulher também pode ser impossível de ser conciliada por uma única criatura. Para meu consolo e desespero, eu mesma causei toda a destruição. Matei primeiro o padre para libertar o homem que havia nele. Depois, lentamente, mas com doses calculadas, matei o homem. E para a minha completa desolação, o padre já não mais poderia voltar a existir. Eu havia cometido o crime de num absurdo milagre, libertar do corpo de um filho de Deus, suas duas almas. O pior, é que elas voaram para longe, e me deixaram sem saber o que fazer com aquele caco de corpo nas minhas mãos. Perdão, Marcos, mas você sabia desde o início que as minhas mãos não nasceram para cuidar de ninguém.
- Prazer conhece-la. Então é a mulher que irá expor a minha vida?
- Oh, acho que sim.
- Estou em suas mãos, senhorita Elizabeth. Suas perguntas não me destruirão, não é mesmo?
Não deveria ter cometido esse duplo erro, meu caríssimo sacerdote. Nunca subestime as mãos de uma mulher nem tampouco sem poder de destruição, mesmo sendo você, um servo de Deus.
Nossa primeira sessão de entrevista, transcorreu tranqüila, exceto pelo fato do Padre Marcos, insistir de o próximo encontro acontecer num local, digamos, mais interessante: num jardim. Segundo a vítima, o oxigênio das árvores o ajudaria a libertar suas tímidas confissões. E eu, padre, só queria libertar você do monstro da batina e te apresentar a outro monstro.
O que me encabulou naquele homem sem encantos não foram seus olhos insistentes e duvidosos. O que me deixou duas noites sem dormir, foi sua opinião sobre o Sermão do Monte. Ele disse que me converteria em uma semana se eu deixasse que ele me explicasse sua versão sobre o Sermão. Concordei. Como estava errado, Marcos! Não o culpo. Algo diabólico deve ter se apoderado de mim naquele momento. Minhas mãos cuidaram de você, padre, mas elas não apenas despiram sua batina, elas queriam mais. Queriam fazer um banquete com as suas carnes e suas almas, mas só as apreciavam desfiadas e com o tempero da maquiagem.
- A lição da segunda face, Elizabeth, foi a maior filosofia da história da humanidade. Amai os vossos inimigos, compreende? Se te baterem na face direita, ofereça a esquerda. Se te levarem o pão, ofereça igualmente o café. Passe manteiga no pão e diga "bom apetite".
Entende isso doutora?
Entendo tudo agora, padre. Mas seu fracasso comigo não foi total. Afinal, aprendeu que por trás de toda aquela máscara, havia um demônio instalado no seu dia-a-dia, e você precisava se resolver com ele: desculpe o jeito, mas acho que você perdeu, meu caro. Você me pediu para lhe excluir do sentimento de pena, por isso obedeço seu pedido.
Compreende? O que estará fazendo agora, Marcos? Preocupou-se muito com a minha alma, mas não poderia nunca imaginar que para fisga-la, jogou uma rede muito grande, e meu corpo não viu a placa o impedindo. Não sei até agora como tudo começou a arruinar. Não sei se posso o perdoar, por destruir a minha carreira. Não! Aquele livro era tudo o que eu queria de você, peste! Seu corpo apenas me possuiu pelo instinto animalesco que há em todos vocês, homens, sujos e impostores. Mesmo não sendo ainda um homem, você pareceria satisfeito em estar tão íntimo de uma criatura de Jeová.
Não deveria nunca, Padre Marcos, ter me convidado para jantar. Não deveria nunca, padre, ter colocado a minha música favorita. Quando me tirou para dançar, vi que naquele instante já não havia mais padre algum. Era um homem, e por isso, o meu encanto espiritual havia acabado. O Sermão do Monte já não me faria mais perder noites de sono. A Bíblia já não mais me seduziria. A missa será para mim apenas um ato teatral. Quando libertou o homem, cometeu o seu crime, Marcos. O que havia de monstro em você, me destruiu a razão. O que eu disse que te fez desejar me possuir? Não deveria ter feito isso.
- Como manda o Sermão, se alguém lhe beija a face direita, ofereça-lhe a segunda face.
Deveria ter ao menos ter seguido o exemplo correto, seu impostor da fé! A minha boca não queria roubar da minha segunda face o que ainda me era controlável.
É... Não consigo imaginar que você largou tudo. Preferia que você carregasse sua feia batina que o capital remorso. Sua respiração me parecia mais segura convencendo multidões do que me levando ao delírio e me fazendo desejar o Éden desesperadamente. Senti-me mulher uma única vez na vida, padre. Mas isso não te daria o direito de atolar de novo a minha alma no mesmo lamaçal em que ela estava. Senti-me salva também uma única vez na vida. E isso não te daria o direito de me obstruir para sempre o céu! Oh! Penso que o padre Marcos, mesmo sem intenção me permitiu um contato com Deus. Mesmo eu não acreditando, estava começando a admitir remotas possibilidades. A Segunda Face, até hoje penso nela com extrema paixão. Uma paixão que consome em fatias o que me resta de alma.
O meu pecado, perdoai, Marcos, foi ter te oferecido sempre a Segunda Face. Não o perdôo por ter me levado a uma festa onde eu não conhecia o anfitrião e ter me deixado sozinha lá. Em que cidade estará, meu guia Marcos? Eu estava tão próxima da salvação e você saiu fechando para sempre de mim, a única porta que eu queria abrir.