Encantamento

Todas as noites o garotinho ficava observando o avô. Assim que todos tivessem jantado e que a reza a Padre Cícero silenciasse, o Velho Chico sempre se sentava à porta do casebre para fumar cigarro de palha e observar o pôr do sol que só tem no sertão. Para o garoto era a melhor hora do dia. Era quando podia viver num mundo maravilhoso e somente o seu avô tinha o poder de transportá-lo para lá. O mundo fantástico das lendas e das histórias onde tudo é possível e que faz parte da história do nosso país.

Depois da chegada dos portugueses, negros, holandeses, italianos, alemães e outras nacionalidades por estas terras, muitos causos curiosos aconteceram ou vieram acontecidos principalmente da Europa e da África, formando o folclore brasileiro.

- Vô, inda hoje eu ouvi falar que essa terra tá fazendo ano e que é pra mais de cem. É verdade?

O Velho Chico, nome dado em homenagem ao rio e ao santo, não desviou o olhar do horizonte vermelho. Soltou uma fumacinha pelo canto da boca, deu uma risadinha e respondeu:

- Que nada! Isso é tudo bestage! Essa terra tem muito mais ano que essa gente pensa. Esse sol é testemunha. Curupira já andava por esses mato muito antes deles chegá aqui. Eles destruíro as árvore de Curupira e por isso não conseguem ver o sol se pondo. Tão tudo ocupado, cheio de preocupação, cansado, doente. A água deles é suja e o ar fedorento. É castigo de Curupira.

Acendeu um brilho nos olhos do neto. A porta para o mundo encantado estava aberta. O menino ficou ouvindo as histórias maravilhosas do avô como se nada mais existisse ao seu redor. Cada palavra projetava uma imagem mágica na sua cabeça:

- Vô, fala mais de Curupira...

- Os índio é que conta que Curupira é um ancião de cabelo ruivo, cos pé virado ao contrário, o corpo nu coberto de pelo e nenhum buraco no corpo pras necessidade.

É uma história que remonta às origens dos índios tupi-guarani. A função de Curupira é cuidar das matas. Quando se ouve alguma pancada ao longe, é ele batendo nas árvores e verificando se elas estão fortes o suficiente para enfrentar a tempestade que e aproxima. Todo aquele que estraga a floresta é punido. Erra por muito tempo sem encontrar o rumo de casa nem ninguém pra ajudar. Antigamente Curupira fazia contato com os caçadores.

- Em troca das melhor arma o indiozinho exigia comida sem alho nem pimenta, dois tempero que detesta! – ria o avô.

Tudo deveria ser mantido em segrego e a traição era paga com a morte. Os caboclos ainda o presenteiam com fumo e pinga. Assim, distraem-no e ele não incomoda durante a caça. Curupira está presente em todo o Norte do país. Os primeiros registros oficiais datam de 1569. São manuscritos de Padre Anchieta contendo relatos indígenas em que o anão é também chamado de “demônio da floresta”.

- Diz os índio que ele deixa rasto falso pra inganá as pessoa e que ele açoita quem pega ele, até morrer.

- Cruz credo! – arrepiou-se o menino, fazendo o sinal da cruz. – Vô, como é mesmo aquela história de um tal de Zumbi?

- Ah! O Zumbi é lá dos negro do Nordeste. Zumbi existiu em carne e osso e virou um herói porque morreu lutando por liberdade.

No tempo da escravidão alguns negros “rebeldes” fugiam das fazendas e se uniam numa organização que se chamava quilombo, no meio da mata. O mais famoso deles é o de Palmares, no interior de Alagoas. Eram dez mil negros que plantavam e caçavam para subsistência e dividiam tudo o que tinham. Sempre havia alguém que dirigia o quilombo. No caso dos Palmares o chefe chamava-se Gangazuma. Com sua morte, Zumbi herdou seu posto.

- Dizem que Zumbi era muito inteligente e corajoso. Enquanto tava no comando, Palmares viveu tempo de progresso – orgulhou-se o velho, lembrando o sangue negro que também corre nas suas veias.

O governo brasileiro mandou várias expedições para destruir o quilombo, sem sucesso. Até que um bandeirante paulista chamado Domingos Jorge Velho conseguiu derrubar a cidade construída pelos negros. Aqui já não se conhece mais o limite entre realidade e lenda. Até hoje a causa da morte de Zumbi não foi comprovada. Povo prefere acreditar que, juntamente com seus súditos, o herói tenha se jogado do precipício, preferindo morrer a voltar para a escravidão.

Ainda hoje há remanescentes de quilombos, os quilombolas, e essa história passa dos lábios dos avós para os ouvidos dos netos.

- Assim como faço com tu agora... Menino, tu sabia que hoje é dia de São Sebastião? Essa história nasceu lá pras banda do Rio de Janeiro...

Diz-se que em 1556 ele teria salvado os portugueses numa luta desigual contra franceses e índios tamoios na baia de Guanabara. Repentinamente a canoa onde estavam os inimigos explodiu e algumas testemunhas viram um jovem bonito e guerreiro lutando contra os tamoios sem ser atingido pelas flechas.

¬- Era o príncipe Dom Sebastião! – contava o avô rolando a mão direita no ar, da cabeça ao ventre, induzindo a imaginação do neto numa saudação à suposta presença do nobre guerreiro.

A história fez com que Dom, ou São Sebastião, se tornasse padroeiro do Rio de Janeiro e a crença no “santo” espalhou-se até os sertanejos do Nordeste. Muitos deles acreditam piamente na volta de Dom Sebastião e será salvo quem estiver seguindo seus preceitos. Vários “enviados” do santo já apareceram entre os sertanejos.

No meio da conversa, de repente, uma barulheira veio do galinheiro:

- Ué... que que deu nas galinha? – espantou-se o neto.

- Se assuste não. Isso é Saci aprontando denovo...

Saci-Pererê é um negrinho de uma perna só que anda nu e tem uma carapuça vermelha que lhe dá poderes. Fuma cachimbo e adora assustar as pessoas. Dizem que no interior de São Paulo, na cidade de Botucatu, tem criação de Saci...

- À noite ele monta nos cavalo e faiz eles correr, correr, correr. Quando eles tão bem cansado, trança as crina.

O negrinho pode ficar invisível, anunciando-se através de um assobio misterioso e impossível de ser localizado. Há relatos do século XVII em que os índios munducurus já conheciam o Saci. O peste se diverte dando sumiço em objetos, queimando os alimentos postos a cozinhar, agourando a massa do pão, remexendo nos ninhos das galinhas poedeiras e esparramando a cinza dos fogões apagados à cata de algum pinhão ou batata-doce esquecidos entre as brasas.

-Prá encontrá arguma coisa escondida pelo Saci é só dar treis nó numa paia colhida num rodamoinho e colocá debaixo do pé da mesa. É que rodamoinho não é vento coisa nenhuma. É arte do Saci. Ele gira na perna e faiz o ar girar também.

Quando alguém amarra a palhinha e coloca debaixo da mesa ele se sente preso e imprensado e mostra onde está o objetivo perdido para ser solto.

Mas não é só ele que acha coisas perdidas não. No Rio Grande do Sul, quando alguém procura e não acha, é só acender um toquinho de vela para o Negrinho do Pastoreio. Essa lenda tem origem no final do século passado. Conta-se que um estancieiro da pior espécie tinha um negrinho como escravo que lhe cuidava dos pastos. Certa feita, o pobre deixou fugir um animal. Apanhou até dizer chega e, noite escura, teve que ir a campo procurar a res. Para iluminar o caminho, usou um toquinho de vela, mas não encontrou o que procurava. Para aumentar o castigo, tomou outra surra e foi colocado nu sobre um formigueiro. Já era dado como morto quando, no dia seguinte, eis que surge o negrinho, sem nenhuma marca no corpo, nem sangue nem nada, segurando o animal fugitivo.

Já era noite no sertão. O céu já não estava mais vermelho, parecia ter milhões de olhinhos que observavam os seres da Terra. O neto já tinha acomodado a cabeça no colo do avô.

- Esse céu estrelado desse jeito me faz lembrar o boitatá...

Em Santa Catarina é antiga a lenta do boitatá. Em tupi-guarani, boitatá significa “cobra de fogo”. Quem viu diz que é uma bola que flutua e pode atravessar a cerca sem se cortar. Não faltam relatos de pessoas que já viram o fenômeno e dizem que o fogo atravessa sem queimar, como se não tivesse nada pela frente. Os índios ensinam que a cobra é assim iluminada porque só os olhos das vítimas.

- Quando arguém se encontra com boitatá é mió ficá parado, fechá ozóio e não respirá. Só assim a lenda vai embora – adverte o Velho Chico.

Se a pessoa tenta fugir, boitatá perseguirá até deixá-la louca e matá-la. Se tentar perseguir a cobra, vai se perder no meio do mato, pois a cobra não pode ser encontrada.

Existem também lendas que percorrem todo o território brasileiro. Uma delas é o lobisomem. É um homem pálido que nas noites de lua cheia, preferencialmente às sextas-feiras, transforma-se em um grande cachorro que devora animais e chupa o sangue de quem encontrar pela frente.

-O home se transforma em lobisome quando é amaldiçoado pelos pai ou pelos padrinho. O sétimo fio do casal, se não for batizado pelo mais véio, vai virá home-bicho.

Sem sangue, o lobisomem morre por inanição. Vai empalidecendo e fica fraco, desesperado à espera da próxima sexta-feira de lua cheia. Para se transformar em bicho ele se deita numa encruzilhada, tira a roupa e dá sete nós. Então crescem pelos grossos por todo o corpo e suas orelhas ficam grandes. Corre com os joelhos e cotovelos os quais amanhecem ensanguentados.

Conta um amigo de Velho Chico que viu a aparição com os olhos que a erra há de comer. Eis o relato:

“Eu morava em uma casa que era mais alta do chão e tinha assoalho de madeira. Tinha espaço entre as tábuas. Todo mundo dizia que na vizinhança tinha lobisomem, mas eu nunca acreditei. Um dia, estávamos tomando café, era tarde da noite. Ouvimos um barulho estranho. De repente um cachorro muito grande entrou por debaixo da casa. Os pelos grossos e compridos entravam no vão do assoalho. Todo mundo ficou com medo. A mulher jogou a chaleira de água fervendo nas costas do bicho e ele saiu correndo e gritando. No outro dia um vizinho não saiu de casa. Fomos lá ver. Ele estava com as costas todas queimadas...”.

Pelo sim, pelo não, Velho Chico ensina o que fazer no caso da aparição da lenda que foi trazida da Europa. Lá, ela é contada há muitos séculos:

- Prá quebrá o encanto é preciso provocar um ferimento no bicho que saia sangue e se arguém disfizé os sete nó da sua roupa ele nunca mais vai virá gente denovo – garante o avô.

A última chama do lampião se apagou e total escuridão tomou conta da casa. Menino, deitado no colo do Velho Chico, já sonhava com todos aqueles personagens que tanto amava ouvir seu avô contar. Se quisesse, poderia ficar horas ali sentando contando as lendas do povo para o neto aprender. No decorrer desses mais de cinco séculos, e até muito antes, muita história se criou. Mas, só quando o neto tiver a sabedoria do caboclo é que vai entender o verdadeiro significado delas.

Dando um beijo carinhoso no neto, Velho Chico saiu, foi até a margem do Rio São Francisco, mergulhou seus pés e foi se transformando, lenta e silenciosamente, numa grande sucuri. Seguiu nadando em direção a uma terra a que só os encantados têm acesso. Mal sabe o neto que tudo aquilo que tanto gosta de ouvir está ali e que um dia o menino será como o avô, terá acesso à terra encantada. Mas só quando o seu coraçãozinho estiver preparado para receber o encantamento.

Giselle Zambiazzi
Enviado por Giselle Zambiazzi em 23/02/2010
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