O RONCO DO MOTOR

Anos 70. Ditadura militar. Os militares criaram o Projeto Rondon no qual estudantes universitários se deslocavam para distantes regiões pobres e subdesenvolvidas do Brasil para levar assistência. Os estudantes voluntários eram recrutados em suas universidades, selecionados por áreas de estudo como Medicina, Pedagogia, Engenharia, Serviço Social dentre outras. Havia um treinamento na cidade de origem e depois eram despachados para seus destinos.

Eu era estudante universitária com pouco mais de 20 anos de idade. Fui designada para atuar no Amazonas. Sou filha de militar da reserva, meu pai desaprovava o golpe dos militares, todavia em casa com os filhos muitas vezes assumia ares de um Ditador.

Participar de uma Operação do Projeto Rondon, para mim era uma oportunidade de escapar da rotina rígida imposta em casa. O Projeto Rondon significava viajar e conhecer o Brasil, não importando ser o destino um ponto perdido no meio da selva amazônica.

Dentre os preparativos para a viagem estava a escolha das roupas. Eu tinha poucas roupas e muito menos ideia sobre o que levar. De minha mãe não esperava qualquer ajuda nesse sentido, nem sugestões, tampouco orientação. Minha mãe sempre impunha um estilo mais masculino: calças de brim ‘farwest’, tênis Conga, pijamas de flanela e cabelos cortados bem curtos. Eu sonhava ter o primeiro ordenado para comprar panos e mandar fazer muitos vestidos e comprar camisolas macias e femininas.

Naquela época existia uma revista com moldes Gil Brandão. Eu não sabia costurar, porém copiei moldes, cortei panos e costurei as roupas para levar na viagem.

Após o rápido treinamento, a vacinação e a cara feia dos pais parti rumo à floresta. A viagem teve início no Rio de Janeiro para o embarque em avião da FAB.

Somente no Aeroporto do Galeão foi que me dei conta que jamais voara de avião e senti pânico. O aspecto externo do avião contribuía para o terror. Eu conhecia avião através das propagandas da Cruzeiro do Sul e da Varig. Não pensei em desistir. Entre voar naquele monstrengo e voltar para casa era preferível encarar a viagem.

Por dentro o avião era mais tosco. Bancos laterais e a carga no meio. Até dava para esticar as pernas e apoiar os pés nos volumes. Eu nem me lembrei de comprar uma revista ou livro para distrair. Acomodada no banco fingia estar calma. Guardei para mim o medo e passei a vigiar o som dos motores. O avião decolou quando o dia amanhecia.

Horas e horas voando. Os ouvidos alertas. Qualquer som diferente fazia retornar o pânico. Evitava conversar. O barulho não estimulava conversas. Nem cochilar era possível. Bancos duros cujo recosto era de tábua. Nem frio nem calor eu sentia, apenas o medo recolhido e a concentração no som dos motores.

De repente um susto. Foi muito rápido. Eu havia retirado a blusa que vestia sobre a camiseta do uniforme, uma camiseta Hering branca com a logomarca do Projeto Rondon em verde. Eu havia colocado a blusa no encosto do banco e subitamente ela foi sugada para fora pela fenda ou janela da aeronave. As janelas do avião eram minúsculas janelinhas redondas sem vidros. Pouco se avistava por aquelas janelinhas. Eu, depois do susto, fiquei pensando na blusa escapulida do avião. Teria caído em alguma aldeia indígena? Ou se rasgou na queda? Que pensariam os índios vendo uma blusa xadrez caindo do céu?

O avião fez uma escala em algum lugar que eu não me lembro mais. Ele ficou estacionado algumas horas com os motores desligados. Ninguém embarcou ou desembarcou. Alguns colegas jogavam cartas e outros comiam bolachas. Eu senti fome. Não tinha o que comer. Não preparei lanche para levar nem comprei bolachas. Trazia pouco dinheiro conseguido com as aulas particulares dadas ao filho de uma vizinha. Meus pais não me deram dinheiro. Devem ter pensado que os organizadores do Projeto Rondon supririam todos os gastos.

Os motores retornaram ao barulho e o avião retomou a viagem. Após algumas horas voando, um oficial avisou que desembarcaríamos em Barra do Garças para pernoite. Todos foram alojados numa guarnição militar. Foi servida uma sopa como refeição. As moças foram para um dormitório e para os rapazes indicaram uma sala com colchonetes.

Eu ainda sentia o ronco dos motores no ouvido. A sopa estava fria e rala. Eu senti saudades dos biscoitos de polvilho da casa do vovô. Eu gostaria de dormir, mas não conseguia conciliar o sono. Passei a noite pensando o que encontraria ao chegar ao meio da floresta.

Amanheceu. Reunidos no refeitório para o café da manhã, quando foram servidos uns bolos de milho, fomos informados de que o avião precisava reparos. Um oficial sugeriu que fizéssemos um passeio para conhecer uma fonte de águas quentes nas redondezas da guarnição.

Eu me sentia cansada e recusei acompanhar o grupo ao passeio. Voltei ao dormitório e dormi. Fui acordada pelas colegas que retornavam e as ouvi contar as maravilhas da tal fonte e quase me arrependi por não ter ido também.

Para o almoço serviram uma macarronada com acompanhamento de almôndegas, uma sobremesa que lembrava mingau de maisena com canela e um refresco de groselha. O oficial informou que ficaríamos por mais uma noite até o conserto do avião. Os tripulantes esperavam a chegada de uma peça ou outra aeronave para prosseguir viagem.

No dia seguinte após o almoço, preparado com arroz e carne seca, o avião foi liberado para voar. O medo voltou. O tempo ameaçava chuva. Eu mantinha aparente calma embora o estômago fizesse uma revolução.

Embarcamos. O avião subiu. Nuvens foram atravessadas. O avião sacolejava bastante e eu mantinha meus dois ouvidos colados na parede enlatada do avião, atentos a qualquer alteração no som dos motores. De vez em quando eu ouvia um barulho diferente e atribuía ao pânico. Distraia-me ao lembrar a blusa voadora e imaginava em que lugar ela poderia estar.

O oficial veio informar que o avião pousaria em Manaus dentro de meia hora. Eu senti um arrepio de alívio percorrendo meu corpo. Agradeci à Sorte por não estar chovendo. O avião pousou fazendo enorme barulho e sacolejando intensamente. Eu senti náuseas. As costas doíam com tamanha tensão.

O avião estacionou finalmente. Desembarcamos e fomos encaminhados para um caminhão militar. O grupo seria disperso e distribuído para suas diferentes localidades de trabalho. Então eu fiquei sabendo que o restante de nossa viagem seria feita por barco.

No trajeto até o caminhão eu ouvi a conversa entre dois oficiais sobre a pane do avião. Foi quando soube que parte da viagem fora feita sem um dos motores. Olhei para trás e ainda foi possível avistar ao longe o avião estacionado e silencioso. Ajeitei minha mochila nas costas e corri para alcançar e subir no caminhão.

No dia seguinte faria minha primeira viagem por barco, estava na Amazônia e subiria o Solimões. Voar só na volta, e não pensei mais no assunto.