A Vila de Sennome - I
A vila de Sennome era um lugar chato. Tedioso mesmo. Era um buraco cercado por montanhas altas e um bosque denso em que nada, absolutamente nada de interessante acontecia. Era tão grande a monotonia que o único coveiro da vila havia morrido por conta disso. Conta-se que o velho Jerome, o coveiro, estava bebendo uns tragos na Taberna do Abutre Perneta quando anunciou, solene como um padre aliviando-se numa latrina:
- Por Deus, esse tédio ainda vai me matar.
No dia seguinte, encontraram o pobre coitado frio como um picolé - ainda que não soubessem na vila de Sennome o que era um picolé, para se ver em que fim de mundo estavam. Na falta de quem enterrasse o coveiro, o prefeito da vila juntou todos na praça para que decidissem o que fazer com o pobre Jerome.
Sennome estava agitada. Era o primeiro grande acontecimento em dez anos. O último evento de grande porte da vila havia sido o enterro do prefeito anterior, Arthur Davis, que morrera de uma forma no mínimo curiosa.
Ao inspecionar um dos estábulos da vila, escorregou em cocô de cavalo e, na tentativa de se livrar da queda, acabou agarrando-se ao rabo de Cavalo Doido, que, como o próprio nome já dizia, era um cavalo doido, mas o melhor cavalo de arado de toda a região. Causa mortis: um fulminante coice na testa. A vila quase inteira compareceu ao enterro. Não que o prefeito Arthur Davis fosse um sujeito benquisto: quem comparecesse ao enterro poderia ir depois à Taberna do Abutre Perneta e provar de um delicioso cozido de cavalo com batatas e pão preto, prato até hoje lendário do exímio cozinheiro e contador de anedotas Xênon, único habitante da vila a não comparecer ao enterro.
Mas não estavam comentando sobre o enterro de Arthur Davis, ou do famoso cozido de cavalo de Xênon, muito menos da injustiça que havia sido a morte do pobre Cavalo Doido e de sua repercussão negativa na economia de Sennome com a sua morte saborosa. Na verdade, o que se comentava era algo completamente desinteressante e tedioso, tanto que nem vale a pena citar. Afinal de contas, o coveiro havia morrido de tédio. Isso ilustrava muito bem a situação crítica na qual se encontrava Sennome. Só quem lucrava alguma coisa com aquela situação, naquele momento, era o vendedor de espetinhos de queijo de coalho da vila, Sr. Caine.
O burburinho de vozes sussurrando e maxilares mastigando o delicioso espetinho do Sr. Caine cessou quando o prefeito, Paul Davis, filho do antigo prefeito, subiu no púlpito instalado em praça pública. Sua falta de semelhança com o pai era impressionante. Era parecidíssimo com a mãe, tanto em temperamento quanto em aparência - o que não era vantagem nenhuma, já que a mãe de Paul Davis, Margareth Davis, era mais conhecida como Megera Davis. Pigarreou (sem necessidade, pois não nada impedia sua garganta), ajeitou o coletinho cor de vinho no tronco miúdo e apontou seu nariz arrogante para a multidão. A expectativa deixava o ar pesado como chumbo, difícil até para respirar.
- Jerome, nosso amado coveiro, morreu na manhã de hoje - anunciou, solene, mostrando sua admirável capacidade de dizer o óbvio ululante. - Isso nos deixa em uma posição bastante delicada e que deixa algumas dúvidas. Vamos por partes. - Alguém na multidão achou a expressão engraçada e soltou uma risadinha. O prefeito fingiu não ouvir, ou simplesmente não ouviu mesmo. - O que vamos fazer com o corpo de nosso querido Jerome?
Silêncio. As pessoas entreolhavam-se sem nada dizer. Sr. Caine vendia mais um espetinho para um retardatário, sequer prestando atenção no motivo de toda aquela bagunça. O prefeito pigarreou de novo, novamente sem necessidade, como se quisesse reforçar a urgência de sua pergunta. Nada. Suspirou.
- Alguém tem alguma opinião a respeito?
Uma mão imediatamente brotou da multidão.
- Eu tenho, senhor prefeito!
- Então venha para cá e nos diga o que pensa - disse o prefeito, jamais abandonando seu púlpito.
Após alguns segundos de pedidos de licença e avanço difícil pela multidão, um jovem camponês parou entre o prefeito e a população da vila. Todos o olhavam ansiosos por ouvir.
- Ele poderia ser enterrado no cemitério, como todo mundo.
Um burburinho excitado fervilhou na multidão. O prefeito estreitou os olhos como se isso fosse deixar seu rosto mais inteligente e astuto, objetivo que não chegou nem perto de alcançar.
- Mas como faremos isso se o único coveiro da vila é, justamente, o defunto em questão?
O rapaz encolheu os ombros, resignado.
- Ora, eu posso fazer isso. Cavar uma sepultura não deve ser muito diferente de cavar um buraco de outro tipo.
A conversa na multidão intensificou-se. O prefeito levantou a mão direita num gesto que pedia silêncio. Nada. Precisou agitar os bracinhos magros por algum tempo antes que a conversa terminasse. Voltou a olhar para o jovem camponês.
- Mas somente um coveiro devidamente nomeado pelo prefeito tem permissão para enterrar uma pessoa. É a lei.
Sim, a lei era bem clara: somente um coveiro devidamente empossado pelo prefeito numa cerimônia pública podia enterrar alguém. O motivo disso era um tanto sinistro. Duzentos anos antes, um respeitável catedrático de Sennome - o único, na verdade - havia declarado que, após alguns experimentos complexos, carne humana em decomposição era melhor adubo do que excremento de gado. Foi um pandemônio. O catedrático foi expulso da vila e o prefeito instituiu uma lei específica sobre os cuidados com os mortos.
- Então, o senhor pode me nomear coveiro.
O prefeito Paul Davis já estava preparando-se para agitar novamente os bracinhos para pedir calma à população da vila, mas, impressionantemente, o silêncio se manteve. Estavam todos estupefatos pela sugestão do garoto, uma sugestão que, na verdade, nada tinha de tão impressionante assim. O prefeito coçou uma barba imaginária no queixo, que era liso como o bumbum de um recém-nascido, e sorriu de lado.
- Eu tive uma ideia. É, uma ideia excelente.
- Que ideia, senhor? - perguntou o rapaz, intrigado.
- Eu posso nomeá-lo coveiro. Isso certamente daria um destino digno ao pobre Jerome.
Os habitantes da vila olhavam-se com surpresa e concordavam com a cabeça, admirando a brilhante ideia do prefeito. O rapaz sentiu um ligeiro incômodo, como se alguma coisa estivesse fora do lugar, como se algo não estivesse certo, mas esse sentimento desapareceu num instante. Afinal, seria um funcionário público, coveiro da vila, com direito a todas as regalias do cargo, se é que ela realmente existissem.
- Venha, meu bom... bom... Qual é seu nome mesmo?
- Melvin, senhor prefeito - anunciou o rapaz, sorrindo.
- Então, venha cá, meu bom Melvin... Agora só precisamos... Vejamos... Você! - O sujeitinho que o prefeito apontara era franzino e bem alto e, se ficasse parado por tempo suficiente, e se fosse de noite, poderia facilmente ser confundido com um poste. - Vá até o cemitério e traga a pá de Jerome.
O grandalhão comprido que poderia se passar por poste de noite fez que sim com a cabeça e se afastou a passos largos - e, considerando o tamanho do sujeito, eram bem largos mesmo - rumo ao cemitério, que ficava a algumas centenas de metros dali. Voltou pouco tempo depois com a pá do coveiro em mãos. O objeto, que parecia uma miniatura em suas mãos, foi passado ao prefeito, que, por sua vez, parecia ele mesmo uma miniatura perto do grandalhão e da pá. Segurou aquele objeto com a familiaridade de alguém que nunca havia pegado numa pá em toda a vida e olhou para Melvin.
- Ajoelhe-se, meu caro Melvin.
Solene, o rapaz ajoelhou-se sobre a perna esquerda. Todos estavam em silêncio. Era um momento realmente importante, um marco na história da cidade. Afinal, Jerome fora coveiro por décadas, enterrara famílias inteiras. Substituí-lo não era somente uma grande honra, mas também uma responsabilidade séria. Nove em dez habitantes da vila de Sennome acham que o coveiro é a segunda pessoa mais importante da cidade, perdendo apenas para Xênon, o exímio cozinheiro dono da Taberna do Abutre Perneta. O prefeito ficava entre a décima segunda e a vigésima sétima. Aliás, falando no prefeito, ele ergueu com dificuldade a pá acima da cabeça do jovem ajoelhado diante de si. O objeto cambaleou ameaçadoramente como se fosse cair pesadamente sobre Melvin, o que daria trabalho duplo para quem quer que fosse ser nomeado coveiro da cidade. A pá abaixou-se trêmula até o ombro direito do rapaz, e, depois, ao esquerdo. O prefeito estava aparentemente fazendo um esforço enorme.
- Eu... Hunf.. Te... Hoof... Te nomeio... Cov-veiro... Hungrf... De Sennome.
Abaixou a pá ao chão com um “ufa!” e recostou-se nela. A multidão aplaudiu aquele momento solene. Melvin levantou-se, emocionado. Quarenta gerações de camponeses o precediam. Até conseguia imaginar seus antepassados chorando no Além-Túmulo, orgulhosos em ver alguém da família se tornando alguém importante em Sennome.
- Muito bem, aqui está sua pá - disse o prefeito, entregando o objeto ao novo coveiro da cidade. - Lembre-se do legado deixado por Jerome e faça jus a ele. Pode ir.
Melvin, com a pá junto ao peito, voltou para seu lugar. Congratularam-no pela nomeação, seus amigos gabaram-se com os vizinhos, "viram, agora tenho um amigo coveiro!", e Sr. Caine vendeu mais um espetinho. Vender petiscos em cerimônias públicas era um negócio promissor, realmente bem lucrativo. Talvez encomendasse algumas daquelas ao prefeito para esquentar o comércio de espetinhos.
- Bom, agora nós já temos um coveiro devidamente empossado em seu cargo de acordo com as leis de Sennome. Agora, nós... O que foi?
Se havia uma coisa que o prefeito Paul Davis detestava, abominava, execrava com todas as suas forças era ser interrompido. Quem poderia ter algo mais importante a dizer do que ele, afinal de contas?
- Senhor prefeito, vai ter comida hoje também?
- Como é?!
- É... - o tom ansioso da voz foi substituído por um tonzinho tímido, como quem sabe que falou alguma besteira. Se fosse um cachorro latindo, e não uma pessoa falando, dava perfeitamente para imaginar o rabo do animal abrigando-se na segurança das patas traseiras. - É que, quando o prefeito Arthur, seu pai, morreu, Xênon fez aquele cozido delicioso e...
- E como você acha que poderíamos fazer um cozido com o tédio, meu bom concidadão?
A vozinha não voltou a soar, não por falta de tentativa, mas porque um novo burburinho começou a rondar pela multidão. Duas coisas cruciais dizia-se: primeiro, como o tédio conseguira matar alguém se era, até bem pouco tempo, apenas uma palavrinha usada para definir aquele estado peculiar em que a gente se sente tão animado quanto um osso de costela de javali depois do banquete?, e segundo, como é que Xênon não consegue fazer um cozido disso, já que suas habilidades gastronômicas desafiam os próprios fundamentos da existência?
- Isso mesmo, prezados habitantes de Sennome, o que matou nosso querido e saudoso e lendário Jerome foi o tédio. E o tédio é o objeto de nosso segundo problema: como vamos fazer para que o tédio desapareça. Não podemos nos dar o luxo de enterrar gente que não morreu de doença nenhuma. Isso criaria uma crise em nosso estupendo sistema público de saúde. Além disso, o que as outras vilas dirão sobre nós?
Convém aqui esclarecer algumas coisas antes de continuarmos esse relato.
De fato, o sistema de saúde na pequena vila de Sennome era realmente excepcional. Havia apenas um único médico na vila, Dr. Hemus, que tratava todos os males com um estranho elixir de gosto mais estranho ainda que obtinha através de métodos estranhíssimos. Ninguém sabia, mas o Dr. Hemus não era médico, e seu elixir estranhosamente milagroso era obtido através de um processo confuso que envolvia a primeira lua minguante do mês, urina de vaca e uma espécie bem estranha de mandrágora - que não era mandrágora, mas um tipo realmente estranho de batata-doce. Estranhamente, todos que tomavam o elixir viam-se curados de suas enfermidades. Apesar de o motivo para a eficácia da bebida ser um verdadeiro mistério, era bem verdade que absolutamente ninguém dava a mínima atenção para isso.
Outro ponto a se esclarecer é a questão das outras vilas. Por enquanto, convém não se falar delas, já que ainda não interessam para esse relato. Basta dizer que, de todas as vilas das redondezas, não há nenhuma que seja mais desinteressante que Sennome. A preocupação do prefeito com a reputação do lugarejo não passa, na verdade, de um delírio inofensivo uma vez que Sennome não possui reputação alguma naquelas paragens.
- Precisamos de alguém que parta em busca de uma cura para esse tédio. Precisamos de alguém ousado e intrépido o suficiente para singrar esses rincões esquecidos em busca de alguma coisa, qualquer coisa, esmague esse aterrador inimigo invisível.
Muitas cabeças na multidão, inclusive a do Sr. Caine, balançaram positivamente, concordando com as palavras do prefeito. Não que soubessem o que era "intrépido", "singrar", "rincões" ou "aterrador", mas, pelo modo como o líder de Sennome dizia, pareciam ser coisas sérias e necessárias.
- Alguém se candidata? - perguntou Paul Davis, esperançoso.
Silêncio. Silêncio sepulcral. O som, assim como Jerome, pareceu subitamente também ter morrido. Todos se entreolharam. Não se lembravam de alguém que tivesse saído de Sennome nos últimos anos. Na verdade, ninguém havia saído de Sennome nos últimos anos, nem nos primeiros, muito menos nos do meio - não por livre e espontânea vontade, pelo menos.
O brilho de esperança nos olhinhos escuros do prefeito da vila foram, lentamente, tornando-se opacos de um desespero sólido e tranquilo. Estavam perdidos. Estavam definitivamente, positivamente, absolutamente perdidos. E enquanto o prefeito se ensimesmava e se corroia em sua autopiedade, o xerife da cidade, até então incógnito e desconhecido, pigarreou. Isso não foi suficiente para tirar o prefeito de seu estado quase catatônico. Talvez as imagens da vila queimando, da torre da igreja caindo e de rebanhos loucos atropelando seus donos em sua fuga desesperada fossem simplesmente mais fortes do que o som de uma garganta da lei ficando livre do catarro. Foi por isso que o xerife deu um passo adiante e cutucou o prefeito no ombro. Paul estremeceu e olhou-o, voltando a si:
- Fogo, Dieter!
- Hm?
- Ahn... Er... Nada. Pois não?
- Bom, senhor prefeito, eu tive uma ideia.
- Uma ideia? Ótimo. Melhor uma ideia do que a morte.
O xerife Dieter Priest III, filho de Dieter Priest II, neto de Dieter Priest I, décimo sexto do clã Priest a ocupar o posto de baluarte da lei na cidade e, para todos os efeitos, terceira pessoa mais importante da vila de Sennome - perdendo apenas, como já dito, para Xênon e o coveiro -, ignorou com sucesso o olhar meio vidrado, quase lunático, que o prefeito punha sobre sua pessoa enquanto esperava para ouvir sua ideia.
- Eu sei quem poderia sair em busca de um remédio definitivo para esse tédio perigoso que está à espreita - murmurou o xerife, um tom confiante e confidente na voz poderosa.
- Ah, é? - O prefeito sorriu, e, de alguma maneira, aquele sorriso não agradou Dieter. Era evidente que o pobre coitado que governava aquele pequeno e desinteressante pedaço de lugar nenhum estava passando por muita pressão. - Quem, meu bom Dieter? Quem poderia ser nosso paladino, nosso salvador, e livrar nossa querida Sennome dessa ameaça invisível e mortal?
Pausa dramática. Todos estavam atentos ao xerife. Todos mesmo - o prefeito, a plateia (inclusive o Sr. Caine, que, esquecendo-se da churrasqueira onde preparava seus espetinhos, deixava a brasa esfriar), os passarinhos, o cachorro que vivia na praça e que se chamava Tilo - esperavam para ouvir as palavras do xerife. Seu sorriso misterioso só serviu para aumentar a tensão de expectativa.
- O ruivo.
Uma senhora particularmente histérica, com uma voz particularmente irritante e os nervos particularmente fracos, soltou um grito de horror e desmaiou, caindo estatelada no chão por não ter sido amparada por ninguém. Muitos olhavam com olhar aterrorizado para o xerife, inclusive o grandalhão que buscara a pá para a cerimônia de posse do novo coveiro. O prefeito arregalara os olhos ao ouvir aquela sugestão.
- Você... Você quer dizer... O... Ele... O...
- É - confirmou o xerife. - Ele mesmo.
O tal ruivo ao qual Dieter Priest III havia se referido era Ian Alexander, vulgo Ian, vulgo Alexander, vulgo Ruivo, vulgo Encarnação da Besta do Fim dos Tempos de Cabelos Cor de Fogo (esse codinome particularmente criativo era obra do líder espiritual do lugarejo, Reverendo Joseph, a quarta pessoa mais importante de Sennome), o criminoso mais temido de toda a região. Na verdade, era o único criminoso conhecido da região, e, portanto, o único hóspede da casa de detenção da vila.
- Pense comigo, prefeito - começou Dieter, sorrindo de lado -, pense comigo: ele vai dar tudo de si para encontrar algo que livre a cidade desse terror invisível chamado monotonia.
- Tédio, Dieter, tédio.
- Que seja, senhor prefeito. Ele não vai querer voltar para a cadeia. É do maior interesse dele que encontre algo para acabar com o tédio de Sennome. Além do mais, ele é o candidato perfeito: é cara-de-pau, falastrão e malandro, coisas que, na minha opinião, são essenciais para alguém sobreviver nesse mundo desconhecido que há além das montanhas e do bosque.
O ar de estupefação do prefeito, que acentuava o aspecto de fuinha que tinha sua cara, logo transformou-se em um ar ligeiramente malicioso, o que não adiantou de nada para suavizar o aspecto de fuinha que tinha sua cara.
- É... É...! É isso! Será ele, então! Vamos ao... Quem é você?!
A interjeição abrupta do prefeito Paul Davis surgiu assim, do nada, atrapalhando sua empolgação com a estupenda ideia que acabara de ter, ao ver uma figura bastante enlameada parada diante do púlpito.
- Sou eu, senhor prefeito.
- Eu quem?
- Melvin.
- Melvin? Que Melvin?
- O coveiro, senhor prefeito.
- Ah, sim... Claro que eu sabia que era você, meu bom Melvin, claro que sim. Só queria, você sabe, saber se você sabia se você era você mesmo. Só para esclarecer as coisas um pouco.
O xerife reprimiu elegantemente um risinho de desdém, a plateia sorriu orgulhosa da sagacidade de seu prefeito, o recém-empossado coveiro Melvin não entendeu nada e o Sr. Caine recolheu suas coisas e se mandou para casa à francesa, pois o carvão já havia esfriado e seu embornal estava cheio de dinheiro. Realmente, reuniões públicas deviam ser adotadas pela prefeitura como medida oficial de aquecimento da economia local, sobretudo da venda de petiscos.
- A cova de Jerome já está preparada, senhor prefeito.
- Ah, sim, excelente. Então, vamos andar logo com isso. Nosso amantíssimo Jerome - Deus o tenha em bom lugar - precisa ser enterrado com dignidade.
Coube à esposa de Xênon, Elisabeth - que, por coincidência, era sobrinha do Reverendo Joseph, o que fazia de si mesma a quinta pessoa mais importante de Sennome -, preparar o corpo do já muito citado Jerome, o maior coveiro da história da vila. Após a cerimônia, que contou com um bom número de habitantes (todos na esperança de que fosse servida ao menos uma sopinha depois do serviço fúnebre) e com uma pregação particularmente emocionada do reverendo local, as coisas começaram a voltar a ser como antes.
Os frequentadores assíduos da Taberna do Abutre Perneta foram para lá (incluindo o grandalhão que poderia passar por poste se ficasse parado por tempo suficiente se fosse noite), apesar do aviso de Xênon informando que não haveria sequer uma costelinha assada de leitão de graça por conta do falecimento do antigo coveiro.
As velhinhas carolas foram para a casa da velhinha que caíra estatelada no chão ao ouvir menção sobre o criminoso Ian, onde dividiriam suas horas finais do dia desfiando orações bastante chatas e mexericos sobre a vida alheia.
O xerife Dieter Priest III voltou para o conforto de seu lar, onde, após uma refeição saborosa, leve e nutritiva e um banho reconfortante, passou boa parte da madrugada providenciando um Dieter Priest IV.
O novo coveiro, Melvin, depois de garantir que sob toda aquela lama era ele mesmo quem falava, avisou sua família da sorte que havia tido em se tornar coveiro, recolheu suas coisas, mudou-se para a casa que pertencera ao velho coveiro, Jerome, que ficava nos fundos do cemitério da vila, e ali, deitado na cama que fora do defunto, perguntou-se se aquela sorte toda envolvia os barulhos estranhos e amedrontadores que povoavam o campo santo de noite ou se os tais barulhos eram apenas fruto de sua mente jovem e impressionável.
O prefeito Paul Davis pensou. Deixou a mulher reclamando à mesa da vida, do tempo e do faisão assado que ela mesma preparara – e que, era verdade, estava com um gosto inenarravelmente horrível – e, refugiando-se em sua pequena biblioteca e no fumo com gosto de amêndoas que queimava em seu cachimbo, pensou. Em que, exatamente, era um mistério. As mentes dos políticos costumam ser territórios desconhecidos. Simplesmente pensou. E foi assim, pensando, que sorriu um sorriso seguro e convicto ainda mais misterioso do que os pensamentos que ocupavam sua cachola. Era uma sensação de segurança muito boa de que tudo, no final, ia dar certo. Ou, então, o fumo com gosto de amêndoas que queimava no fornilho de seu cachimbo não era o fumo com gosto de amêndoas tradicional, mas aquele que, depois de um tempo, deixava tudo sempre lindo e tranquilo.
Quanto a Ian Alexander, o ruivo, o criminoso, a última esperança de Sennome, roncou e babou em sua cela madrugada adentro até a manhã seguinte, alheio à trama perigosa e inesquecível na qual o haviam metido.