Dia de festa
O som é alto, infernal, o ar é usado e quente, as luzes fazem o possível para te deixar fora de si, o que é servido - licita ou ilicitamente - também. É festa, o céu está lindo e limpo, e a lua está cheia como um deus a nos olhar. Deus deve rir de nós, nada aqui é confortável ou agradável, mas todos querem estar aqui. Deus ri da hipocrisia de sua criação que entra em êxtase com sua face desesperada. A música é medíocre, todos concordam, dançar é vergonhoso, mas parece engraçado assumir isso, a bebida é quente quando devia ser fria, e fria quando devia ser quente, não há nada que faça alguém estar ali, exceto o desespero.
O desespero de homens e mulheres atrás de uma atração sexual e animal por outros homens e mulheres. Meu desespero é diferente, mas não vou mentir, estou aqui pela mesma coisa que os outros. Só que também estou aqui pelos meus amigos, não estar aqui, por sincero que seja é chato, é ser o chato. Não gostar de festa é não gostar de alegria, mesmo que nada ali seja alegre, é tudo apenas embriagante, e parece alegria. Eu sinto como se eles não soubessem achar a alegria, e por isso se embriagam para parecerem felizes, se sentirem felizes, mas isso não é felicidade. Eu não sei o que é felicidade, mas isso é um vício qualquer, o prazer de uma boa tragada de maconha, é o mesmo das luzes piscantes e do som alto; são fugas, teatros, covardias. É tão difícil tirar as cortinas e ver que o teatro é que interessa, os jogos de olhares entre seres que jamais se verão.
Como todo o sábado à noite eu estava lá, confesso, eu queria estar lá, mas odiava isso. Aquele sábado, porém, me reservara algo diferente. Duas meninas se aproximaram de mim, quando meus amigos estavam longe. Uma bela menina de cabelos longos e negros, parecia mais tímida e séria, com um pouco de tensão na cara; a outra era uma loirinha de cabelos lisos curtos e tingidos, belos seios e uma cara um tanto levada. Elas me vieram fazer um convite, uma outra menina, que estava com elas, havia se interessado em mim. Duas coisas me preocuparam, primeiro foi o sadismo na cara da menina loira, e segundo, foi elas parecerem jovens demais. Teoricamente elas não deveriam ter entrado aqui, mas elas não seriam nem as primeiras nem as últimas a fazer isso. Fui desconfiado ver o quem seria, torcendo para ser a irmã mais velha de alguma delas. Não era.
O sadismo da loira havia se convertido em uma expectativa que eu não queria cumprir, e o nervosismo da outra não poderia ser atendido igualmente. Vi uma menina de cabelos negros visivelmente ondulados e mal arrumados, presos a uma presilha velha e enferrujada, e um rabo de cavalo que parecia uma vassoura. As sobrancelhas eram grandes e volumosas, mas ainda não eram uma só. O rosto era cheio de espinhas, e sem maquiagem alguma, não tinha um rosto feio, mas era quase impossível ver a beleza ali. O corpo tinha formas até abundantes, ela era uma menina bem cheia, gordinha para alguns anoréticos, mas não era gorda, definitivamente. Aposto que ela tinha belos seios, mas a camisa pólo, listrada horizontalmente em rosa e branco era um ou dois números maior que ela, provavelmente era da mãe ou de uma irmã mais velha. A calça também deveria estar colada, mas era folgada, e com barra feita para não pegar no chão. O tênis, por coincidência ou não era o mesmo que o meu, números menor. Ela era baixa, mas, todas as cinco eram assim, eu arriscaria dizer que tenho no mínimo uma década a mais de vida que cada uma delas, e, talvez, tenha a idade de duas delas somadas. Sei que estavam na pior fase de suas vidas, dos dez aos treze anos. Podiam até parecer mulheres, mas eram crianças.
Minha missão estava clara, e era algo que eu sempre abominei fazer, ser o meu próprio vilão. Eu não podia relacionar-me com aquela menina, mesmo que por uma noite, mas não podia partir o coração daquela menina, e não que ela gostasse verdadeiramente de mim, mas, estava nos olhos da menina loira que ela seria humilhada. Era óbvio que não é dela a culpa, ela não deveria estar ali, e não estou defendendo a polícia. As duas meninas disseram-me, então, a proposta. Posso jurar que até a música parou naqueles momentos, eu estava perdido, e podia sentir os olhos da menina já se enchendo d’água, mesmo estando ela olhando para o chão sem coragem de olhar-me nos olhos. Tudo o que eu não podia pedir a ela era coragem, pois eu não tinha coragem de jogar um corpo aos urubus, muito menos um de criança. Eu nem sabia o que fazer exatamente, até cogitei a hipótese de beijá-la, mas eu resolvi ganhar tempo, e poder pensar melhor em como fazer o infactível. Pedi para conversar com ela, e escolhi um canto silencioso e longe, no estacionamento. Sugeri que sabia que elas ficariam olhando para saber o que aconteceria, e eu realmente queria isso, não queria dar margem a interpretações.
Eu podia ver o sorriso esperançoso da menina de cabelos negros, e podia ver a esperança ainda sádica nos olhos da loira. A pequena menina que me fora oferecida estava sentada no capô de um carro, branca como um fantasma, ofegante, e ainda olhava para o chão covardemente. Mas eu também era covarde, fazia alguns minutos que caminhei com ela, e outro que estávamos parados, e eu só dei indicações do caminho.
-Você poderia me olhar nos olhos? – então ela olhou, mas queria desviar o olhar, estava fazendo força para não olhar para o chão.
-Seus olhos cor de mel são bonitos, fica mais bonita que olhando para o chão.
-O-o-obrigada – disse ela rubra, e gaguejando. Eu juro ter visto um sorriso, mas se existiu ele se esvaiu tão rápido que não pude vê-lo.
-Quantos anos você tem, menina?
-16 – cuspiu ela nervosamente.
-Qual o seu nome?
-Eva– disse ela desviando o olhar.
-E quantos anos você tem, Eva?
-16, eu disse. – ela olhou para os próprios pés, e pareceu tremer.
-Por favor, Pam, quantos? – eu tentei ser tenro, ela já se pressionava demais.
-Tre-treze. – gaguejou ela, mexendo os pés timidamente, mas era encantador.
-Porque você está aqui, Pam?
-Para me divertir.
-E está se divertindo? – Eu não sabia bem para onde ir com a conversa, mas primeiro queria que ela parasse de olhar para o chão.
-Mais ou menos.
-Isso quer dizer não, não é?
-Mas é divertido ver os homens e falar mal das outras garotas. – Ela levantou a cabeça sem eu pedir pela primeira vez, isso era bom.
-Falando em meninos, já beijou algum?
-Sim, mas, só uma vez na...
-Não, você não beijou. – Ela abaixou a cabeça e nem pode tentar me contradizer, eu fiquei com pena dela.
-Me-me desculpe. – pediu ela, perdendo a mínima confiança que eu tinha conseguido dar a ela.
-Vocês não deveriam estar aqui, vocês são crianças.Vocês sabem nada sobre o que está acontecendo aqui, nem os desejos e riscos que estão se expondo. Isso aqui não é lugar de crianças.
-Você parece meu pai falando. – Ela estava menos trêmula, e eu considerei isso um tanto corajoso da parte dela.
-Talvez ele tenha razão.
-Você não vai ficar comigo, né? – disse ela já saindo de lado, eu tive de segurá-la pelo braço.
-Não é isso, eu não posso ficar com você, você é uma criança.
-Eu estou aqui, eu posso fazer isso. – Ela levantou a cabeça e me olhou nos olhos, quase me amedrontou tamanho o ímpeto dela.
-Eu não posso.
-Faria isso se eu fosse bonita. – disse ela com lágrimas nos olhos.
-Não diga besteiras, Eva. – tentei ser suave e convincente.
-Mas todas as minhas amigas já ficaram.
-Este é o primeiro problema, aos treze anos não sabemos o que fazer de nós mesmos, e acabando seguindo um modelo qualquer, uma amiga mais puta por exemplo.
-Então tenho de ser uma fracassada.
-Você não tem de ser aquela menina loira, só isso.
-Mas estou aqui porque eu quero, não é por elas.
-Você ficou o tempo todo de cabeça baixa, tímida, acuada, nervosa, você estava com medo, como poderia gostar de estar aqui?
-Se você tivesse me deixado à vontade, tivesse me beijado, eu talvez perdesse a covardia. – Tímida e acuada, ela ainda tinha personalidade para jogar algumas coisas na minha cara.
-Me desculpe, mas eu não posso ficar com você.
-Se todas outras conseguem, menos eu, é óbvio que é porque eu sou feia e desengonçada. – ela tentou ir embora de novo, e eu a segurei mais uma vez.
-Eu já tive treze anos, sabia?
-Sim, e..?
-Eu era parecido com você. – parei um pouco para respirar, e ganhar a atenção definitiva dela.
-Meus amigos também ficavam, e eu não conseguia, eu também era o nerd. E sinceramente, não preciso me identificar contigo pra saber que a menina loira está louca para te maltratar, te humilhar.
-E daí?
-Daí que eu não quero que isso aconteça.
-Faça, então.
-Você anda com uma menina que te maltrata.
-Ela é legal.
-Não, é porque você quer provar pra ela que você também pode ficar, é isso que tu quer aqui, não sabe nada do que está acontecendo aqui, só quer parecer como elas.
-Eu não quero ser um fracasso.
-Você é um fracasso por ser melhor que ela?
-Parece meu pai falando.
-Você vai se arrepender disso um dia, por ter tentado ser uma idiota. Ou vai me dizer que não acha ela idiota?
-Mas ela fica com meninos.
-Vocês não sabem o que é isso, só estão brincando de bonecas com casinhas grandes.
-Ela fica com meninos porque ela é bonita, e eu não fico porque sou um fracasso, e você ainda está aqui porque tem pena de mim. – ela não tinha ouvido minha última frase, continuou dizendo como que fora de si aquelas palavras.
-Eu não posso te convencer, você tem treze anos, está muito burra e cabeça dura.
-Não pode me enganar. – Ela olhava para o chão, e tremia os pés.
-Não estou te enganando. Eu juro.
-Posso transar, se o problema for esse. – Disse ela rubra, mas corajosa, isso devia estar sendo muito difícil pra ela.
-Este é o problema, você não sabe nem o que está fazendo aqui, nem o que você quer fazer, nem quem você é.
-Você tem pena de mim, e me acha feia, e não quer admitir isso. – Ela estava a ponto de chorar.
-Eu só consigo causar pena, não é? – disse ela com um única lágrima escorrendo.
-Está se sentindo culpado por isso, não está? – agora quem não queria encarar o olhos dela era eu.
-Não faça isso, por favor.
-Não tem coragem de me dar um fora, mas não quer ficar com uma menina feia e fica procurando desculpas. – Disse ela com uma voz psicoticamente calma.
-Eu não vou destruir uma menina.
-Você já destruiu.
-Pode ir agora, não há nada mais que eu possa falar, terá de se arrepender. Aos trezes ninguém vê o óbvio. – Eu disse e fiquei esperando que ela fosse embora, mas ela não foi, estava trêmula e branca. Trocamos alguns minutos de olhares silenciosos, e ela então se virou, de punhos cerrados, e foi-se embora, mas eu a chamei, com um sussurro.
-Eva.
-O que foi agora?
-Você não quer dar o primeiro beijo? – ela voltou a passos rápidos, parou na minha frente, e me olhou nos olhos com um enorme sorriso, um sorriso nervoso e ansioso, mas era um sorriso. Ela abriu a boca na diagonal, e até que beijou bem, mesmo com a língua perdida em minha boca. Ela ficou lá até perder o fôlego, e não queria sair de lá. Saindo, ainda ofegante, me perguntou:
-Porque isso agora?
-Eu já tinha beijado quando tinha a sua idade. – Ela ficou me olhando, esperando mais, até olhou pra minha mão, para ver o que eu faria dela.
-Agora vá embora, eu ainda não quero ficar com você, e você ainda vai ser maltratada.
-Por quê? – disse ela procurando as amigas, e descobrindo.
-Porque os seguranças estão expulsando elas da festa. E elas não vão acreditar em você.
-Obrigada.
-De me odiar mortalmente, a ter sonhos românticos comigo, mudou tão rápido e por absolutamente nada.
-Eu tenho treze anos – disse ela com um angelical sorriso.
-Por isso tu vai se descobrir idiota depois. – E ela foi embora. Enquanto isso um amigo se aproximava com uma chave de carro e um pedido. Ele tinha conseguido pegar a ex-namorada que o chifrava, estavam reatando nesta noite, se encontraram na festa e não resistiram, mesmo tendo se jurado de morte na manhã de ontem. Ele queria que eu dirigisse até o motel porque eu estava sóbrio. Bom, alguns crescem tendo treze anos.