DOS CONTOS DO VILAREJ-"AS REVELAÇÕES DE jORDÃO"
Com o desaparecimento de Jordão, Letícia passou a disputar o amor de Anastácio, para desespero de Regina sua companheira e uma convivência de mais de trinta anos. Regina sofria de astenia (fraqueza orgânica), ausentando-se da fazenda por algum tempo na procura de solução para seu sofrimento, não sem antes praguejar e ameaçar “com quantos paus se faz uma canoa” e prever o fim de Letícia no ponto alto de sua felicidade com Anastácio, que também aproveitava os reais momentos de sua vida propiciados pela ausência de Regina. Sua felicidade poderia ser mais completa se o acaso não lhes batesse à porta do destino. Aconteceu que no casamento do filho de Reinaldo, Letícia ao comparecer teve um distúrbio de saúde, sofrendo um desmaio que levou-a a uma prostração repentina, sendo encaminhada para casa e a partir desse momento, seu estado de saúde denegriu esmaecendo dia-a-dia. Sentia demência no corpo, fisgadas, tiques permanentes e em toda extremidade dos pés, alfinetadas estonteantes, acompanhadas de constantes desmaios; sua barriga tornou-se volumosa e fofa. - Você está com malefício - disse Soraia, e só pode ser a peste da Regina pra se ver livre; dirigindo-se a Otávio falou: - “Você precisa buscar Oriel no Garanhão ou a mãe morrerá. Otávio não aceitou ir mas mandou um mensageiro, que uma semana após, voltou na companhia de Oriel, grande autoridade espírita daquelas redondezas: era mandingueiro e amigo de Zoraia, que sempre recorria aos seus préstimos quando precisava. Na mesma noite da chegada de Oriel, com a presença de Zoraia e outras suas admiradoras compactuantes dos seus costumes, reuniram-se em sessão no quarto onde Letícia estava acamada. Oriel invocou os espíritos dos bruxos e como conseqüência extrtaiu de Letícia imensos rolos de cabelo, moedas e tiras de pano, expostos para quem duvidasse daquela ocorrência naquela noite. Na única receita deixada por Oriel estava escrito: “Banho com sal grosso, folhas de manjericão, defumação no quarto com folhas de eucalipto e no corpo com baforadas de fumo de rolo.” Curiosamente, Letícia sentiu-se aliviada, desaparecendo as dores, acabando o inchaço na barriga e as alfinetadas nos pés, pelo menos durante três meses nenhuma anomalia que transtornasse a sua postura física ao se mover ou se alimentar. Passada a bonança veio o temporal; disse Letícia: - “ Esta noite vi Jordão em sonho pedindo missa e pagamento de uma promessa no Carindé – os filhos não deram muita atenção às delongas da mãe, mas, eis, que nas noites subseqüentes começou-se a perceber um total descontrole nos gestos, na voz, na maneira de andar e atravessava a noite em fio, sem dormir se quer, um minuto, passeando dentro do quarto em passadas largas e firmes. Seu timbre ficou desconformemente rouco e grave, como se tivesse encarnando o espírito de Jordão. Falava mil coisas, porém ninguém conhecia o teor ou significado; eram palavras enroladas, como se quisesse declarar algo de suas pretensões ou que estivesse falando por outra voz. Otávio entrou no quarto e inquiriu: “Quem é que pode mais do que Deus?” – Continuando a caminhada pelo quarto – nada de resposta. Ele fez a mesma perguntas por mais três vezes, sem obter resposta.
Temerosos do poder de Deus e do poder do demônio – ao mesmo tempo em que procuravam o padre, também solicitavam a ajuda dos feiticeiros e espíritas; assim era o comportamento da inusitada família: religiosa, supersticiosa, de pensamentos e costumes primitivos. A pedido do espírito que encarnava Letícia, armaram um altar no quarto e cada filho rezava uma novena, isto, durante nove dias, encabeçando a lista, Otávio que foi o primeiro. No último dia da novena, como Letícia não desse uma palavra, novamente Otávio proclamou a invocação: “ Quem pode mais do que Deus?” – “Ninguém” para espanto de todos! Jogando-se ao chão com olhos arregalados e endurecidos, neste momento iniciou uma série de revelações com respeito a seus filhos e sua mulher. No quarto encontravam-se: Otávio, Zelma, Zilca, Zoraia, Zefa, Zara e Zilá e ainda as presenças de Anastácio, Leopoldo – filho de Eufrásia; Raimundo – o politiqueiro e irmão de “Domingos”; Zelfo – filho de Anastácio; e Ramiro -irmão de Zelfo. Jordão fez a seguinte revelação: - “Minha alma vagueia no espaço, à beira do abismo; preste à condenação onde os mortos se contorcem e urros de animais bailam nas labaredas verdes
de belzebu! A esperança é frágil, mas a penitência, a morte do pecado e as orações podem ajudar na complacência dos mortais. Temo pelos meus e os seus pecados; pelo que foram, são e serão!” - Ás feições extasiadas de todos, continuou Jordão: - “Por causa da traição de Zara, Rufino foi santificado entre os mortos; o filho de Zara é filho de Anastácio, não de Rufino! Zelfo é filho de Otávio com Regina! Leopoldo é filho de Jordão com Eufrásia! Zelma e Zoraia foram desvirginadas por Jordão! Zilca é filha de Letícia com Raimundo, que também desvirginou Zilá.”
Até então, esses acontecimentos se mantiveram silenciosamente trancados em cofre de sete chaves; agora, causaram incômodo aos ouvintes que se encontravam em volta da rede no centro do quarto, com Letícia e suas revelações desconcertantes. Anastácio enfurecido retirou-se antes de tudo terminar, retornando em seguida armado com um rifle, que sem ver pra quê entrou atirando no quarto de Letícia que continuava em estado de morta, sem parar de falar, cada vez mais envolvendo seus filhos com os moradores da fazenda e do Vilarejo. Letícia foi atingida na testa, enquanto Anastácio saiu em perseguição a Otávio que presenciando o perigo fugira; não seria esta a primeira vez, pois já o fizera antes quando desvirginou sua irmã Zilca. Com a morte de Letícia veio também à tona o relacionamento amoroso de Zelma com o padre João – primo de “Domingos” de quem teria tido um filho epilético de nome “Rúbens”, criado com os amigos de Zoraia no Garanhão, retornando ao Vilarejo como sobrinho de Zelma. Conta-se a respeito de Rúbens que este vira lobisomem nas noites de primeira sexta-feira de cada mês.. Anastácio logo após atirar em Letícia, enforcou-se ao ser enfrentado por Zelfo que o ameaçou de morte. Letícia foi sepultada por Raimundo, transportada para o cemitério sem a presença de seus filhos que a abandonaram no meio da confusão e desentendimento geral entre os irmãos e os demais que ignoravam pertencer a família.
Assim baixou o corpo de Letícia, com certeza, esperada por Jordão nas profundezas da outra vida imortal.