MARIDO E MULHER

Naquela semana, fizeram um pacto de paz. Haviam brigado feio por três vezes nos últimos dias. Num dos conflitos, o marido chegou a empurrar a mulher contra a parede. Ela lhe apontou o dedo, afirmando que da próxima vez que ele lhe tocasse a mão, seria um homem morto. A verdade é que o marido já se sentia um homem morto há muito tempo. De seis anos de casado, passou os últimos dois sentindo-se um defunto ambulante. Vivia envolto numa solidão de tudo e, sobretudo, de si mesmo. Estava sempre ausente. Essa foi a fórmula que o marido escolheu para dar à sua vida, ao menos, uma máscara, que pudesse ocultar o quão cadavérica estava a sua alma. Na sua alma os fungos do desânimo haviam fincado barraca. O pior, é que tinham o seu apoio, pelo menos, timidamente.

Para a mulher, havia um vazio que nunca fora preenchido. Nem ao menos existiu um esboço, uma frágil tentativa disso. A mulher casou-se para fugir da tristeza e da atmosfera doente da casa dos pais. O pai, um alcoólatra, mal-educado e preconceituoso. Batia nela. A mãe, sem personalidade. Vivia como uma escrava. Por conta própria se acorrentou ao marido e à vida medíocre que levava. A mulher, quando criança, sempre teve um único sonho: casar-se com um príncipe encantado, que lhe tirasse daquela prisão. O marido, então com 25 anos, cumpriu direitinho o papel de príncipe. Só que com o passar do tempo, sua alteza foi perdendo a classe, até tornar-se aos olhos da mulher no plebeu que sempre fora.

Naquela semana, resolveram agir como dois adultos. O marido fumou como nunca. A mulher esteve com a cabeça latejando e as mãos trêmulas. Pensou até em abandonar tudo e tentar nova vida. Mas havia um filho, que dormia como se a existência fosse um berço e o seu mundo coubesse dentro daquele barraco. Ainda não podia compreender que a lei que regia o relacionamento de seus pais era ele e não o tão propagado amor. Para o bebê, ainda não havia Hollywood e suas incríveis histórias de amor, que era posto à prova, mas que terminava com um puto final feliz. Certamente, o bebê sonhava por horas com uma hollywood doméstica. Seu único sonho seria esse, além do leite na hora certa.

-Não podemos continuar assim.

-Assim como? Como quer que continue?

O marido cuspiu.

-Não cospe aí não, troço!

-Aí, já vem você com suas ordens, droga!

A mulher engoliu. Ele calou-se e saiu da cozinha. Lá fora, estava segura do monstro que se tornara seu casamento. A mulher nada mais era do que um monstro odioso e obeso, que vivia dando ordens e brigando por causa de qualquer coisa. Seu mundo esteve seguro por anos nesse monstro. Agora, ele sentia que havia um abalo muito grande. Seu mundo ameaçava desabar e, ele parecia, como um masoquista, sorrir satisfeito, tal qual Sansão, quando derrubou com forças extras as colunas do templo filisteu, matando a todos, inclusive a si. A felicidade do marido era a mesma de Sansão. Mas sua Dalila tinha de estar junto no desmonoramento final.

Era sempre fiel. Mas sentia-se o maior dos traidores. Traíra seus sonhos, suas ambições, seu destino. Havia um Judas dentro dele querendo sair para se enforcar. Nunca desconfiou da mulher. Aliás, para ele, isso era completamente indiferente. Ela que traísse, que pintasse e bordasse, que fosse para o diabo. Ou não fosse. E dava na mesma.

           

Havia três semanas que não a tocava. Não sentia desejo algum de chegar perto daquele corpo. Para ele, havia muros entre o seu desejo por mulher e o seu desejo da sua mulher. Só de se imaginar compartilhando sua tesão com ela, sentia calafrios. Mas, ele percebia que no fundo, ela sentia-se ferida. Seu orgulho de mulher estava machucado. Deitava na cama todas as noites para ser possuída com fúria. Mas não sabia se torcia para isso acontecer ou para que a indiferença do marido a consumisse.

-Idiota!

Idiota, grandíssimo idiota. Esse era ele na visão da mulher. Ao menos tivesse dinheiro. Mas não. É um pobretão. Sem ambições. Sem futuro algum. A mulher o odiava por ele ser um ser desprovido de talento. Seu único talento era permanecer calado e sem reclamar diante da miséria que lhe consumia a vida e a alma. Uma miséria que era de comida e de amor. Uma miséria que entrava e saía da sua casa. Que se sentia à vontade, imitando seus passos, penteando os cabelos da mulher, experimentando o conhaque do marido e preparando a mamadeira do bebê. Uma miséria que já fazia parte da família.

Estava decidido. Não iriam brigar. Iriam ser aos menos amigos. O marido saiu sem avisar. Foi até a floricultura e escolheu um buquê de rosas vermelhas, o mais bonito que havia.

-É para sua esposa, moço? – indagou a esforçada vendedora.

-É sim. Será que ela vai gostar? Digo, se fosse você, gostaria?

-Nossa! Claro, ela vai adorar. É aniversário dela?

-Não, não.

-Alguma data em especial? É para o cartão – justificou a vendedora.

-Não, nenhuma data.

-Puxa! Sua esposa é uma mulher de sorte.

O marido engoliu essa última frase como se fosse um vinho misturado a um veneno que aniquila os nervos, ao invés de matar.

-É, somos um casal de sorte – disse o marido, crendo em suas próprias palavras.

-Ah! Se todos fossem assim – desejou a vendedora, com um leve suspiro. Talvez estivesse sonhando com um marido como aquele. Não desejava nada com mais ardor naquele momento.

Ao chegar em casa, o marido encontrou a mulher no fogão, preparando o almoço. Chegou com muita cerimônia, lhe entregou o buquê sem uma única palavra, além de “pra você”. Ela, espantada como nunca se espantou, recebeu o presente. Tremeu ainda mais. Soluçou e acabou libertando uma lágrima bem pequena. Do lado direito. Limpou antes da denúncia.

-Essas coisas deixam a gente boba – justificou baixinho. Pensou em dar um abraço de agradecimento, mas brecou essa possibilidade. Seus braços não mais conheciam o caminho do carinho.

O marido saiu de novo. Antes, deu uma outra olhada para a mulher, a sua mulher. Pela primeira vez nos últimos anos, não se sentiu um miserável.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 18/02/2010
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