Descobertas
De mão no queixo, Susana criava raízes, sem querer, no tempo do tempo. Queria só escrever uma carta. Um bilhete, simples, conviria. Não encontrava jeito. Quais palavras convêm às tardes mornas? Quais sílabas combinar em noites frias?
Primeira descoberta: há também o que não se escreve nunca. O que fica suspenso entre o som e a letra. Em algum lugar é, o doloroso silêncio, em estado de sombra.
Podia, quase, desnudar as palavras de que carecia. Quase sonorizá-las, quase explicitá-las. Quase quebrá-las no estalar de um ruído, rápido, passageiro e, aí sim, prendê-las ali, no papel, que alheio a tudo se sustentava sobre a escrivaninha.
Mas, como mandar uma carta assim, muda? Franziu a testa e tentou pescar, de olhos, uma resposta possível. De novo ousou, contrafeita, visualizar os contornos e reentrâncias de uma só palavra. Uma só bastaria.
Segunda descoberta: as palavras são avezinhas por demais tímidas para alçar vôo enquanto ruge a tempestade.
O papel, virgem, a encara com severidade. Outra investida. Um traço tênue e trêmulo como a sonoridade do R de amoR. Só um traço. A palavra, encarcerada em seu significado não se define. Quer dizer mais do que diz...
Terceira descoberta: o sentir é de dentro, mas o saber, é de fora.
Em suave escorregar, aleatoriamente, entre o gosto e o receio finca, a caneta, a sílaba sem voz: desenha uma casa em azul e branco. E na casa, cortinas. Delicadas cortinas em renda branca, que dançam na brisa fugaz. Dentro da casa a conversa se faz de gestos... Melhor deixar no pensamento.
Quarta descoberta: a palavra fala; o desenho, explica.
No canto da folha de papel escreve CAZA, KASA, KAZA, CASA. Casa vem de Ca-sa-men-to? Será? “Quem casa quer casa”, lembrou-se da mãe falando para a vizinha, sem saber o que queria dizer. O pensamento perambulava enquanto a palavra não vinha. O papel à espera e a casa, na solidão.
Calmamente, em frente da casa demarcou um lago e no lago plantou patos. Muitos. E mato, e flores. Pequenas e singelas flores que estavam azuis, mas eram cor-de-rosa, amarelas e vermelhas. A palavra pretendida também era cor-de-rosa... O coração se desassossegou. Buscou, novamente, retomar a carta. As palavras, teimosas, continuavam lá, na ponta da língua...
Olhou o desenho com certa meninice e recato. Com suavidade, inevitável ar de melancolia e com redondos rabiscos construiu o céu pendurando, sobre a casa, brancas e gordas nuvens. Depois um sol. Um sol sorridentemente simpático. Então ela riu. E com o riso vieram outras palavras.
“O que quero dizer, nesse momento, dorme de corpo inteiro no céu de minha boca, levemente molhado”, escreveu. As palavras, enfim, fremem entre lábios e dentes, mas recuam... O medo raspa o ar. O coração se assusta e se encolhe, rápido. “Melhor seria, talvez, engolir essa conversa, rasgar essa folha e deixar fechada a caneta em seu lugar de sempre”, pensou.
De cansaço a pender nos olhos tristes, rabiscou uma árvore. No mais tenro galho da árvore, pousou um pássaro e em seu bico, delicado envelope. Considerou o desenho. Pronto! Dobrou a folha e no verso deixou o bilhete. “Mando-te essas poucas palavras em estado de enigma, como um pensamento secreto, predito. Para sabê-las terás que subir na árvore, pegar o pássaro, abrir o envelope, decifrar e tomar as palavras como tuas. Como vês, me entrego a ti em desafio, em cores e em formas".
PS.: "Não fosse essa minha carta-desenho, te mandaria, pelo vento ligeiro, uma carta cheia de zumbidos, uma carta carregada de palavras-insetos, que ficariam lá, ciciando no teu ouvido, tudo o que eu queria que soubesses. Espero que entendas e me mandes uma resposta. Beijos".
Quinta descoberta: nem tudo o que se diz é tudo o que se quer dizer.
De mão no queixo, Susana criava raízes, sem querer, no tempo do tempo. Queria só escrever uma carta. Um bilhete, simples, conviria. Não encontrava jeito. Quais palavras convêm às tardes mornas? Quais sílabas combinar em noites frias?
Primeira descoberta: há também o que não se escreve nunca. O que fica suspenso entre o som e a letra. Em algum lugar é, o doloroso silêncio, em estado de sombra.
Podia, quase, desnudar as palavras de que carecia. Quase sonorizá-las, quase explicitá-las. Quase quebrá-las no estalar de um ruído, rápido, passageiro e, aí sim, prendê-las ali, no papel, que alheio a tudo se sustentava sobre a escrivaninha.
Mas, como mandar uma carta assim, muda? Franziu a testa e tentou pescar, de olhos, uma resposta possível. De novo ousou, contrafeita, visualizar os contornos e reentrâncias de uma só palavra. Uma só bastaria.
Segunda descoberta: as palavras são avezinhas por demais tímidas para alçar vôo enquanto ruge a tempestade.
O papel, virgem, a encara com severidade. Outra investida. Um traço tênue e trêmulo como a sonoridade do R de amoR. Só um traço. A palavra, encarcerada em seu significado não se define. Quer dizer mais do que diz...
Terceira descoberta: o sentir é de dentro, mas o saber, é de fora.
Em suave escorregar, aleatoriamente, entre o gosto e o receio finca, a caneta, a sílaba sem voz: desenha uma casa em azul e branco. E na casa, cortinas. Delicadas cortinas em renda branca, que dançam na brisa fugaz. Dentro da casa a conversa se faz de gestos... Melhor deixar no pensamento.
Quarta descoberta: a palavra fala; o desenho, explica.
No canto da folha de papel escreve CAZA, KASA, KAZA, CASA. Casa vem de Ca-sa-men-to? Será? “Quem casa quer casa”, lembrou-se da mãe falando para a vizinha, sem saber o que queria dizer. O pensamento perambulava enquanto a palavra não vinha. O papel à espera e a casa, na solidão.
Calmamente, em frente da casa demarcou um lago e no lago plantou patos. Muitos. E mato, e flores. Pequenas e singelas flores que estavam azuis, mas eram cor-de-rosa, amarelas e vermelhas. A palavra pretendida também era cor-de-rosa... O coração se desassossegou. Buscou, novamente, retomar a carta. As palavras, teimosas, continuavam lá, na ponta da língua...
Olhou o desenho com certa meninice e recato. Com suavidade, inevitável ar de melancolia e com redondos rabiscos construiu o céu pendurando, sobre a casa, brancas e gordas nuvens. Depois um sol. Um sol sorridentemente simpático. Então ela riu. E com o riso vieram outras palavras.
“O que quero dizer, nesse momento, dorme de corpo inteiro no céu de minha boca, levemente molhado”, escreveu. As palavras, enfim, fremem entre lábios e dentes, mas recuam... O medo raspa o ar. O coração se assusta e se encolhe, rápido. “Melhor seria, talvez, engolir essa conversa, rasgar essa folha e deixar fechada a caneta em seu lugar de sempre”, pensou.
De cansaço a pender nos olhos tristes, rabiscou uma árvore. No mais tenro galho da árvore, pousou um pássaro e em seu bico, delicado envelope. Considerou o desenho. Pronto! Dobrou a folha e no verso deixou o bilhete. “Mando-te essas poucas palavras em estado de enigma, como um pensamento secreto, predito. Para sabê-las terás que subir na árvore, pegar o pássaro, abrir o envelope, decifrar e tomar as palavras como tuas. Como vês, me entrego a ti em desafio, em cores e em formas".
PS.: "Não fosse essa minha carta-desenho, te mandaria, pelo vento ligeiro, uma carta cheia de zumbidos, uma carta carregada de palavras-insetos, que ficariam lá, ciciando no teu ouvido, tudo o que eu queria que soubesses. Espero que entendas e me mandes uma resposta. Beijos".
Quinta descoberta: nem tudo o que se diz é tudo o que se quer dizer.