Platô
Cap 1
- Abre a porta logo Adriana.
- Eu tô ocupada, não tá vendo.
- Eu também, ô.
- E você acha que ele vai esperar pra sempre? Abre a porta, continua depois essa sua limpeza. Desvairada, perde a tarde inteira se eu deixar com essas pedras, devia guardar isso num canto. Limpando pedra, onde já se viu coisa mais besta.
- Tá, tá, entendi, fecha a boca, pelamor. Não sabe ser sucinta.
- Oi Amélia.
- Oi Carlitos. A Débora ta brigando com a Adriana, mas entra, entra. Deixa que eu te ajudo com as malas.
- Nunca, e seu reumatismo? Além disso não trouxe muita coisa, a idéia é ficar pouco tempo.
- Oi Carlitos. Pouco tempo? E a herança?
- Desconversa disso, menina, ele nem pôs o pé na soleira.
- Que herança?
- Oi Carlitos. Já tá falando água, sua desencarnada? Credo, volta pras tuas pedras. Louca.
- Oi Adriana, tem tido contato com o Henrique?
...
- Segura aqui Amélia. Vem comigo Carlitos.
Era verão. Não havia como tentar enganar no topo do pico o calor. O vento não conseguia subir bem a colina decorada de árvores afastada do vilarejo e a única forma de consolar o corpo era através do balanço das redes da varanda da casa na sombra. Quem quer que tenha feito essa casa não imaginou que o inverno acabasse, colocando no cume chapado duma colina onde o sol batia mais forte num raio de dezenas de quilômetros. O vilarejo abaixo ficava num vale rodeado de pequenos picos como esse, recebendo toda a água do inverno e todo o vento do verão. A casa, única construção no topo de um pico ao redor dessa cidade, recebia todo o frio no inverno e toda a preguiça no verão.
Mas nessa época a proximidade do sol cobrava caro até mesmo no descanso. Manter-se em movimento era mais lucrativo que manter a rede em movimento, e Adriana, acostumada com a sazonalidade, pôs-se à vontade antes mesmo de ensinar como ao convidado. Andava de um lado para o outro da varanda, sacudindo vez ou outra os cabelos amarrados para criar brisa, enquanto narrava sobre o último contato com Henrique, seu esposo e dono da casa. E Carlitos tentava prestar atenção, mas o calor marasmado sufocava-o. Tentava enganar, soprava com os lábios, coçava a nuca molhada, abanava com as mãos pesadas.
- Tá me ouvindo bem?
- Tô irmã, tô. Mas você podia ter me ligado, sabe disso.
- Claro, ligado enquanto você tava entre nada e lugar algum vindo pra cá. E você sabe que não tem telefone aqui, eu tenho que ir na cidade pra te ligar.
- Cidade... mulher, aquilo tem o mesmo tamanho desde que rezaram a missa de Santa Cruz. Você devia ter saído quando teve a chance.
- Me lembra qual chance mesmo? Virar puta que nem a Beatriz?
- Beatriz casou!
- Beatriz virou puta de um homem só. Você nasceu comigo e ainda não aprendeu que sou mulher demais pra esse tipo de coisa.
- Tu é mulher demais pra esse lugar, Adriana.
- Que é que tu tá encostando em mim, Carlitos?
- Saudade.
- Tu num vale nada, minha filha ta a 10 passos daqui. E a sepultura de Henrique a 20.
- E isso não te excita?
- Cachorro.
- Amélia, se a Adriana ver que você mexeu nas pedras dela...
- Ela não vai fazer nada, ela não vai mexer com uma inválida.
- Você fala como se fosse senil.
- E você age como se eu fosse sã. Ô menina, sei que quer me ver melhor, mas tenho três de você na minha certidão de nascimento pra ser enganada por boa vontade. Desculpa de pareci grossa, mas nesse calor fico sem paciência. E pra me deixar melhor, o melhor que você faz é fingir q nada ocorre, não ficar maquiando.
- Seu filho ia morrer se ouvisse a senhora falando assim.
- É Débora, ele ia morrer sim.
O marasmo da campina sumia vez ou outra com algum barulho nas árvores indicando ventania. Só isso já servia pra abrandar o calor, mesmo que vento de verdade não viesse. A cabana permanecia imutável no topo do pico, escancarada em cada abertura pra mostrar receptividade ao vento emudecido no verão, como se mantendo cada porta e janela aberta fosse uma simpatia para atrair movimento. Para cada três dias de simpatia sem funcionar, um dia ela funcionava e reavivava a esperança das três moradoras.
Depois de quinze minutos na varanda, Adriana e Carlitos se recompunham e emendavam um cigarrinho junto da água gelada. A varanda, nas costas da casa, atrás da cozinha, por algum motivo tinha uma privacidade absurda comparada com os espaços escancarados do interior da casa, onde uma palavra dita num dos quartos, localizados no andar de cima, podia ser ouvida com mais clareza na cozinha que os gemidos de amantes cuidadosos na varanda do outro lado da porta. Era uma das particularidades dessa casa, figura de comentários por todo o povoado.
Ninguém sabia exatamente quando a construção da casa se iniciara, não haviam registros na época. Na verdade, não havia onde registrar nada, já que as fundações do que seria essa casa estavam no topo do cume antes mesmo do primeiro cartório da região ser criado, no século XIX. Durante o século XX era comum ouvir que o marco de fundação da cidade, a capela batismal, foi construída para que os filhos dos construtores da casa não fossem para o limbo. Como a casa não estava de um todo pronta antes da capela, perdeu o posto de construção mais antiga da cidade.
Era uma construção rural até delicada, com corredores estreitos e cômodos amplos, de dois pavimentos, uma varanda de entrada e outra, bem mais baixa que a casa, localizada nos fundos. Na parte de baixo ficavam os aposentos sociais, na parte de cima os quartos. Eram cinco ao todo, todos suítes, com mais um cômodo na parte de baixo podendo ser usado como quarto, mais dois banheiros e uma cozinha com uma modesta despensa e era simples para os padrões coronelistas que buscou imitar, mas abusiva para o criador inicial, um descendente de espanhóis que fez fortuna na Capital em outros tempos.
Seu idealizador chegou ao local no século XIX, criando a casa inicial, que ainda seria modificada com o advento da água encanada ao povoado. Mas já no século XIX havia as cinco suítes, um esbanjamento sem fundamento algum considerando que não tinha filhos, tampouco mulher ou amante. O homem falava que vivia que ainda era novo, que precisava aproveitar os luxos que tinha direito depois de tanto trabalho, que mulher viria só com despesa. Dizia-se que deitava com homens, mas dizia-se baixo a menos que quisesse acordar com formigas saindo da boca. O excesso de cômodos logo viria a ser explicado, mas a explicação só trouxe mais dúvidas com o boca a boca ao redor do tempo.
Dois anos depois de concluída a casa surgiu o primeiro sinal de família do gringo. Mas não de forma comum. Uma famosa prostituta da capital foi à cidade a negócios, mas subitamente foi interrompida pelo gringo, bêbado como um gambá, escorraçando todo mundo do local aonde a mulher iria se apresentar para uma platéia. As autoridades foram chamadas, mas ao chegarem, viram o homem partindo a cavalo com a mulher junto acenando feliz. Seguiram-nos, com medo de um acidente iminente, já que o homem guiando o cavalo havia agido como um possuído e estava visivelmente alcoolizado, mas nem mesmo as autoridades guiaram tão bem morro acima como o manguaceiro. A ausência de barulho na casa alarmou as autoridades, que ainda não entendiam o porque da felicidade no rosto da prostituta. E mais e mais homens subiam a campina até o casarão para saber o que havia ocorrido.
Ao abrirem a porta, porém, nada podia ter pegado-os tanto de surpresa. O homem arrumava os cabelos da mulher com esmero, sentado numa dessas cadeiras finas do século anterior, enquanto a mulher desembrulhava cartas e chorava copiosamente. O homem afagava seus cabelos com muito mais delicadeza do que seu comportamento bruto no campo comandando homens com o dobro de sua envergadura jamais se fez supor que tivesse dentro de si, cantarolando baixo, tirando madeixas ocultas nas orelhas da moça e escovando-as sem pressa. Ela, já sem maquiagem da noite, apenas chorava, com os olhos fixos nos papéis em suas mãos. Quem viu a cena duvidava que a moça fosse capaz de ler algo, já que seus olhos brilhavam a luz do candeeiro, marejados, mesmo que ela limpasse-os compulsivamente. Estava sentada em uma enorme almofada que o homem dizia ser oriental e jamais deixou alguém se aproximar dela, nem mesmo ele havia usado essa almofada até então. E agora ela sujava essa almofada com lágrimas e catarro, enquanto soluçava como criança. Esses dois eram os irmãos Aguirre, meus tataravôs, de Débora e de Amélia.